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"Ensinar empatia para com os animais é, muitas vezes, proteger pessoas"

Laurentina Pedroso, provedora nacional do Animal, é a convidada desta terça-feira do Vozes ao Minuto.

"Ensinar empatia para com os animais é, muitas vezes, proteger pessoas"
Notícias ao Minuto

25/07/23 por Daniela Filipe

País Animais

Após uma primeira edição, no ano passado, o Centro Cultural de Belém voltou a ser palco da conferência 'The Link', que se propôs, uma vez mais, a discutir a "ligação entre a violência contra os animais e a violência entre pessoas". Na verdade, estudos realizados nos Estados Unidos comprovaram que 70% daqueles que cometeram crimes violentos contra animais tinham antecedentes criminais por violência contra pessoas.

Mas a ligação não se fica por aí: se 59% das mulheres revelaram ter adiado a saída de casa por medo de deixar os animais de estimação nas mãos do seu agressor, 67% das crianças residentes em casas de abrigo para vítimas de violência doméstica confessaram ter testemunhado o seu animal de estimação ser alvo de maus-tratos.

Estes e outros dados foram corroborados pela provedora do Animal, Laurentina Pedroso, que, em conversa com o Notícias ao Minuto, reiterou a importância de educar não só a sociedade, mas também as autoridades – sejam elas forças de segurança, de ação social ou até mesmo médicos veterinários – para os sinais que ligam a violência contra pessoas e a violência contra os animais, uma vez que, na sua ótica, "a proteção dos animais enquanto sociedade denota também um sinal de educação de que o mesmo respeito é esperado com as pessoas".

Nessa linha, a antiga bastonária da Ordem dos Médicos Veterinários considerou que "ensinar empatia e sensibilidade para com os animais é, muitas vezes, proteger as pessoas", tendo, por isso, ressalvando que se a lei de proteção aos animais vier a ser considerada inconstitucional, "não podemos ter um vazio legal que, dada a gravidade dos atos que são cometidos contra os animais, deixe os agressores impunes".

Mais de metade das mulheres que saíram para abrigos revelaram que viram os seus animais ser agredidos, e quase 90% disse que o animal foi usado para as intimidar e coagir no próprio domínio que o agressor tem sobre a vítima

Qual a relação entre a violência para com certos membros de um agregado familiar e os animais de estimação?

Essa relação é óbvia, está bastante bem documentada e está bastante bem traduzida em legislação nos vários países. Sabe-se que a violência doméstica, quase sempre contra mulheres, crianças e idosos, está relacionada com a violência contra os animais. É frequente a violência ser praticada contra as mulheres, contra as crianças, e contra os seres dependentes, como os idosos. Essa relação é trabalhada em vários países e traduzida numa legislação de proteção.

Mais de metade das mulheres que saíram para abrigos revelaram que viram os seus animais ser agredidos, e quase 90% disse que o animal foi usado para as intimidar e coagir no próprio domínio que o agressor tem sobre a vítima – não só para que não o denunciassem, mas também para que regressassem a casa quando tiveram a coragem de fazer uma denúncia e de procurar abrigo.

É óbvio que nem toda a gente que maltrata animais maltrata pessoas, mas temos dados de que mais de 70% de pessoas convictas por crimes violentos contra pessoas já estavam referenciadas por crimes contra animais

O facto de os animais serem usados como forma de manipulação expõe, de certa forma, o quão indefesos são e o quanto dependem dos cuidadores. Nessa linha, que papel é que os animais podem ter para as vítimas e para as crianças que assistem a essa violência?

É importante mencionar que a agressão e a agressividade geram, muitas vezes, comportamentos de agressão e de agressividade. No âmbito da violência doméstica, da violência familiar, uma grande parte das mulheres afirmou que as crianças assistiam à agressão, tendo visto essas suas crianças tornarem-se elas próprias agressores dos animais, o que é preocupante.

Muitas vezes, estes atos vão perpetuar-se noutras situações avaliadas como agressividade nas próprias escolas, entre elas bullying com colegas, e outros comportamentos graves na adolescência. É óbvio que nem toda a gente que maltrata animais maltrata pessoas, mas temos dados de que mais de 70% de pessoas convictas por crimes violentos contra pessoas já estavam referenciadas por crimes contra animais, e o comprovativo dessa ligação é muito importante.

Cada vez mais os médicos veterinários devem, de uma forma muito perspicaz, avaliar o tipo de sintomas que os animais que recebem nos seus consultórios têm, e se as lesões que apresentam são típicas da descrição do dono. Por exemplo, como é que um animal que não sai de casa está sempre com fraturas? Antes de haver a obrigatoriedade da classe médica denunciar a violência contra as crianças, os agressores costumavam justificar as fraturas ao dizer que eram ‘irrequietas’. Não. Temos é de pensar se a criança é irrequieta, ou se está a ser vítima de lesões. Também não há animais irrequietos.

O mecanismo tem de ser logo dar uma proteção cautelar àquele animal, até que sejam averiguados os factos. Com o tempo que demoramos hoje em dia, o animal já não consegue testemunhar por si

Quando um animal vai constantemente ao veterinário com um conjunto de lesões, o veterinário tem de saber que o animal pode estar a ser vítima de agressões pelo seu detentor ou por alguém próximo do detentor. Por isso, uma das sugestões em cima da mesa é a obrigatoriedade de reporte por parte dos médicos quando há estas situações.

Agora, um veterinário pode reportar, mas o sistema não está expedito para que o animal seja protegido. Um animal com fraturas consolidadas, por exemplo, não pode sequer sair do consultório e ser devolvido ao dono – o mecanismo tem de ser logo dar uma proteção cautelar àquele animal, até que sejam averiguados os factos. Com o tempo que demoramos hoje em dia, o animal já não consegue testemunhar por si.

Geralmente, o que é que acontece aos animais quando as vítimas conseguem deixar esse ciclo de abuso?

Muitas vezes, nestas circunstâncias, mais de 50% das mulheres afirmou que atrasou a saída de casa ou a procura de ajuda porque não sabia o que fazer ao animal de estimação, que poderia ficar com o agressor. Defendemos que a mulher tem de poder sair com este animal e, para isso, temos de ter medidas cautelares de que quando um juiz delibera que há uma medida de afastamento do agressor em relação àquela família, também o há em relação ao animal, e que o animal fica com a mulher e com as crianças.

Apelamos por um conjunto de medidas que não só dão uma solução de abrigo imediato, nem que seja temporário, para as mulheres poderem sair e levar os seus animais, como a nível judicial haver uma medida cautelar para a proteção do animal, que fica para trás.

Hoje sabemos que é realmente um fator fraturante deixar um animal de estimação para trás, e são muitos os casos em que animais são mortos por retaliação

Concluímos que é fácil ajustar as casas de abrigo para puderem receber os animais das vítimas. Muitas vezes os entraves são as alergias das outras pessoas que vivem nesse abrigo, mas esse foi um dos pontos que foi desdramatizado. As pessoas que têm alergias a animais têm alergias a animais da mesma forma em que, quando vão às compras, estão sujeitas a contactar com outras pessoas que têm animais.

Portanto, existe um conjunto de soluções práticas e pragmáticas para acabar com este estigma de que os animais não podem ir para abrigos porque outras utentes têm alergias. Com custos muito reduzidos e jaulas apropriadas, podemos ter a solução de todas as vítimas poderem confortar-se mutuamente. Hoje sabemos que é realmente um fator fraturante deixar um animal de estimação para trás, e são muitos os casos em que animais são mortos por retaliação.

Este assunto existe e temos de proteger todas as vítimas do fenómeno da agressão. Começámos a falar sobre este tema recentemente, e ainda temos de o trabalhar, porque é preciso haver legislação adequada, em que tudo isto possa ser efetivo e praticado. Uma das minhas recomendações é que no crime de violência doméstica, que inclui a violência física e psicológica, os animais sejam considerados como parte deste fenómeno de violência psicológica. Isto porque sabemos que os animais são usados para coagir, intimidar e exercer poder sobre a vítima nessa relação de fragilidade.

Temos de trabalhar uma consciência coletiva de que, hoje em dia, o bem-estar e a proteção dos animais enquanto sociedade denota também um sinal de educação de que o mesmo respeito é esperado com as pessoas. Portanto, o exemplo dos animais vai extrapolar-se para o ser humano, e ensinar empatia e sensibilidade para com os animais é, muitas vezes, proteger as pessoas

O ministro do Ambiente e da Ação Climática, Duarte Cordeio, mencionou algumas medidas que o Governo está a avaliar para responder a este problema; qual a importância destas propostas? 

A relação entre a violência doméstica e a violência contra animais existe, e é bastante importante. Aquilo que é preciso definir de uma forma clara para combater estas situações são aquilo a que chamamos políticas ‘The Link’, desta ligação entre a agressividade ao ser humano e a agressividade aos animais. Essas políticas envolvem um conjunto de recomendações que enviei ao Governo. O ministro do Ambiente e da Ação Climática, Duarte Cordeio, já mencionou algumas delas, mas continuamos a trabalhar.

Temos de trabalhar uma consciência coletiva de que, hoje em dia, o bem-estar e a proteção dos animais enquanto sociedade denota também um sinal de educação de que o mesmo respeito é esperado com as pessoas. Portanto, o exemplo dos animais vai extrapolar-se para o ser humano, e ensinar empatia e sensibilidade para com os animais é, muitas vezes, proteger as pessoas. Esta ligação foi trabalhada num evento que realizámos em Lisboa, no mês passado, e num conjunto de webinars específico àquelas áreas que são mais críticas, como as forças policiais e a ação social.

As forças policiais são, muitas vezes, chamadas em denúncias de violência doméstica, ou em denúncias de maus-tratos a animais, e a ação social intervém na violência e proteção das crianças. Aquilo que percebemos é que é importantíssimo que estes dois grupos trabalhem de uma forma organizada, para estarem atentos aos sinais de violência doméstica e de violência para com um animal. O que é que se passa com as mulheres nessa família? O que é que se passa com as crianças nessa família?

A ação social, por sua vez, quando é chamada para ver casos de violência contra crianças, tem de perceber que quase sempre há uma ligação em que os seres mais desprotegidos podem estar a ser vítima do mesmo tipo de agressão. Isto para não deixarmos o outro ser frágil, que é o animal, e que hajam medidas de proteção a nível jurídico para acautelar que esse animal também tem a devida proteção.

A parte humana alerta para a parte animal, e a parte animal alerta para a parte humana

Foi muito interessante ver que o superintendente da Polícia de Segurança Pública (PSP), que não estava a fazer esta ligação, foi cruzar informação das vezes que a PSP tinha sido chamada por uma situação animal ou de uma situação humana, tendo encontrado uma percentagem em que foram chamados à mesma casa por momentos diferentes por violência contra as pessoas e por violência contra os animais, e não as ligaram. Toda esta sensibilização de que este fenómeno existe é fundamental para que possamos começar a dar os primeiros passos para combater e para solucionar este problema. São muitos os países que estão a pensar também desta forma avançada na Europa, como é o caso do Reino Unido e dos Países Baixos.

Outra medida abordada na conferência foi a possibilidade de os abrigos que recebem as mulheres, em situação temporária ou de emergência, puderem receber os animais.

Tivemos também um webinar com procuradores e juízes, exatamente para perceberem que têm de criar medidas cautelares não só para as vítimas humanas, mas para as vítimas animais, assim como um conjunto de outras medidas que espero vir a trabalhar. A parte humana alerta para a parte animal, e a parte animal alerta para a parte humana.

Se a lei de proteção aos animais vier a ser considerada inconstitucional, não podemos ter um vazio legal que, dada a gravidade dos atos que são cometidos contra os animais, deixe os agressores impunes

Desde que conversámos pela última vez, no final de 2022, que avanços é que foram feitos para que os maus-tratos a animais passassem a fazer parte da Constituição?

Esse tema está e continuará em cima da mesa. Aquilo que continuo a reforçar ao Governo, porque já o propus o ano passado, é que os animais de companhia sejam incluídos na Constituição. Nem sequer é algo impossível ou novo, porque há mais de 21 anos que os alemães colocaram os animais na sua constituição com três palavras simples: proteger a natureza – e os animais. Como o processo de revisão constitucional é moroso, e caso o Tribunal Constitucional venha a declarar que a norma que temos de crime de prisão em termos de situações graves de maus-tratos a animais não é constitucional, podemos continuar a ter algum enquadramento de punirmos estas pessoas por outra via.

O que propus foi a criação de um regime expedito, semelhante àquele que temos no caso das infrações rodoviárias, em que se criou uma entidade própria que leva a cabo todo esse tipo de infrações. Portanto, teria os processos todos de forma organizada, para que pudesse, de alguma forma, colmatar o que passa hoje – muitas vezes os processos ou não são bem constituídos, ou estão tão dispersos que não chegam a ser eficazes.

Seria também criado um regime de contraordenações com valores dissuasores, que não impedisse que um crime fosse julgado como crime, e que existisse até tivéssemos tudo isto solucionado. Se a lei de proteção aos animais vier a ser considerada inconstitucional, não podemos ter um vazio legal que, dada a gravidade dos atos que são cometidos contra os animais, deixe os agressores impunes.

Num momento em que vamos estar novamente em altura de fogos, os animais têm de poder agir de acordo com a sua fisiologia, e a possibilidade de se movimentar e de fugir de uma ameaça. Um animal acorrentado não tem qualquer hipótese de procurar ajuda

A alteração de colocarmos os animais na Constituição, que para mim é um ponto de honra, seja a lei de proteção aos animais considerada constitucional ou não, é um sinal para as próximas gerações de uma sociedade que se preocupa com os animais.

Qualquer um de nós consegue entender que há crimes contra os animais, e se os animais não estão protegidos na Constituição, temos de ter outros mecanismos que sejam mais fáceis para garantir que estas infrações são condenadas. As pessoas que não possam pagar estas coimas por problemas sociais ou económicos graves podem fazer trabalho comunitário e prestar trabalho à sociedade, para perceberem que os maus-tratos contra os animais não são uma situação inócua.

O regulamento de bem-estar que o Governo está a preparar vai ser muito importante. Temos feito avanços em todas estas matérias, mas acho que é muito importante que este novo regulamento continue a olhar para o bem-estar animal de forma a que não haja receio de medidas populares ou não populares.

Uma das medidas que acho fundamental é terminarmos com os animais acorrentados, porque é um atentado à saúde animal. Há animais que passam toda a vida acorrentados, muitos deles ao sol e à chuva, com carências alimentares e com carência de liberdade. Num momento em que vamos estar novamente em altura de fogos, os animais têm de poder agir de acordo com a sua fisiologia, com a possibilidade de se movimentar e de fugir de uma ameaça. Um animal acorrentado não tem qualquer hipótese de procurar ajuda.

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