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Vozes ao Minuto: "As doenças oncológicas raras, no seu conjunto, não são nada raras"

Vozes ao Minuto: Júlio Oliveira, presidente do Instituto Português de Oncologia do Porto Francisco Gentil (IPO do Porto), é o convidado desta terça-feira do Vozes ao Minuto.

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© IPO do Porto

Daniela Filipe
07/02/2023 09:30 ‧ 07/02/2023 por Daniela Filipe

País

IPO do Porto

Considerado a segunda principal causa de morte a nível mundial, logo após as doenças cardiovasculares, o cancro continua a 'ceifar' vidas em Portugal, apresentando uma tendência crescente. Num cenário marcado pelo cansaço pandémico, aliado às consequências económicas da guerra na Ucrânia, os desafios adensam-se para os profissionais de saúde portugueses, que "estão, e bem, mais exigentes" no que toca à conciliação entre a sua vida privada e profissional, e ao reconhecimento associado ao chamado 'salário emocional'.

Se, por um lado, a atividade assistencial mostra uma recuperação "clara" após o momento crítico da pandemia, a pressão sobre os clínicos é, também, crescente, o que "está a criar problemas na capacidade de resposta". Quem o garante é Júlio Oliveira, presidente do Instituto Português de Oncologia do Porto Francisco Gentil (IPO do Porto), que, a propósito do Dia Mundial da Luta Contra o Cancro, que se assinalou no passado dia 4 de fevereiro, 'pintou' o cenário da oncologia em Portugal, em conversa com o Notícias ao Minuto.

Segundo o responsável, Portugal continua a ter "um número muito grande de doenças oncológicas em que o diagnóstico precoce não é possível", como é o caso dos cancros raros que, na realidade, "não são nada raros". Estas neoplasias "correspondem a mais de 20% de todos os diagnósticos, e estão fora do espectro do rastreio". Sem medidas de combate à precariedade, aos custos da inovação e à deterioração do Serviço Nacional de Saúde (SNS), Júlio Oliveira alerta que "caminhamos para um sistema que é financeiramente insustentável", que condicionará o "acesso à inovação e aos melhores cuidados".

Estamos a notar, principalmente nos grandes centros, que há uma tendência de aumento de referenciação, o que nos leva a viver com esta pressão permanente de garantir a assistência dos doentes com a qualidade necessária

Qual o panorama atual da oncologia em Portugal, tendo em conta o impacto da pandemia da Covid-19 nos diagnósticos?

Já houve uma tendência clara de normalização da atividade. Houve impacto com a pandemia, certamente, principalmente durante o ano de 2020 – notou-se claramente durante aqueles meses em que os cuidados de saúde primários estiveram particularmente afetados e com muito menor atividade. Houve muito menos referenciações de novos doentes para o IPO, mas já houve um retomar de atividade.

Em 2022, o IPO teve o seu segundo ano com maior número de doentes admitidos. Só em 2016 é que o IPO teve um número superior. Foram cerca de 11.500 novos doentes. Do ponto de vista de atividade cirúrgica, não houve grande oscilação nos últimos anos. O IPO do Porto tem o dobro do segundo maior centro do país em número de cirurgias oncológicas – é claramente a instituição que mais trata doentes oncológicos no país. Mesmo a nível europeu, é um número muito significativo e é dos maiores centros no diagnóstico e tratamento do cancro.

Alinhado com aquilo que é a tendência a nível mundial, [o cancro] é a segunda causa de morte, a seguir às doenças cardiovasculares, [em Portugal]

Por exemplo, na área da oncologia médica, 2022 bateu todos os recordes em termos de consultas – foram quase 60 mil, com grande pressão sobre os profissionais de saúde, porque os recursos humanos não são elásticos, pelo contrário. Atendendo ao absentismo relacionado com a parentalidade, felizmente para o país, mas com grande pressão nos serviços de saúde, há um número maior de consultas por médico, e isso está a criar problemas na capacidade de resposta, que estão a ser colmatados com grande esforço dos profissionais de saúde – não só durante o período mais crítico da pandemia, em que houve uma necessidade de reinventar o circuito, de trabalhar sob muita pressão, [mas também] agora. Estamos a notar, principalmente nos grandes centros, que há uma tendência de aumento de referenciação, o que nos leva a viver com esta pressão permanente de garantir a assistência dos doentes com a qualidade necessária.

Recentemente, foram publicados dados sobre a posição de Portugal em relação aos outros países europeus na área do cancro, do tratamento, do acesso e dos rastreios e, alinhado com aquilo que é a tendência a nível mundial, [o cancro] é a segunda causa de morte, a seguir às doenças cardiovasculares. Portugal tem uma mortalidade elevada em relação ao cancro colorretal, que acaba por ser a principal causa de morte. Portanto, é uma das áreas em que existe rastreio de base populacional, [tendo sido identificado como] um dos parâmetros em que é preciso melhorar.

O cancro do pulmão é aquele que mais anos de vida retira à sociedade e, apesar de incidir numa população um pouco mais idosa, contando todos os anos de vida que são retirados, é o cancro mais impactante

O ministro da Saúde anunciou o alargamento dos rastreios oncológicos, com projetos-piloto para o cancro do pulmão, da próstata e do estômago. Que papel é que estes mecanismos representam e qual a sua importância?

É sempre importante perceber o ponto de partida, para percebermos o ponto em que estamos, que evolução é que houve e onde é que se pode melhorar. Claramente que esta é uma das áreas que evoluiu positivamente. Houve uma recuperação em relação ao período da pandemia e, agora, há novos desafios, que são os novos rastreios que foram anunciados, que vão implicar uma análise muito cuidada. Antes de passarmos para um rastreio de base populacional, vai ser importante desenvolvermos alguns projetos-piloto, para conseguirmos perceber o impacto que têm nas populações que sejam abrangidas, antes de fazermos a generalização da população – não só a avaliação económica, mas também a avaliação da efetividade dos rastreios.

Portugal, e principalmente o Norte do país, é uma das regiões do mundo onde a incidência de cancro gástrico é mais elevada, pelo que faz todo o sentido que exista investimento nesta área. Temos profissionais do IPO do Porto que estão na linha da frente do planeamento do rastreio do cancro digestivo e, agora, do cancro gástrico. Mas também outras áreas, como o cancro do pulmão e da próstata. Mais uma vez, será muito importante testarmo-los com uma metodologia sólida e que permita obter as informações necessárias para, depois, podermos escalar a todo o país.

Estas áreas estão identificadas como sendo importantes porque têm uma mortalidade elevada, principalmente no que respeita ao cancro do pulmão. O cancro do pulmão é aquele que mais anos de vida retira à sociedade e, apesar de incidir numa população um pouco mais idosa, contando todos os anos de vida que são retirados, é o cancro mais impactante.

A prevenção não pode estar centrada no Ministério da Saúde – tem de envolver outros ministérios. Tem de envolver a educação, a juventude, mas tem de ser transversal a toda a sociedade – não pode ser uma coisa setorial

Os dados internacionais apontam para [o facto de que] podemos somar o cancro da mama, próstata e cólon e, mesmo assim, não atingem os anos de vida perdidos em relação ao cancro do pulmão. Há um fator que está claramente associado, que é o tabaco. Apesar de haver uma tendência de redução do tabagismo em Portugal nos últimos anos, continuamos a ter uma população que fuma muito e, além do rastreio, é preciso apostar na prevenção – um dos pilares da Estratégia Nacional de Luta Contra o Cancro.

Apesar do consumo de tabaco estar abaixo, o álcool e a obesidade são problemas que estão acima da média da União Europeia. Um outro aspeto importante para avaliar em termos de prevenção é a vacinação contra o HPV e, aí, Portugal é um dos bons exemplos a nível mundial, com a generalização da vacina à população feminina, mas também masculina. Vamos começar a ver esses efeitos agora.

O rastreio do cancro do colo do útero é um dos rastreios que, neste momento, está em vigor em âmbito nacional, com algumas lacunas, [já que] o rastreio do cancro da mama acaba por ter maior cobertura e aceitação por parte das mulheres em idade elegível. Mas é uma realidade que, nos próximos anos, se espera que vá mudar de forma muito significativa, por causa do efeito das vacinas.

Só podemos dar passos no conhecimento, não só académico, mas também no conhecimento que se traduz em tecnologia que fica disponível para os doentes, através da promoção da investigação clínica. Quanto mais tempo passa, menos oportunidade temos. Mas Portugal tem oportunidade de ainda poder apanhar o comboio da inovação

Há muito trabalho para fazer em relação à prevenção, que não envolve só o Ministério da Saúde. A prevenção não pode estar centrada no Ministério da Saúde – tem de envolver outros ministérios. Tem de envolver a educação, a juventude, mas tem de ser transversal a toda a sociedade – não pode ser uma coisa setorial, só da responsabilidade da área da saúde. Cada vez mais está a ser discutido a nível europeu o envolvimento da própria sociedade civil – não só dos doentes e dos familiares dos doentes, mas da sociedade como um todo, para a promoção da saúde.

No que respeita aos doentes oncológicos, aquilo que se está a procurar fazer é ter um maior envolvimento dos familiares, aumentando a literacia para a saúde e, acima de tudo, que sejam um aliado na luta contra a doença e na criação de melhores condições, como já acontece noutros países, com o envolvimento das organizações de doentes, para que o combate ao cancro possa ser mais eficiente. Por exemplo, criando condições para que a investigação clínica possa chegar a mais doentes. Esta é uma das áreas que é absolutamente essencial.

Nessa linha, e apesar dos bons resultados do IPO do Porto enquanto ‘hub’ de investigação e do consórcio com o i3S, considera que Portugal está atrasado na inovação no que toca ao tratamento do cancro?

Quando estamos a falar em assistência e tratamento, cada vez mais é considerado que a investigação clínica entre no contínuo de cuidados que são oferecidos aos doentes oncológicos e que não seja uma coisa que apareça se houver tempo para isso. Tem de ser integrada no coração, no processo do tratamento. Só podemos dar passos no conhecimento, não só académico, mas também no conhecimento que se traduz em tecnologia que fica disponível para os doentes, através da promoção da investigação clínica. Quanto mais tempo passa, menos oportunidade temos. Mas Portugal tem oportunidade de ainda poder apanhar o comboio da inovação.

Há países europeus com uma dimensão semelhante à portuguesa que estão bastante mais robustos, com mais capacidade e estrutura para captar os ensaios clínicos tanto da indústria farmacêutica, como da academia. Portugal tem de dar esse salto, criando condições que permitam que os médicos dos centros, nomeadamente dos hospitais, se possam concentrar no tratamento, na ciência propriamente dita, e que toda a complexidade burocrática e logística associada à investigação clínica possa ser resolvida por outros profissionais de saúde que trabalhem em equipa com os clínicos. Não pode ser um crescimento anémico, como temos visto nos últimos anos.

Continuamos a ter um número grande de doenças raras que, no seu somatório, correspondem a mais de 20% de todos os diagnósticos, e que estão fora deste espectro do rastreio. Significa que vamos continuar a ter, infelizmente, uma tendência de aumento de casos com o envelhecimento da população

O custo da inovação é absolutamente crítico. Uma das formas de conseguirmos reduzir o custo da inovação é termos mais ensaios clínicos que permitam que os doentes possam ter opções de tratamento em contexto de investigação. A inovação, especialmente na área da oncologia, corresponde a cerca de ¼ do investimento que está a ser feito na área biomédica, porque o retorno para a indústria farmacêutica é muito grande. Do ponto de vista de peso orçamental, a inovação em instituições como o IPO do Porto corresponde a cerca de quase metade do orçamento recebido do Estado. É um peso insustentável, com uma tendência de crescimento.

Infelizmente, há um número muito grande de doenças oncológicas em que o diagnóstico precoce não é possível. Continuamos a ter um número grande de doenças raras que, no seu somatório, correspondem a mais de 20% de todos os diagnósticos, e que estão fora deste espectro do rastreio. Significa que vamos continuar a ter, infelizmente, uma tendência de aumento de casos com o envelhecimento da população. Com a evolução da tecnologia, da inovação e dos seus custos, caminhamos para um sistema que é financeiramente insustentável.

O ecossistema da saúde e dos seus profissionais é cada vez mais complexo e, com salários baixos, é muito difícil conseguir reter os profissionais. Não estou a falar sequer na sua retenção no setor público, mas na sua retenção em Portugal, principalmente as novas gerações

Na perspetiva do cidadão português, sem o Serviço Nacional de Saúde (SNS), quem tem o azar de sofrer de uma doença oncológica, principalmente em contexto avançado, onde o custo do medicamento é muito significativo, nem os próprios seguros de saúde são capazes de dar resposta na plenitude. Frequentemente, aquilo que acaba por acontecer é que tem de ser mesmo o Estado a assumir esse custo e, se não existir um SNS robusto, todos nós como sociedade vamos sofrer e vamos ter limitação no acesso à inovação e aos melhores cuidados. Felizmente, em Portugal não há só esperança, há dados concretos de que por mais defeitos que o sistema tenha, continua a ser um garante de acessibilidade, e a área do cancro é das mais gritantes. Estamos cerca de 20% abaixo da média em termos de custos, mas o impacto do medicamento é mais alto percentualmente.

Contudo, o custo com recursos humanos em Portugal é mais baixo em relação a outros países europeus, que é o resultado de salários mais baixos, o que está a contribuir para a fuga de profissionais qualificados – não estamos a falar só de médicos, mas também de enfermeiros, farmacêuticos e de técnicos de saúde especializados em áreas de grande diferenciação, desde a medicina nuclear à radioterapia. O ecossistema da saúde e dos seus profissionais é cada vez mais complexo e, com salários baixos, é muito difícil conseguir reter os profissionais. Não estou a falar sequer na sua retenção no setor público, mas na sua retenção em Portugal, principalmente as novas gerações. Tem de ser corrigido com brevidade. Caso contrário, vamos sofrer muito e estamos a formar excelentes profissionais de saúde para outros países com muito maior poder económico os virem buscar.

Que iniciativas e inovações é que o IPO do Porto está, então, a desenvolver?

O IPO do Porto tem, por ano, cerca de 300 doentes incluídos em ensaios clínicos. Em 2022, tínhamos 450 doentes que estavam inseridos em ensaios clínicos. Tínhamos 158 ensaios ativos, pelo que somos, de longe, o maior centro de investigação clínica em oncologia no país. Tivemos uma recertificação recente por parte da Organization of European Cancer Institutes (OECI), que é a organização europeia dos centros oncológicos e é a única entidade que está capacitada para certificar a qualidade dos centros oncológicos.

Em Portugal existem três [centros reconhecidos pela OECI] – dois são centros clínicos, o IPO de Lisboa e de Coimbra, e um centro compreensivo [IPO do Porto]. Ou seja, não só do ponto de vista assistencial, mas também do ponto de vista de investigação, de translação e clínica, cumpre os requisitos. Esse reconhecimento é no âmbito de um consórcio que existe entre o IPO do Porto e o i3S – as duas entidades juntas acabam por ser o núcleo que mais produz ciência na área da oncologia em Portugal. Este reconhecimento é muito importante, não só pelo trabalho que é feito pelos profissionais, mas pela estratégia que temos desenvolvido de forma consistente para [o IPO do Porto] ser referência e ter como referência as melhores práticas a nível europeu.

O IPO do Porto tem a primeira unidade de ensaios clínicos de fase 1 em Portugal em oncologia. A unidade de investigação clínica do IPO do Porto foi criada em 2006 mas, em 2019, foi formalizada a unidade de ensaios clínicos de fase 1. [É importante porque] os ensaios de fase 1 são ensaios em que, pela primeira vez, se está a experimentar em seres humanos um novo medicamento ou uma nova combinação de medicamentos.

Apesar de existir uma expectativa de grande benefício quando os doentes entram neste tipo de ensaios, existe também um maior grau de incerteza em relação à segurança e eficácia dos medicamentos

Do ponto de vista logístico, são processos muito mais exigentes – obrigam a mais consultas, a uma monitorização de segurança muito mais apertada, e implica que existam equipas dedicadas, para que o doente esteja o mais salvaguardado possível. Apesar de existir uma expectativa de grande benefício quando os doentes entram neste tipo de ensaios, existe também um maior grau de incerteza em relação à segurança e eficácia dos medicamentos. Isto permite antecipar em vários anos o acesso a vários doentes a tecnologias de medicamento que, de outra forma, não teriam acesso.

Também criámos o primeiro programa de medicina de precisão em oncologia, que está intimamente ligado com a unidade de ensaios clínicos de fase precoce. Cada vez mais os ensaios clínicos são dirigidos por características moleculares do tumor, os chamados biomarcadores, e para isso é preciso criar o ‘bilhete de identidade’ do tumor. Felizmente, a tecnologia tem evoluído de forma muito rápida e com uma redução muito significativa dos custos. Neste momento, começa a ficar democratizada a possibilidade de os doentes fazerem a sequenciação de nova geração com painéis de análise de genes relacionados com cancro, que nos permite perceber melhor a biologia do cancro e identificar potenciais alvos de tratamento. Isto é importante principalmente em doentes que já esgotaram as opções de tratamento.

As doenças oncológicas raras, no seu conjunto, não são nada raras. Correspondem a mais de 20% das doenças oncológicas

O IPO do Porto tem esse programa montado nesses moldes, para adultos e crianças, no sentido de procurar identificar potenciais tratamentos em contexto experimental que possam ser úteis para o doente, quer seja em Portugal, quer seja fora do país [e, por isso,] temos uma rede já estabelecida com outros centros.

Fomos também o primeiro centro a nível nacional a ter uma tecnologia de CAR T-cells, que é um tipo de tratamento absolutamente revolucionário para doentes com determinado tipo de doenças malignas do sangue, nomeadamente linfomas. Foi em 2019 que iniciámos o primeiro tratamento e, desde aí, já mais de 50 doentes tiveram acesso a esta tecnologia.

No caso das doenças oncológicas raras, como os sarcomas, não há grande literatura. Estará isso relacionado com fatores de financiamento? Que passos é que o IPO do Porto está a tomar nesse sentido?

As doenças oncológicas raras, no seu conjunto, não são nada raras. Correspondem a mais de 20% das doenças oncológicas. O IPO do Porto está envolvido em vários projetos de investigação básica, de translação e clínica que envolvem também doenças raras. Por exemplo, em 2019, iniciámos uma participação num projeto pan-europeu, promovido pela Organização Europeia para Pesquisa e Tratamento do Cancro (EORTC), e fomos pioneiros em Portugal. Entretanto, outros centros portugueses também se juntaram neste projeto que se chama SPECTA, e que consiste na caracterização do tumor.

É constituído por três subprojetos: um mais relacionado com tumores, em que há expectativa que sejam sensíveis a imunoterapia, outro focado em adolescentes e jovens adultos, e um outro centrado em tumores raros, onde incluímos muitos doentes com sarcomas e outras patologias raras. Esta foi, de certa forma, a âncora do nosso programa de medicina de precisão. Aprendemos muito com esta participação e fomos o centro que mais doentes incluiu neste projeto a nível europeu, onde temos cerca de 300 doentes. É um projeto académico, financiado com dinheiro da comunidade europeia, com cofinanciamento de alguma indústria farmacêutica.

É preciso que exista uma política que facilite a contratação de profissionais de saúde qualificados, que seja ágil nessa contratação, e que permita que os hospitais consigam ter equipas de suporte aos clínicos, para que possamos ser mais eficientes a captar os ensaios clínicos e a incluir os doentes

Estes são só alguns dos exemplos no empenho do IPO em avançar no conhecimento, mas também num tipo de investigação que permita não só conhecer melhor a doença, mas abrir mais oportunidades de tratamento. Claro que há sempre a sensação de que precisamos de mais, mas para podermos ter mais investigação clínica, precisamos de ter melhores condições nos centros, para que os médicos possam estar libertos para se focarem na ciência e na assistência.

Para isso, é preciso que exista uma política que facilite a contratação de profissionais de saúde qualificados, que seja ágil nessa contratação, e que permita que os hospitais consigam ter equipas de suporte aos clínicos, para que possamos ser mais eficientes a captar os ensaios clínicos e a incluir os doentes, de forma a que a investigação seja parte da prática corrente do tratamento. É essencial em áreas em que sabemos pouco, ou temos menos casos, que aqueles casos que temos possam ser absolutamente escrutinados sobre o resultado dos tratamentos e das consequências, para podermos mais rapidamente evoluir.

Estamos muito longe de uma realidade em que o cancro não é encarado como um ‘bicho papão’ e tem cura? 

Em algumas áreas, o cancro pode ser curável e, felizmente, temos uma fatia cada vez maior de pessoas que sofreram de doença oncológica que são consideradas sobreviventes e que têm uma expectativa de sobrevivência superior àquilo que era a realidade há poucos anos.

Para termos um maior impacto após o diagnóstico da doença oncológica, temos de diagnosticar em fases mais precoces – daí os rastreios, a consciencialização e o aumento da literacia serem absolutamente essenciais. Felizmente também, muitos doentes com doença mais avançada, quer localmente, quer metastizada, começam a ter opções de tratamento que permitem tornar a doença oncológica avançada numa doença com características de doença crónica.

Não podemos falar ainda de forma generalizada de uma cura para o cancro, porque quando falamos em cancro estamos a falar de muitas doenças, com características biológicas muito distintas, cujo tratamento vai variar imensamente de acordo com essas características biológicas, e o prognóstico acaba por ser bastante diferente.

Não podemos tratar tudo em todo o lado, pelo que, principalmente em doenças mais raras ou tecnologias mais complexas, tem de haver alguma centralização, para podermos oferecer aos doentes a experiência desses cuidados. Mas, depois, é preciso haver capilaridade

Os sobreviventes estão cada vez mais a ser uma preocupação, não só na população pediátrica, sobre a qual temos maior expectativa que possam sobreviver e ficar curados. Cada vez mais temos sobreviventes da doença oncológica e é necessário que haja uma adaptação dos cuidados de saúde, com a articulação entre os centros oncológicos e os cuidados de saúde primários para o seguimento destes doentes. Centros como os IPO devem estar focados naquilo que é mais complexo, naquilo que é o tratamento mais diferenciado.

Não podemos tratar tudo em todo o lado, pelo que, principalmente em doenças mais raras ou tecnologias mais complexas, tem de haver alguma centralização, para podermos oferecer aos doentes a experiência desses cuidados. Mas, depois, é preciso haver capilaridade. Há a absoluta necessidade de trabalharmos de forma muito mais racional e focada na organização das redes de referenciação dos doentes oncológicos, assim como um melhor planeamento e organização dos cuidados, de forma a garantir que o doente, independentemente de onde viva, tenha acesso aos melhores standards de diagnóstico e de tratamento da doença oncológica.

A Norte, temos a clara perceção de que poderá ser mais fácil melhorar o que existe e criarmos uma rede mais robusta. No resto do país poderá ser mais difícil, mas tem de ser um desígnio nacional. Não há limitações tecnológicas a isso, pelo contrário. Com a informatização cada vez maior dos hospitais e dos cuidados de saúde primários, não há motivos para que não haja uma maior partilha em benefício do doente.

Como é que encara o facto de que cada vez mais jovens estão a ser diagnosticados com cancro? O que é que está por detrás deste fenómeno?

Alguns tumores estão a ter aumento de incidência, sim. De acordo com os dados que foram publicados no Registo Oncológico Nacional (RON), o cancro da mama e do pâncreas têm tido um aumento de incidência, mas houve redução no colorretal e no pulmão.

Durante milhares de anos, a espécie humana evoluiu num contexto em que, para sobreviver, era preciso andar muito mais, era preciso correr, era preciso ter muito mais atividade física. Não havia Internet, não havia automóveis, não havia trabalho sedentário, nem abundância alimentar e, nas últimas décadas, houve uma transformação radical. Uma redução drástica na higiene de atividade física e na higiene alimentar está, certamente, a ter impacto no aumento do risco de cancro. Temos a obesidade, que está associada a alguns tipos de neoplasias, mas também exposição a agentes tóxicos, como a poluição atmosférica.

O facto é que esta visão mais macro da forma de viver nestas três, quatro, cinco décadas está a ter consequências não só na incidência da doença oncológica, mas também das doenças cardiovasculares.

Os profissionais de saúde só podem cuidar se estiverem bem. Nos últimos anos, com a pressão da pandemia e a pressão criada pela maior exigência assistencial, há repercussões na saúde física e mental dos profissionais de saúde. Cada vez mais é preciso ter essa visão de conjunto, de olhar para quem precisa de cuidados, mas também de quem cuida

Considera que os oncologistas ‘levam’ as histórias dos doentes para casa? De que forma é que é possível lidar com esse ‘peso’ emocional da profissão?

Isso é uma condição inerente ao tipo de atividade que é desenvolvida pelos profissionais que lidam com doenças graves, que são altamente impactantes e, inevitavelmente, perturbadoras para os próprios profissionais, que também são seres humanos. Durante a sua formação, recebem instrumentos para poderem prestar cuidados de saúde que não passam só por prescrever, mas por conseguir dar o suporte necessário aos doentes e à própria família.

Infelizmente, a pressão assistencial a que os médicos estão atualmente sujeitos pela sobrecarga que existe torna esta uma condição quase incompatível com a necessidade de disponibilizar tempo porque, por mais técnica que possa existir, há certas coisas que não é possível fazer sem tempo. É desejável que haja mais tempo dos profissionais para poderem responder a essas exigências e necessidades dos doentes, mas também às suas próprias necessidades.

Os profissionais de saúde só podem cuidar se estiverem bem. Nos últimos anos, com a pressão da pandemia e a pressão criada pela maior exigência assistencial, há repercussões na saúde física e mental dos profissionais de saúde. Cada vez mais é preciso ter essa visão de conjunto, de olhar para quem precisa de cuidados, mas também de quem cuida, para que se possa regenerar e enfrentar os dramas do dia a dia, com a maior competência possível, mas também humanidade.

O grande problema é que temos memória curta como sociedade e, quando o problema agudo passa, rapidamente nos esquecemos do quão importante determinadas profissões foram – não só os profissionais de saúde, mas aqueles que mantiveram o país a funcionar

Na sua ótica, o que é que falta fazer para valorizar estes profissionais e as suas carreiras? De que forma seria possível contornar a falta de profissionais nesta área?

É uma equação muito complexa. Tentando ser muito resumido, há questões que se prendem com o salário, que é importante, mas há também o 'salário emocional' e o reconhecimento da dedicação, do empenho, e das oportunidades em termos de progressão de carreira, de realização profissional, e de conciliação da vida profissional com a vida pessoal. Isto é cada vez mais necessário e as gerações mais jovens de profissionais na área da saúde estão, e bem, mais exigentes com esta conciliação.

Depois de uma pandemia como aquela que vivemos, este sentimento ainda se tornou mais agudo. Mais uma vez, os profissionais de saúde são, em primeiro lugar, pessoas, e são absolutamente essenciais para que a sociedade consiga sobreviver enquanto sociedade, tal como vimos. O grande problema é que temos memória curta como sociedade e, quando o problema agudo passa, rapidamente nos esquecemos do quão importante determinadas profissões foram – não só os profissionais de saúde, mas aqueles que mantiveram o país a funcionar, quando a esmagadora maioria da população estava fechada dentro de casa.

É preciso uma certa mudança de cultura e de valorização daquelas profissões que são, infelizmente, a maior parte delas muito mal remuneradas. A sociedade como um todo tem de repensar como é que valoriza aqueles que são realmente essenciais para o seu funcionamento.

Quais são as principais prioridades nesta área da saúde?

Remetia para a Estratégia Nacional de Luta Contra o Cancro, que identifica os pilares daquela que deve ser a intervenção na área da oncologia – a prevenção, a deteção precoce, o diagnóstico, o tratamento e o acompanhamento dos sobreviventes. São áreas que são absolutamente essenciais. Agora, é preciso pôr em prática e é preciso haver tração política nas estruturas do Estado. Mas, acima de tudo, uma tração com a sociedade.

Isto só faz sentido se realmente houver envolvimento dos cidadãos e um maior empenho da literacia em saúde, para que cada um procure, individualmente, não ficar doente e ter um estilo de vida que seja preventivo da doença, que promova o seu bem-estar. E para que o Ministério da Saúde se foque cada vez mais em promover realmente a saúde, e seja cada vez menos o ‘Ministério da Doença’. Aí, vamos ganhar como sociedade em termos de redução de custos, porque estamos a falar dos nossos impostos e, acima de tudo, em resultados em saúde com mais impacto na prevenção e na recuperação mais rápida dos cidadãos que têm o azar de sofrer de uma doença.

Leia Também: Portugal gasta pouco com cancro mas sobrevivência é maior que média da UE

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