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Guerra? "Dependência geopolítica" da UE "está a tornar-se menos ingénua"

Bas Eickhout, eurodeputado holandês do grupo dos Verdes/Aliança Livre Europeia, é o convidado desta quinta-feira do Vozes ao Minuto.

Guerra? "Dependência geopolítica" da UE "está a tornar-se menos ingénua"
Notícias ao Minuto

03/08/23 por Ema Gil Pires

Mundo Parlamento Europeu

O debate em matérias ambientais tem estado, nos últimos anos, bastante aceso no Parlamento Europeu, motivado essencialmente pelas recentes preocupações sociais em matéria de alterações climáticas.

Vários têm sido os ‘passos’ dados pelas instituições europeias para promover, entre os Estados-membros, ações menos nefastas para a Natureza e para os ecossistemas, como a Lei do Restauro da Natureza, recentemente aprovada pela maioria dos eurodeputados.

O Notícias ao Minuto esteve à conversa com o eurodeputado holandês Bas Eickhout, que faz parte do grupo dos Verdes/Aliança Livre Europeia e é, também, vice-presidente da Comissão de Ambiente, Saúde Pública e Segurança Alimentar do Parlamento Europeu.

No Vozes ao Minuto desta quinta-feira, falou sobre essa “vitória” que foi, “essencialmente, de importância política”, acabando por resultar numa proposta “substancialmente enfraquecida” face à primeiramente apresentada pelo Conselho da União Europeia (UE).

Eickhout, antigo candidato à presidência da Comissão Europeia, no quadro das eleições europeias de 2019, ressalvou ainda que “no que toca às preocupações ambientais, demora algum tempo para que as pessoas percebam a urgência”. Declarações proferidas numa altura em que a guerra na Ucrânia, que fez surgir novas necessidades de produção de armamento, traz “más notícias” adicionais para o ambiente.

Sobre a próxima eleição de âmbito europeu, em 2024, vaticinou que “aquela época” em que o Parlamento Europeu era ‘dominado’ pelos dois grupos políticos mais centrais - os Democratas-Cristãos (grupo do Partido Popular Europeu) e a Aliança Progressista dos Socialistas e Democratas (S&D) - “chegou ao fim”.

Lei do Restauro da Natureza? A vitória neste âmbito foi, essencialmente, de importância política

O Parlamento Europeu aprovou recentemente a Lei do Restauro da Natureza na União Europeia (UE), que abre caminho a uma maior defesa da biodiversidade. O que significa a aprovação desta lei? E que impacto se espera que a sua aplicação tenha?

Para ser muito honesto, penso que a vitória neste âmbito foi, essencialmente, de importância política. Porque, de modo a garantir a aprovação, ela teve de ser substancialmente enfraquecida. Se virmos aquilo que o Parlamento Europeu acabou por aprovar, reparamos que é ainda menos ambicioso do que o Conselho da UE queria fazer, e isso não acontece assim tão regularmente. Geralmente, a Comissão Europeia propõe algo, o Conselho da UE enfraquece as ambições e o Parlamento Europeu fortalece-as - mas desta vez o Parlamento ainda a enfraqueceu mais do que o Conselho. Julgo que isso mostra a polarização desta discussão. Ainda assim, penso que a importância do conteúdo desta lei é que passa a ser inevitável que cada país da UE adote um Plano de Restauro da Natureza, a nível nacional. E julgo que isso será algo muito importante.

Há condições para que esses planos sejam adotados numa perspetiva nacional? 

Têm de o ser. O problema é o que será que os países vão incluir nos seus planos nacionais e o poder da Comissão Europeia para fortalecê-los, que é limitado. Penso que vamos ver alguns planos bastante vagos e com princípios gerais. Por isso, não podemos dizer que, ao adotar esta lei no Parlamento Europeu, teremos um restauro imediato da Natureza. Mas cada país terá de avançar com um plano neste sentido e penso que, em alguns anos, todos concluirão que esses planos são insuficientes. E, aí, poderemos usar essa oportunidade para fortalecer os passos que temos mesmo de dar. Infelizmente, tal como acontece normalmente, no que toca às preocupações ambientais, demora algum tempo para que as pessoas percebam a urgência. E penso que agora sentimos cada vez mais a urgência quanto às alterações climáticas, mas ainda assim é vista como menos urgente do que aquilo que é efetivamente. Importa lembrar, ainda assim, que esta crise da biodiversidade é tão urgente como a crise climática, mas ainda não é tão visível. 

Destacou a “importância política” da aprovação desta lei, na sequência de um debate que foi muito conflituoso. Que pistas nos deixa esse processo sobre as futuras alianças políticas no seio do Parlamento Europeu?

Abre-se aqui uma questão quanto ao futuro dos Democratas-Cristãos (grupo do Partido Popular Europeu), que adotaram uma campanha altamente ‘anti’ e populista, colando-se basicamente à extrema-direita com a sua narrativa. Eles aliaram-se à extrema-direita nesta questão, e penso que o importante é que isso resultou numa perda de influência no processo de tomada de decisão, para além de não terem conseguido a maioria. Basicamente, colocaram-se à margem. E acho importante que, pelo menos, essa estratégia não tenha compensado e que, a partir de agora, possamos ver um debate interno nos Democratas-Cristãos acerca de onde se querem colocar nas próximas eleições. É um debate fundamental que eles precisam de ter.  

Aquela época em que tínhamos dois poderes centrais chegou ao fim no Parlamento Europeu

E diria que esse será, também, um debate central no que concerne as próximas eleições europeias, agendadas para 2024, nomeadamente nos vários Estados-membros?

O que vemos é que existe uma fragmentação política em toda a Europa. Aquela época em que tínhamos dois poderes centrais chegou ao fim - em que os dois grandes grupos políticos, os Democratas-Cristãos e a Aliança Progressista dos Socialistas e Democratas (S&D), conseguiam, até então, em conjunto, a maioria. De facto, nas últimas eleições, em 2019, vimos que, pela primeira vez, isso não aconteceu. De certa forma, eles ‘acrescentaram’ os liberais (inseridos no Renew Europe) para formar essa maioria. Mas, desta vez, talvez seja duvidoso que, mesmo com os três, consigam uma maioria. E, portanto, claro está, será interessante perceber se eles virarão mais à Direita para conseguir maioria, ou se optarão por olhar para os Verdes. Essa é, nomeadamente, uma questão fundamental no que toca ao futuro do Green Deal - vemo-lo como um obstáculo à competitividade e à indústria atual, ou como um elemento crucial para a competitividade futura? 

Existe ainda a Lei Europeia do Clima, que obriga a UE a alcançar a neutralidade climática até 2050 e a reduzir as emissões líquidas de gases com efeito de estufa em pelo menos 55% até 2030. Considera que estes objetivos são exequíveis?

A legislação que adotámos até agora olha ainda essencialmente para 2030 - a Lei Europeia do Clima é basicamente a única que já diz algo sobre 2050, numa perspetiva legal. Mas o resto da legislação fixa-se apenas em 2030. E claro que, provavelmente, poderemos cumprir esse objetivo, especialmente devido à transição que temos notado no sistema energético. Ou seja, em princípio, é possível, e é essa também a conclusão do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC).

A sua mensagem é de que existe uma crise climática, que está a ser causada pelo ser humano, que os impactos são severos, que precisamos de fazer algo quanto a isso, e que isso é exequível. Essas são as conclusões que não se têm alterado substancialmente nos últimos 20 anos. Penso apenas que essas mensagens se têm tornado mais claras e severas. Penso que estamos a aceitar cada vez mais que os problemas relacionados com as alterações climáticas existem, mas as ações nesse sentido permanecem alvo de debate - ou seja, se são concretizáveis. Portanto, sobre um ponto de vista meramente científico, penso que é fazível. Na teoria, pode ser feito. A grande questão é se é, de facto, exequível politicamente. E penso que a ‘batalha’ que veremos nas próximas eleições será, efetivamente, essa.

Mas, apesar das divergências que possam existir nesta matéria, o bloco europeu tem já dado passos no sentido de caminhar para o cumprimento do previsto nessa lei. Considera que têm sido relevantes?

De facto, na Europa, as energias renováveis estão a tornar-se cada vez mais importantes, até do que os combustíveis fósseis, portanto a transição energética está em curso. Ainda tem de ser acelerada, mas sentimos já que há muito a acontecer nesse sentido e isso ajuda já a baixar substancialmente os níveis de emissões, o que é muito positivo.  

Penso que a segunda área em que começamos já a ver algumas mudanças é no setor dos transportes. Essencialmente nos carros, mas também nos veículos pesados. Atualmente, temos companhias de camiões que já se tornaram 100% elétricas. Se conseguirmos ‘limpar’ o nosso sistema energético, isso também são boas notícias para o setor dos transportes, que acabam por fazer uma transição para o elétrico. Diria que primeiro deu-se a transição energética, mas que agora nos transportes já vemos também a mudança em curso.

O terceiro setor onde começamos já, também, a ver a realidade a mudar é no âmbito doméstico, no que toca aos modos de aquecimento e climatização. A ‘revolução’ das bombas de calor está a tornar-se, provavelmente, na terceira maior mudança em curso no âmbito desta transição, que pode também trazer boas notícias. 

Olhando ainda para a realidade inerente aos vários Estados-membros, quais assinala como os principais obstáculos a superar para que tais objetivos sejam concretizáveis?

Um dos principais está relacionado com a indústria, visto que muitos dos processos industriais precisam de uma mudança total nos seus modos de produção. Pense-se no aço, no cimento, no papel: existem muitas indústrias de utilização intensiva de energia. Para combater isso, precisamos de uma estratégia europeia, até porque existe a questão da dependência de recursos, pelo que também existe uma agenda geopolítica interligada a isso. Essa estratégia mais europeia é altamente necessária, porque se 27 países vão fazê-lo por conta própria, têm de garantir que têm recursos para isso.  

Penso que a nossa dependência geopolítica está a tornar-se menos ingénua e as pessoas começam a perceber que é preciso pensar sobre essa matéria

Vivemos agora uma nova guerra em território europeu, que aumentou a necessidade de estimular a produção de equipamento militar e munições. Podemos dizer que trouxe novos desafios para as resoluções europeias em matérias ambientais? Que impacto está a ter o conflito na Ucrânia nesse aspeto?

A guerra na Ucrânia, como é óbvio, traz más notícias para qualquer pessoa que se encontre em qualquer dos lados desta história. O único ponto positivo é ver que os grupos políticos mais ao Centro compreenderam o quão vulneráveis estávamos ao construir o nosso sistema energético a partir de combustíveis fósseis provenientes da Rússia. Esse reconhecimento agora existe, e as pessoas começam a perceber que também estamos igualmente dependentes da China. Penso que a nossa dependência geopolítica está a tornar-se menos ingénua e as pessoas começam a perceber que é preciso pensar sobre essa matéria.

Está já a União Europeia a tomar os passos certos para superar essas fragilidades que identificou?

Sim, mas a um nível ainda muito limitado. Este é um dos maiores desafios, e a UE tem de arranjar novas fontes, nomeadamente internas, para potenciar a sua estratégia industrial europeia. Mas há um segundo desafio, que passa pelo facto de termos de fazer isto, todos juntos, para conseguirmos uma economia mais circular. Se compreendermos que os recursos se tornam numa parte cada vez mais central dessa transição, temos de ser mais eficientes com os nossos recursos, e aqui a circularidade da nossa economia precisa de funcionar. E, de momento, facto é que ela continua a ficar para trás.

De que modo poderia ser estimulada uma maior circularidade no contexto da União Europeia? Existem formas suficientemente eficazes para potenciá-la?

Tal como previsto no Green Deal, precisamos não só de ser climaticamente neutros, mas também inteiramente circulares. De certo modo, está na agenda política, mas se analisarmos como estamos a lidar com a questão, vemos que a resposta é ainda bastante limitada. Por exemplo, lembrando algumas das propostas que surgiram como reação da UE à Lei de Redução da Inflação dos Estados Unidos, vimos que a economia circular quase não estava presente. Vemos, portanto, que essa ideia não está totalmente incorporada no nosso pensamento económico, e é algo crucial para conseguirmos cumprir os nossos objetivos climáticos, porque não podemos continuar a realizar esta transição sem pensar nos recursos. 

Existe ainda um terceiro grande desafio, que tem a ver com o nosso uso do sistema terrestre, dos terrenos. Foi isso que vimos com a Lei de Restauro da Natureza: a principal conclusão foi que em cada mudança que estamos a tentar alcançar em matérias de utilização de solos e agricultura, entre outros, é que temos ficado para trás. Com a reforma da Política Agrícola Comum (PAC), nada aconteceu realmente. Perdemos agora, novamente, bastante na Lei de Restauro da Natureza. Vamos ver o que acontece em matérias de pesticidas, que vai estar em foco depois do verão. Mas é necessário olhar para os nossos terrenos, de modo a fazer com que, em vez de serem uma fonte de emissões, se tornem um escoadouro das mesmas. E, claro, que também tivesse uma forma totalmente diferente de lidar com ‘inputs’ artificiais, como fertilizantes e pesticidas. Essa transição não está ainda a acontecer e é, claro, completamente crucial se queremos ser climaticamente neutros em 2050.

O desenvolvimento de e-fuels, em veículos de passageiros, nunca irá funcionar

Há alguns meses, a Alemanha chegou a um acordo com a Comissão Europeia sobre a proibição de novos automóveis com motores de combustão interna a partir de 2035, abrindo a exceção aos automóveis movidos a combustíveis eletrónicos (e-fuels). Como vê este acordo?

Penso que foi um acordo necessário para satisfazer os liberais do governo alemão e, sejamos sinceros, eles estão em negação. Eles ainda pensam que o motor de combustão pode sobreviver se nós conseguirmos arranjar maneira de o sustentar com novos combustíveis, limpos. Mas este ganho que os liberais conseguiram foi necessário para garantir que a Alemanha alinhava. Consequentemente, a Comissão Europeia vai agora, pelo menos, ter de dizer que se houver alguém a trabalhar com estes e-fuels, irá olhar atentamente para a matéria. Mas eu penso que o desenvolvimento de e-fuels, em veículos de passageiros, nunca irá funcionar. Neste momento, existe apenas um local de produção de e-fuels, na América Latina, para a Porsche. Portanto, diria que é algo importante apenas para os condutores da Porsche, o que foge a uma perspetiva mais social da questão. Até porque a sua produção anual é apenas suficiente para alimentar um avião que voe, uma única vez, da América Latina para a Europa.

Quer dizer, assim, que os e-fuels não são uma solução válida?

Até as próprias fabricantes de carros têm dito que assim que o motor elétrico conseguir ser efetivamente competitivo - e está realmente já a chegar a esse ponto, até porque os preços estão a descer -, o motor de combustão é tirado da equação. Pois não tem condições para continuar a competir: é barulhento e causador de emissões, enquanto o elétrico é mais eficiente e, provavelmente, será mais barato. Mas, neste momento, ainda que o seu uso seja mais económico, a sua aquisição ainda é mais cara, embora estejamos cada vez mais perto de chegarmos a um equilíbrio nesta matéria, face aos motores de combustão. 

Diria que o e-fuel é, portanto, um sonho irrealizável dos liberais. É capaz de acabar por ser utilizado em alguns aviões, mas ainda levará algum tempo. Os carros, apesar deste acordo com a Comissão Europeia, irão irremediavelmente tornar-se elétricos. Podemos ficar em negação, como está a acontecer com os liberais, mas dentro de cinco anos acabaremos, se nada for feito, a comprar carros elétricos à China - e aí tentaremos fazer essa mudança e pedir aos produtores europeus para aderirem a essa revolução.

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