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"Salazar aproveitou-se dos portugueses chacinados, incluindo crianças"

Aos 80 anos, Otelo Saraiva de Carvalho tem ainda frescas na memória as recordações do 25 de Abril. Sentado no sofá da sua casa em Carnaxide, o ‘cérebro’ da Revolução dos Cravos transportou-nos para os anos da ditadura, recordando, com detalhe, os anos que antecederam a saída dos militares para as ruas.

"Salazar aproveitou-se dos portugueses chacinados, incluindo crianças"
Notícias ao Minuto

24/04/17 por Patrícia Martins Carvalho

País Otelo S. de Carvalho

Se a guerra colonial podia ter sido evitada? Claro que sim, ‘pá’. Otelo Saraiva de Carvalho, um dos mais conhecidos ‘capitães de Abril’ recorda, na véspera de a revolução celebrar 43 anos, os anos que passou em África a lutar por algo que já estava perdido à partida.

Defensor de uma solução política e não armada para as colónias portuguesas, Otelo deu voz à vontade de milhões de portugueses e pôs mãos à obra. Preparou um plano de operação militar minucioso e, a partir do Regimento de Engenharia n.º 1 da Pontinha, devolveu a liberdade ao povo. 

Riscos? Houve e não foram poucos, mas foram necessários, garante com um brilho no olhar enquanto recorda a preparação da Revolução dos Cravos. 

Salazar, metido no seu trono de marfim em São Bento, não tinha a perceção do que se passava no mundoA Guerra Colonial podia ter sido evitada?

A guerra podia não ter existido com uma ação política determinante por parte de Salazar. A minha perspetiva desde sempre foi que Salazar, metido no seu trono de marfim em São Bento, era um homem com uma grande capacidade de domínio das situações, mas que não tinha a perceção do que se passava no mundo.

Não tinha ou não queria ter?

Vamos lá ver. Quando em 1956 surgem os movimentos de libertação PAIGC (Partido Africano pela Independência da Guiné e de Cabo Verde) e MPLA (Movimento Popular para a Libertação de Angola) é evidente que Salazar tem conhecimento disto. O que devia ter acontecido era ele ter pensado que o curso da história era a independência das colónias, mas ele não quis abrir os olhos e impôs a guerra colonial.

Com o apoio da população?

Salazar motivou a população quando, em março de 1961, houve uma tremenda onda terrorista lançada a partir do Congo e são chacinados fazendeiros portugueses. Famílias inteiras, incluindo crianças, mortas à catanada. Foi horrível. E Salazar aproveitou-se disso. As imagens do horror foram transmitidas na televisão, o que motivou a população a responder rapidamente. Na sequência disto começaram a partir navios comerciais para África que transportavam os batalhões.

No início, eu próprio pensei, ‘pá, vamos defender o que nos foi deixado pelos nossos antepassadosO Otelo foi enviado para Angola em 1961. Acreditava no objetivo da guerra colonial?

No início, eu próprio pensei, ‘pá, vamos defender o que nos foi deixado pelos nossos antepassados, vamos tentar agarrar aquilo e dominar a situação’, até porque as colónias eram importantes para o nosso desenvolvimento industrial. Aliás, Salazar quando profere a famosa frase ‘Para Angola, rapidamente e em força’, acredita que a guerra vai durar cerca de seis meses…

Mas durou 13 anos…

E durante 13 anos tivemos três teatros de operações que hipotecaram cerca de 200 mil homens, sobretudo juventude. Na sequência disto o país degrada-se cada vez mais porque a força braçal está toda em África e cerca de 40% do Orçamento do Estado é destinado à Guerra Colonial. Tudo isto vai alimentando um descontentamento enormíssimo e nós, os oficiais, mesmo ganhando mais 50% por estarmos nos teatros de operações preferíamos não ter esse bónus e estar vivos na metrópole.

Quando é que percebeu que Portugal ia perder a guerra?

Quando em 1973 o PAIGC começa a utilizar, na Guiné, mísseis Strela que eram disparados por um lança-mísseis colocado ao ombro. Em um ou dois meses foram abatidos cinco aviões da Força Aérea Portuguesa. Mas em Angola a coisa estava pior, pois já tinham começado a usar minas.

Em 1967, eu já tinha noção de que esta guerra não podia ser ganha pela força das armasFoi então que percebeu que era preciso colocar um ponto final nesta situação?

Em 1967 eu já tinha noção de que esta guerra não podia ser ganha pela força das armas, tinha de haver uma solução política. E não nos podemos esquecer que havia toda uma massa internacional de apoio aos movimentos de libertação. Nós estávamos isolados.

É então que surge o movimento dos oficiais?

Os capitães insurgem-se quando, no verão de 1973, Marcello Caetano lança o decreto 353/73 que permite aos milicianos do Quadro Especial de Oficiais ultrapassarem os capitães do quadro permanente. Como havia falta de capitães, todos aqueles que estivessem na vida civil e quisessem regressar faziam seis meses na Academia Militar e seis meses numa escola prática e eram promovidos a capitães, enquanto que nós tínhamos ‘gramado’ quatro anos de curso. É aqui que começa a haver um movimento de capitães porque havia uma injustiça flagrante.

E eis que se dá a primeira vitória das Forças Armadas.

Sim, os decretos – houve um segundo, mas que não correspondia às nossas exigências – foram revogados depois do nosso protesto que foi brutal, com os capitães a garantirem que pediriam a demissão se os decretos não fossem revogados. Houve oficiais que consideraram que a vitória tinha sido alcançada e que o movimento de oficiais podia desaparecer.

Mas não desapareceu…

Não. Felizmente havia entre nós, além de mim e do Vasco Lourenço, outros que consideravam que tínhamos de ir mais longe para derrubar o governo e instaurar a democracia. Logo a seguir à revogação dos decretos criou-se o Movimento dos Oficiais das Forças Armadas. Aliciámos – e aqui o Vítor Alves teve um papel muito importante – a Marinha e a Força Aérea. Esta última negou qualquer hipótese de independência para as colónias, por isso sabíamos que não podíamos contar com eles.

Eles acreditavam que bastava sair uma unidade para a rua, que sairiam todas. Mas não era verdadeDepois houve um conjunto de situações que precipitaram o 25 de Abril.

Tudo começa quando o Spínola, vice-Chefe do Estado Maior General das Forças Armadas, lança o livro ‘Portugal e o Futuro’, no qual defende uma solução política e não militar para o conflito do Ultramar. Marcello Caetano considera que é um manifesto de oposição e tenta demitir-se, mas o Presidente Américo Tomaz não lhe permite e manda-o exonerar o Spínola e o Costa Gomes, que era o Chefe do Estado Maior General das Forças Armadas e que tinha dado luz verde ao livro. Ora, com as duas exonerações, os tais milicianos que tinham tido a promessa de Spínola de que continuariam como capitães apesar da revogação dos decretos, decidem sair para a rua a partir do Regimento de Infantaria 5 das Caldas da Rainha e rumar a Lisboa no dia 16 de março. Eles acreditavam que bastava sair uma unidade para a rua, que sairiam todas. Mas não era verdade.

Era possível esta saída dos quartéis ter sido vitoriosa?

Não, até porque era sábado e aos sábados os quartéis estão vazios e ninguém se lembrou disso. E eu vejo-me a braços com esta saída iminente… a verdade é que não tive capacidade, enquanto dirigente do MFA, para travar esta situação. O major Monge e o Casanova foram para as Caldas para tentar travar a saída dos militares, mas já os apanharam às portas de Lisboa. Eram cerca de 200. Regressaram todos para as Caldas e essa rapaziada acabou por ser toda presa. E eu só não fui preso pela PIDE por uma questão de segundos. Nessa madrugada eu fui a Mafra e quando voltei a casa do Monge, onde tínhamos estado reunidos, estava à procura de lugar para estacionar e vejo um carro parar de onde saíram cinco tipos com chapéus e gabardines.

Com estas detenções era urgente pôr o plano em prática…

Claro, pá. Uma semana depois, a 24 de março, convoco uma reunião com o que sobrava da Comissão Executiva do MFA – tínhamos tirado a palavra Oficiais por sugestão do Spínola que nos lembrou que íamos precisar de todos e não apenas dos oficiais. Nessa reunião fiz o meu ‘mea culpa’ por não ter conseguido parar o 16 de março e fiz uma proposta: caminhar rapidamente para a execução de uma operação militar que tinha de ter uma ordem de operações, missões a atribuir a todas as unidades onde o movimento estava implementado e tinha força e também uma rede de transmissões a funcionar e um posto de comando a comandar toda a operação.

Era preciso antecipar e ficou para dia 25 e eu arrisquei muito na elaboração, confesso que arrisqueiPorquê o dia 25?

Bom, tinha de ser na última semana de abril, porque a PIDE andava ocupada com o pessoal do PCP e do MRPP que andava a fazer grafittis e a dizer que iria haver sangue no 1.º de Maio. E depois desta data eles estavam libertos para interrogar a malta que tinha sido presa no 16 de março e corríamos o risco de eles abrirem boca e falarem sobre o movimento e dizerem quem era quem. Depois não podia ser dia 22 porque era segunda-feira e o pessoal regressava aos quartéis e nem podia ser dia 26 porque o pessoal ia de fim de semana. Era preciso antecipar e ficou para dia 25 e eu arrisquei muito na elaboração, confesso que arrisquei.

Que riscos correu?

Eu sabia muito pouco ou nada da GNR, da PIDE, da PSP e da Legião Portuguesa. Então procurei saber quem estava na repartição de informações do Exército – porque eles tinham dossiers sobre todas as forças. Era o major Nuno Garoupa. Liguei-lhe e depois fui a casa dele e disse-lhe a verdade: ‘vou fazer uma operação militar para derrubar o governo e preciso da tua ajuda’. E expliquei-lhe que só precisava de informações, precisava de saber o número de elementos, número de viaturas, horas das rondas…

Podia ter corrido mal…

Podia. Ele podia ter ligado ao Estado Maior a contar tudo. Eu ia preso e a operação morria ali.

Corri o risco de ser denunciado, mas tive de o fazerMas este não foi o único risco que correu.

Não. Nessa altura descobri que um primo da minha mãe estava colocado no quartel-general da GNR onde era adjunto de operações. Liguei-lhe, fui a casa dele e contei-lhe tudo. ‘Estou a correr o risco de me denunciares, mas eu confio profundamente em ti e sei que não o vais fazer. Se o fizeres és capaz de te lixar porque alguém pode ter a missão de te liquidar’. Mais uma vez corri o risco de ser denunciado, mas tive de o fazer. O meu primo não me denunciou e até foi um elemento atuante na rendição do governo.

E como é que o locutor João Paulo Diniz foi convencido a passar a primeira senha?

O João Paulo Diniz era um antigo primeiro cabo de engenharia a quem eu tinha facilitado a vida e era o homem indicado para lançar a primeira senha porque era locutor – achava eu – no Rádio Clube Português. No dia 22, já de madrugada, encontro-me com ele no restaurante Apolo 70. Quando entro dou de caras com o Zeca Afonso. Caramba, era um sinal. Bom, disse-lhe o que estava a preparar e ele diz-me que não trabalha no RCP mas sim nos Emissores Associados de Lisboa cuja potência de antena é apenas de aproximadamente 100 quilómetros. ‘Chega a Santarém, Mafra e Vendas Novas?’, ‘Chega, sim senhor’. ‘Pronto, vais entrar nisto’ e ele ficou aflito [risos].

Quem sugere o tema 'E Depois do Adeus'?

É o João Paulo Diniz. Eu queria uma música do Zeca Afonso, mas ele disse logo que não podia ser porque a maioria estava no índex da PIDE e então sugeriu o ‘E Depois do Adeus’ porque estava na berra. A única coisa que ele tinha de fazer era colocar a música no ar e assim fez às 23 horas da noite de 24 de abril.

Queria o Zeca Afonso e conseguiu.

Consegui, pá. Eu gostava muito dele, tinha vários discos dele. E depois de o ter encontrado no Apolo 70 vi naquilo um sinal. Tinha de ser uma música do Zeca Afonso. Mas as que eu queria - ‘Traz Um Amigo’ e ‘Venham Mais Cinco’ - estavam todas no índex. E lá chegámos ao ‘Grândola Vila Morena’ que ainda não estava na lista proibida da PIDE e foi a segunda senha.

Fui respirando de alívio à medida que ia recebendo, no posto de comando, os telefonemas a dizerem-me que os objetivos tinham sido tomados e sem incidentesApesar dos riscos que correu e dos contratempos, com algumas missões não concretizadas na madrugada da Revolução, a verdade é que a sua operação militar foi bem-sucedida. Quando é que respirou de alívio?

Fui respirando de alívio à medida que ia recebendo, no posto de comando, os telefonemas a dizerem-me que os objetivos tinham sido tomados e sem incidentes. E o facto de termos tido o fator surpresa do nosso lado também me deixou tranquilo.

A que horas saiu do posto de comando?

Eu fui dormir ao posto de comando ainda na noite de dia 23. Aliás só disse à minha mulher o que ia fazer nessa noite. Resolvi sair de casa por uma questão de segurança, não fosse haver um problema e prenderem-me em casa. No dia 24 ainda fui dar aulas na Academia Militar para não levantar suspeitas e só saí do posto de comando da Pontinha já no dia 26 às 13h30.

*Pode ler a primeira parte desta entrevista aqui.

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