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"Percebi que haveria uma explosão do que sempre ouvi por ser transgénero"

Marina Machete, a primeira mulher transgénero a tornar-se Miss Portugal, é a convidada desta segunda-feira do Vozes ao Minuto.

"Percebi que haveria uma explosão do que sempre ouvi por ser transgénero"
Notícias ao Minuto

16/10/23 por Filipe Carmo

Fama Marina Machete

Portugal estava perto de se esquecer que também por cá acontecem os concursos de Miss até Marina Machete se ter tornado, no passado dia 5 de outubro, a primeira mulher transgénero a ser coroada Miss Portugal Universo.

Marina tem 28 anos, é de Palmela, e em poucas horas tornou-se a protagonista de intensos debates nas casas dos portugueses, nos cafés e, claro, nas redes sociais. Na Internet, onde atualmente se comenta sem pudores aquilo que se pensa, há de tudo: quem aprove a vitória, quem a condene, quem elogie a jovem e quem a insulte.

O Fama ao Minuto procurou falar com Marina Machete e o convite foi aceite de imediato. Na conversa, a nova Miss nunca escondeu o sorriso, nem mesmo quando foi confrontada com as duras palavras que lhe têm sido dirigidas. Destacou que cumpriu o sonho de vencer este concurso e atribuiu a responsabilidade dos comentários maldosos à falta de informação. Não aponta o dedo a ninguém e tem esperança de que um dia, não muito distante, se trate com normalidade este tema que ainda é um tabu.

Não acreditava que aquela noite era minha. Havia candidatas muito fortes e ninguém conseguia prever quem iria ganhar

O nome da Marina é, neste momento, um dos mais comentados no país. Queria começar por lhe perguntar como é que todo este aparato de mensagens positivas e outras menos agradáveis a têm feito sentir?

Muito honestamente, não tinha a noção de que isto ia ser o que está a ser neste momento. A minha candidatura ao concurso talvez tenha sido um pouco inocente, porque queria simplesmente seguir o que era um sonho meu enquanto mulher e não enquanto mulher transgénero. A nossa história enquanto mulheres neste concurso é muito valorizada, é parte da nossa participação. O concurso não avalia apenas o exterior, a candidata tem de participar de forma ativa na sociedade, através de causas sociais, e tem de transmitir uma imagem e mensagem a uma certa comunidade.

Referiu que esta candidatura foi um sonho. De onde surgiu esta vontade de ser Miss?

Era um objetivo há vários anos mas, infelizmente, a minha participação no concurso não era possível porque as regras não permitiam que as mulheres transgénero participassem. Este ano tornou-se possível.


Como foi todo o processo de participação no concurso e até antes, durante a preparação?

Tudo começou no início do ano, quando saiu a informação de que as regras do concurso haviam mudado. A minha paixão por esta área começou a vir ao de cima novamente e acabei por concorrer. Tive de conciliar o meu trabalho com o concurso, o que foi super difícil, porque trabalho fora do país. O concurso teve uma fase inicial, uns meses antes da fase final, com o Miss Lisboa, e aí não tinha contado a minha história. Ao Miss Lisboa fui simplesmente como Marina e só depois chegou a parte de falar da minha vida.

Existirá mais espaço, futuramente, para outra rapariga transgénero que também queira participar se sinta mais apoiada para fazê-lo

E o sonho de vencer existia ou foi uma surpresa?

Não acreditava que aquela noite era minha. Havia candidatas muito fortes e ninguém conseguia prever quem iria ganhar. Foquei-me apenas no que podia controlar, a minha performance.

Quando pensa no facto de ser a primeira mulher transgénero a participar no concurso Miss Universo Portugal, quais são as primeiras ideias que lhe vêm à cabeça?

Só por ter participado, acho que já se abre não uma porta, mas sim uma janela. Existirá mais espaço, futuramente, para outra rapariga transgénero que também queira participar se sinta mais apoiada para fazê-lo.

Percebi, desde logo, que haveria uma explosão de tudo aquilo que eu ouvi até agora por ser abertamente transgénero (...) Já ouvi de tudo, não há nada que me possa magoarAcredito que a Marina já tenha recebido mensagens de outras mulheres transgénero que têm o mesmo sonho de participar num concurso deste género. Já se vai sentindo uma influenciadora para esta comunidade?

Tenho recebido várias mensagens, sim. Têm sido a melhor parte destes dias. Ainda não me sinto uma influenciadora porque ainda sou a inspiração da minha própria vida, acima de tudo. A representação no concurso Miss Universo será a imagem das pessoas transgénero em Portugal, mas sobre isso ainda não me caiu a ficha. Está a custar ajustar-me à ideia de que, possivelmente, serei reconhecida e que, mais do que isso, serei uma mulher que irá mostrar que é possível ser uma pessoa normal e ser transgénero, porque isso é natural e deve ser normalizado.

Não culpo as pessoas que têm estas opiniões porque, infelizmente, muitas delas nunca tiveram acesso à possibilidade de se informarem

Olhando agora para o lado mau de toda esta repercussão, tem havido uma onda de comentários desagradáveis, alguns deles até transfóbicos. Tem lido o que tem sido dito ou opta por ignorar?

Não tenho lido todos os comentários. Percebi, desde logo, que haveria uma explosão de tudo aquilo que eu ouvi até agora por ser abertamente transgénero, daquilo que eu ouvi na escola secundária, na faculdade... nada disto é novidade, o que as pessoas acham que deviam ou não chamar-me.

Já ouvi de tudo, não há nada que me possa magoar. A maioria dos comentários ofensivos até me faz rir, a mim e à organização. Nós lemos e rimo-nos. Esses comentários não se aplicam a mim, representam apenas ignorância. Não culpo as pessoas que têm estas opiniões porque, infelizmente, muitas delas nunca tiveram acesso à possibilidade de se informarem. Espero que isto sirva para ajudar a mudar a perceção das pessoas para que não aconteça com a próxima pessoa.

Há também um lado curioso em toda esta situação. De repente, a Marina passou a ser defendida publicamente por várias pessoas que nunca a viram e que não a conheciam, principalmente em publicações onde lhe são feitas críticas...

O apoio tem sido espetacular, dá-me esperança ver que o nosso país também tem pessoas evoluídas e informadas. Há pessoas que nascem com esta condição e elas não têm de ser atacadas nem ridicularizadas. No entanto, eu compreendo que estas opiniões vêm da nossa educação, do que nos foi ensinado.

Temos de resolver este tema a nível mundial, precisamos de representatividade e que as pessoas percebam que somos pessoas normaisA Marina transmite a ideia de que é uma pessoa tão bem resolvida que nada do que é dito a poderá afetar. No entanto, se assim não fosse, esses comentários poderiam dar origem a uma situação muito preocupante...

Sem dúvida. Estes comentários são piores para as meninas transgénero adolescentes e pré-adolescentes que estão neste momento a perceber que se sentem da mesma forma que eu me sentia há alguns anos e assim olham para o mundo e pensam: 'ainda não estamos evoluídos o suficiente para que eu possa, amanhã, dizer abertamente quem sou e viver uma vida livre'. Eu, pessoalmente, leio o comentário em voz alta para a pessoa que está ao meu lado e rio-me, mas estas jovens vão ler e vão sentir que aquilo lhes foi dito também a elas. Isso, sim, é perigoso.

A sua vitória no concurso ajudou-nos também a falar de um tema que sempre esteve entre nós mas cuja existência é muitas vezes esquecida. Tem, de alguma forma, o sentimento de dever cumprido por ter ajudado a lembrar que tudo isto é uma realidade?

A participação era muito focada no meu sonho, nunca pensei que seria criado este aparato. Pensei apenas que saísse uma pequena notícia com o título 'Mulher trans foi coroada como Miss Universo Portugal', mas não [risos].

Para a Marina está a ser fácil lidar com estas ofensas gratuitas, mas para a família e amigos mais próximos também tem sido? 

Ainda não estive pessoalmente com a minha família, apenas falámos por chamada e mensagens. Acredito que a maioria da minha família não tem a noção de que isto está a acontecer e, mesmo que tenham, não se querem envolver a esse ponto. Mesmo que leiam esses comentários, penso que não os vão magoar porque sabem o que já passei e o que trago comigo.

A Marina disse no vídeo de apresentação do concurso que é hospedeira de bordo e que esta experiência a mantém "alerta para o modo como as pessoas transgénero são tratadas em todo o mundo"...

Nos primeiros dois anos em que trabalhei como hospedeira, tive a oportunidade de fazer voos internacionais. Viajei bastante e deparei-me com a realidade de outras pessoas trans, em que as oportunidades dessas pessoas são verdadeiramente limitadas devido à intolerância. Isso chocou-me, tal como perceber que a minha vida poderia ter sido completamente diferente se tivesse nascido, por exemplo, no Brasil e que o meu destino poderia ter sido outro. Temos de resolver este tema a nível mundial, precisamos de representatividade e que as pessoas percebam que somos pessoas normais.

É quase um milagre estar aqui sã e salva, na posição em que estouDe que forma já está a Marina a preparar a participação no concurso Miss Universo?

Toda a preparação já estava a ser feita. Havendo a ilusão de uma possível vitória, já tinha muitas ideias na cabeça e estava preparada em termos de saúde, de imagem, fisicamente...

A Marina tem 28 anos e eu acredito que ao longo de toda a sua vida já se tenha cruzado com alguns dos comentários que hoje estão estampados em algumas redes sociais. De que forma lidou com este preconceito ao longo de todo este tempo?

A infância foi uma altura em que estava perdida, porque sempre me senti menina. Essa sensação de estar no corpo errado é difícil para uma criança que ainda não compreende sequer o mundo, quanto mais compreender-se a ela mesma. Foi complicado lidar com o preconceito e a pressão que os adultos impõem sobre as crianças. Enquanto adolescente foi ainda pior, é quase um milagre estar aqui sã e salva, na posição em que estou. Como adulta, as coisas começaram a encaminhar-se e, depois de me sentir plena, seguir a minha vida, foi como com qualquer outra pessoa. Até hoje vivia uma vida completamente normal, em que as pessoas não sabiam que eu era transgénero. Estou focada em fazer com que a minha vida continue a ser o mais normal possível.

Os concursos de Miss, só por si, já têm dado muito que falar nos últimos anos e muitas pessoas defendem que estes eventos não fazem sentido na sociedade atual. Que motivos encontra para contrariar esta perspetiva?

Pelas causas sociais. As concorrentes, através do Miss Universo, transformam a sua causa social na 'bandeira' que irão levar ao concurso. Não existe Miss Universo sem causa social. Qualquer candidata preparada leva consigo uma lista de contactos, eventos sociais em que participou, causas sociais que apoia...

Se eu não tivesse tido acesso a uma transição médica, hoje não estaria viva, porque o meu cérebro nunca se conseguiria adaptar a um corpo masculino. Tive de adaptar o meu corpo ao meu cérebro feminino.

Na sua opinião, por que motivo a simples vitória de uma mulher transgénero num concurso de beleza tem gerado tanta indignação?

Por falta de informação e de representatividade. O país continua muito fechado em diversos aspetos, infelizmente, e seria mais proveitoso abrir a mente e aceitar as pessoas que são tidas como diferentes ou até mesmo inferiores. Muitos dos comentários estão relacionados com a minha aparência, aparência essa que há duas semanas não era motivo de chacota. Os comentários não derivam da minha aparência enquanto mulher, mas sim de um lado transfóbico e desinformado das pessoas que querem 'gritar' ódio. É triste e tem de mudar.

De acordo com a sua perspetiva, que lida há 28 anos com este preconceito, de quem é realmente a culpa desta falta de informação que diz existir?

De nós, enquanto sociedade. Temos todos de perceber que a educação nas escolas irá mudar o futuro. Seria pertinente falar da diversidade humana, explicar que existe uma panóplia de seres humanos muito diferentes. Naturalmente nascemos de uma forma e podemos sentir-nos de outra.

Não vale a pena discutir a aparência, as cirurgias e as transições. Se anularmos todas as cirurgias no mundo, há vidas que não se irão salvar. É isso que acontece no caso das pessoas que nascem com disforia de género, para as quais estas cirurgias são 'life changing'. Se estas pessoas não tiverem acesso à saúde, não conseguirão viver. Se eu não tivesse tido acesso a uma transição médica, hoje não estaria viva, porque o meu cérebro nunca se conseguiria adaptar a um corpo masculino. Tive de adaptar o meu corpo ao meu cérebro feminino.

No meio de todas estas opiniões e mediatismo, tem conseguido desfrutar do facto de se ter tornado Miss Universo Portugal?

Consigo, principalmente porque não estava à espera. Quando fui coroada, senti que aquela era a minha noite. Consigo ver agora que todo o trabalho que fiz e que tudo o que investi, quer a nível financeiro como noutros aspetos, deu frutos. Estou muito feliz por estar a preparar-me para o [concurso] Miss Universo.

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