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"Nunca tínhamos tido uma crise tão forte como a que temos hoje"

A presidente da Federação Portuguesa de Bancos Alimentares contra a Fome, Isabel Jonet, é a entrevistada de hoje do Vozes ao Minuto.

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Ana Lemos
09/12/2020 08:20 ‧ 09/12/2020 por Ana Lemos

País

Isabel Jonet

Os tempos que atravessamos, diferentes para todos, estão a afetar muitos portugueses. Desde março que os pedidos de ajuda não param de chegar ao Banco Alimentar, e a situação piorou depois de setembro. Atualmente, são feitos "52 pedidos diários de ajuda".

O número preocupante é avançado ao Notícias ao Minuto por Isabel Jonet, presidente da Federação Portuguesa de Bancos Alimentares contra a Fome, que desde março está também na linha da frente no combate à pobreza que a Covid-19 (também) trouxe.

Quer acreditar que não estamos num ponto de "rutura social", mas lembra que muitas famílias - sobretudo jovens com filhos a cargo - ainda estão sem poder trabalhar e as poucas que conseguiram "redirecionar" as suas vidas perderam um dos dois empregos que tinham, e a situação que têm hoje é diferente (e pior).

Apesar de reconhecer que as moratórias deram uma ajuda, serão um problema que "estamos a adiar" e cuja fatura vai chegar num futuro próximo. Mas porque o que importa agora é ajudar quem mais precisa, Isabel Jonet reforça nesta entrevista que também o Banco Alimentar se adaptou a uma nova realidade e que quem quiser, e puder, pode contribuir não fosse, "neste momento mais do que nunca, preciso esta solidariedade coletiva".

Lidera há mais de 25 anos o Banco Alimentar. Pode dizer-se que esta é a fase mais difícil que atravessou?

Sim, penso que podemos dizer isso sem qualquer sombra de dúvida, pelo inesperado desta situação e pelas consequências que teve em termos sociais, económicos, e daquelas que se prevê que ainda venham a ocorrer. Aquilo que me parece é que nunca tínhamos tido uma crise tão forte como a que temos hoje.

Esta crise só não afetou os funcionários públicos e os reformados, quase todo o resto das pessoas foram de alguma maneira impactadas pelo reflexo económico e social desta pandemia Nem a que vivemos em 2010?

Não, não tem qualquer comparação com aquilo que se vive hoje em dia. Primeiro porque esta crise, e a consequência que provocou, foi muito brusca e inesperada, ninguém nos tinha preparado para que ia haver consequências tão graves na económica [e] que iam, de repente, fazer com que muitas pessoas ficassem sem qualquer possibilidade de trabalhar.

Quando a economia fechou em março/abril, quando foi declarado o primeiro Estado de Emergência, as pessoas começaram a não poder trabalhar e há setores que ainda não recuperaram. Há várias profissões que desde março não podem trabalhar. Pode pensar-se, por exemplo, nas pessoas ligadas à cultura, que não têm concertos, os circos, muitas feiras, hoje a maior parte dos feirantes só pode vender de 15 em 15 dias, porque as feiras têm metade dos lugares. Ou ainda profissões que perderam metade dos clientes, como os ginásios, as piscinas, dentistas, higienistas, portanto esta crise afetou de repente um conjunto de pessoas que ficaram sem possibilidade de trabalhar, e muitas delas nem sequer tinham acesso ao subsídio de desemprego porque não cumpriam as condições para requerer esse tipo de apoio social.

Depois [há] também as famílias que estão em lay-off e que continuam ainda com os seus salários reduzidos e aquilo que recebem não é suficiente. Portanto, esta crise só não afetou os funcionários públicos e os reformados, quase todo o resto das pessoas foram de alguma maneira impactados pelo reflexo económico e social desta pandemia.

Precisamente por esse fator de imprevisibilidade que refere, faço-lhe uma questão um pouco mais pessoal, lida hoje com esta situação e com os pedidos de ajuda que lhe chegam de uma forma diferente de março quando foi surpreendida, imagino, por uma enchente fora do normal de pedidos de ajuda e num período em que o país estava a viver um bom momento? 

Teve de se fazer isso. Para já tivemos de criar uma resposta online e lançámos a rede de Emergência Alimentar para poder receber os pedidos que nos chegavam e para poder dar uma resposta e um encaminhamento aos pedidos. Aquilo que tivemos de fazer foi criar uma resposta inovadora que nos permitiu dar uma resposta próxima às pessoas, [e] esta resposta próxima fez com que pudessem ser encaminhadas. A forma como os pedidos são tratados, como são respondidos [também] foi alterada. Isso foi, até para nós uma oportunidade porque a partir de agora serão sempre tratados desta forma, é mais eficiente, e porque os encaminhamos para uma instituição perto de casa. Além disso, o que nos permitiu [também] foi conhecer com mais detalhe a situação destas famílias porque através destes formulários online podemos ter uma maior noção de cada situação.

Os pedidos são muito diferentes, hoje as pessoas [que pedem ajuda] são mais novas. Quem está a pedir [ajuda] são famílias mais novas e com filhos Pressuponho que os voluntários tenham nesta situação adquirido um papel especial porque não podendo estar fisicamente nos locais onde fazem as recolhas estão a dar uma ajuda nesse sentido, ou não?

Sim, através da bolsa do voluntariado inscreveram-se 1.104 voluntários e foram logo colocados na nossa base de dados, foram logo aproveitados para ajudar, e sem eles era impossível porque é muito trabalho...

E ao longo destes meses, a cadência dos pedidos de ajuda foi mudando? Aumentaram, diminuíram, em que ponto estamos agora e que balanço faz?

Os pedidos são muito diferentes, hoje as pessoas [que pedem ajuda] são mais novas. Quem está a pedir [ajuda] são famílias mais novas e com filhos que, muitas vezes, tinham dois empregos e que agora têm só um e o que têm hoje não chega. Esta é que é a grande realidade, estas famílias vivem hoje uma situação diferente.

E sem perspetivas de que mude num curto prazo…

Sim, sem grandes perspetivas porque aquilo que nós vemos é que não se vê a tão breve prazo que isto vá mudar.

Os meses de julho e agosto trouxeram algum oxigénio a estas famílias por via da restauração porque houve mais turismo, os corredores aéreos abriram, mas depois na última semana de setembro tudo piorou muito

Disse recentemente que estavam a receber "35 pedidos de ajuda diários" na última semana de setembro. Este cenário mantém-se?

52 [pedidos diários] é o que digo agora. Desde o final de setembro que aumentou. Os meses de julho e agosto trouxeram algum oxigénio a estas famílias por via da restauração porque houve mais turismo, os corredores aéreos abriram, mas depois na última semana de setembro tudo piorou muito. Todos os dias respondo a muitos e-mails, faço isso pessoalmente e é impressionante o que as pessoas escrevem. Só quem vê a aflição destas famílias, a maior parte delas com filhos, é que pode perceber a angústia de quem hoje não tem o suficiente. E pior, muitas vezes, não tem sequer capacidade de ser ajudadas porque, em muitos casos, as instituições deixaram de poder dar resposta. E apesar de terem até aumentado alguns apoios públicos e [de] até de ter havido um alargamento de um programa público alimentar, muitas pessoas ficam de fora porque o emprego que perderam não era declarado… Há uma economia paralela fortíssima, e muitas destas pessoas estão realmente numa situação muito angustiante.

São significativos os casos de recuperação, ou seja, de pessoas que pediram ajuda numa fase inicial mas que entretanto conseguiram recuperar, ou pelo contrário a tendência de aumento mantém-se?

Algumas pessoas conseguiram redirecionar a sua vida, agora não esqueça que muitas têm moratórias e adiaram o pagamento dessas moratórias. Aquilo que vemos hoje é que estas pessoas que parece que têm uma situação equilibrada não a teriam se não tivessem essa moratória.

Mas as moratórias não vão durar para sempre. Podemos estar aqui a adiar um segundo problema?

Claro que estamos, estamos a adiar um problema.

Consegue caracterizar o tipo de pessoa que tem pedido ajuda, sabemos que são desempregados, em situações de lay-off, mas em termos de faixas etárias houve alguma mudança? Falava há pouco nos jovens...

Sim, são pessoas mais novas, menos qualificadas e com filhos. Pessoas que tinham um emprego, muitas um emprego precário, ou dois empregos, e que perderam um deles.

É um padrão fora do normal do tipo de pessoa que costuma pedir a vossa ajuda?

Sim, estas não eram pessoas que habitualmente pedissem ajuda porque tinham a vida organizada. São pessoas que estão numa situação de pobreza conjuntural, mas que são estranhos a esta situação de pobreza

Há muitas pessoas que estão numa situação dificílima e que não veem qualquer esperança nem qualquer luz ao fundo do túnelNo mês passado, destacou que o objetivo do Banco Alimentar é evitar "situações de rutura social". Pelo conhecimento e experiência que tem, estamos perto dessa rutura?

Espero que não, mas só não estamos porque há uma solidariedade muito grande que se pôs aqui em marcha. Porque há muitas pessoas que estão numa situação dificílima e que não veem qualquer esperança nem qualquer luz ao fundo do túnel. Estas pessoas têm de ser ajudadas, mas o que é mais incrível, é que muitas vezes sozinhas não vão conseguir, portanto temos que ajudar de outra maneira.

A propósito de ajuda, foi lançada dia 26 de novembro a campanha ‘À nossa mesa há sempre lugar para mais um’, já tem algum balanço de como está a decorrer?

Ainda é muito prematuro porque a campanha decorre até dia 13 [de dezembro] e até esse dia recebemos doações, portanto é prematuro saber qual é o resultado...

Este ano ajudar "é como se fosse uma experiência de ir ao supermercado online, e é fácil"Como podem os portugueses ajudar?

É bastante simples, basta ir a www.alimentestaideia.pt e através de uma contribuição para este canal de doações online é possível contribuir com alimentos. É como se fosse uma experiência de ir ao supermercado online, e é fácil. É assim que [este ano] as pessoas podem contribuir e levar alimentos à mesa de quem precisa.

Mas também é possível fazer contribuições nos supermercados, no ato de pagamento.

Exatamente, é possível também contribuir na campanha Ajuda Vale. Nas caixas das cadeias de distribuição é possível dar um vale que representa um produto, e que tem um código de barras próprio para o Banco Alimentar que é acrescentado à conta. No talão de compra fica especificado que foi feita uma doação para o Banco Alimentar. Então é possível doar através dos canais online ou dos supermercados, em todas as cadeias de distribuição incluindo o Intermarché e o Aldi, que aderiram e portanto alargámos o número de supermercados onde é possível as pessoas contribuírem.

É com os donativos da Rede de Emergência Alimentar (...) que temos feito muitas compras que nos permitem compensar o não termos as campanhas em supermercadosSe a situação não mudar no entretanto, ponderam fazer campanhas extra?

Não, não, até porque não podemos estar nos supermercados com voluntários. Todas as doações das pessoas e empresas são sempre bem-vindas, mas não faremos nenhuma campanha até ao mês de maio.

Receberam mais apoios do que os habituais ao longo destes meses?

Lançámos a Rede de Emergência Alimentar - uma resposta específica para o impacto da Covid-19 - que permitiu angariar muitos donativos seja de entidades, fundações, empresas, particulares, em Portugal e até no estrangeiro. Foi uma resposta estruturada ao impacto social da pandemia e foi possível recolher muitos donativos e é com eles que temos feito muitas compras que nos permitem compensar o não termos as campanhas em supermercados.

Neste momento, mais do que nunca, é preciso esta solidariedade coletiva em que olhamos para os outros e contribuímosQuer deixar uma mensagem aos portugueses neste ano tão diferente e num momento em que a campanha ‘À nossa mesa há sempre lugar para mais um’ está a decorrer?

Deixava uma mensagem aos portugueses para que não deixem de contribuir na campanha do Banco Alimentar. Os bancos alimentares têm uma lógica local, tudo aquilo que é doado num determinado local é distribuído nesse local. Aquilo que pedimos às pessoas é que nunca se esqueçam que à sua beira há situações de pessoas que estão a lidar [com esta situação] com muita, muita dificuldade, e que só com esta solidariedade coletiva é que vão poder ultrapassá-la, que esperamos que seja tão temporária quanto seja possível, mas que não antevemos que seja rapidamente ultrapassada se nós todos juntos não nos preocuparmos.

Neste momento, mais do que nunca, é preciso esta solidariedade coletiva em que olhamos para os outros e contribuímos, nem que seja com uma coisa simbólica, por vezes basta um sorriso para que as pessoas não se sintam sozinhas. Há tantas pessoas hoje que se sentem sozinhas que é preciso uma união de esforços para que elas não percam a esperança e não entrem em rutura social.

 

 

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