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"Contingência não é uma medida de saúde pública, é política"

O secretário-geral do Sindicato Independente dos Médicos (SIM), Jorge Roque da Cunha, é o entrevistado de hoje do Vozes ao Minuto.

"Contingência não é uma medida de saúde pública, é política"
Notícias ao Minuto

16/09/20 por Melissa Lopes

País Jorge Roque da Cunha

Frustrados, indignados e exaustos. É este o estado em que os médicos em Portugal estão, numa altura em que o país se encontra à beira de uma (cada vez mais certa) segunda vaga da pandemia que, pela primeira vez, se misturará com a época da gripe. Em entrevista ao Notícias ao Minuto, o secretário-geral do SIM critica o excesso de otimismo e a tentativa permanente do Governo de "dourar a pílula".

Queixando-se da falta de investimento no Serviço Nacional de Saúde (SNS), mesmo em tempo de pandemia, Jorge Roque da Cunha acusa ainda o Executivo socialista de "desrespeito" e aponta o dedo à ministra da Saúde, com quem os sindicatos médicos ainda não conseguiram reunir-se para discutir reivindicações conhecidas há anos.

Alguns desses problemas do SNS agravaram-se com a Covid-19, diz lembrando que os médicos estão a atingir "os valores já exorbitantes do ano passado" de seis milhões horas extraordinárias. O sindicalista mostra-se ainda preocupado com "o que aí vem" e defende que não se pode facilitar um milímetro, pedindo proatividade ao Governo. 

Começava por lhe perguntar se já obteve alguma reposta à tentativa de reunir com a ministra da Saúde?

A nossa perplexidade e estranheza é grande. Perante as nossas insistências, particularmente após a eclosão da Covid-19, a senhora ministra tem-se recusado a reunir com o SIM. Os sindicatos médicos assinaram o 36.º acordo, que foi agora publicado. Somos sindicatos de diálogo. Apesar das nossas insistências, não temos tido qualquer resposta da parte da ministra.

Mas tem existido diálogo com o Governo?

Tem havido umas conversas com o senhor secretário de Estado, o dr. Sales [secretário de Estado da Saúde]. Obviamente que é uma pessoa estimável, cordial, mas a verdade é que não tem instrumentos que nos possam responder a questões que são conhecidas há cerca de quatro anos.

O senhor primeiro-ministro foi desrespeitoso, em on e em off. Aquilo que disse em relação a Reguengos foi totalmente mentira. Não houve nenhum dia que um médico se tivesse recusado a estar presente

Quais são?

Questões relacionadas com a organização do trabalho médico, conflitos que existem - horários de trabalho, folgas, as despensas após trabalho ao fim de semana, o tempo específico para formação, o tempo para orientação de internos. A outra questão é a concretização do acordo que se assinou em 2012 que determinava que três anos depois se reiniciaria a discussão da dimensão das listas de utentes - são 1.900 quando deveriam ser 1.550. Esta não é uma matéria que, neste momento, implique grande urgência, uma vez que existem, por incompetência do Governo, cerca de 780 mil portugueses sem médicos de família. A questão da avaliação do desempenho está pendente, assim como a mobilidade dos profissionais após os concursos. A questão de haver cerca de 1.500 colegas a reformar-se nos últimos oito, dos quais só se repuseram 250. Há um conjunto de matérias que se relacionam agora com a questão magna de voltar à atividade mais normal possível. Há um conjunto de matérias que devem ser resolvidas, como o voltar à recuperação das listas de espera nas cirurgias e as próprias consultas hospitalares e o reabrir os centros de saúde para atividades programadas.

Os médicos em Reguengos chegaram ou não a recusar assistir os idosos?

O lar tem dois milhões de euros de orçamento anual. Desses dois milhões, cerca de 1.700 mil euros são para despesa com o pessoal. Não há dinheiro para contratar médicos? A responsabilidade da contratação dos médicos tem que ser dos responsáveis dos lares. Os médicos de família têm como responsabilidade os seus 1.900 utentes. Esses utentes são as grávidas, as crianças, são os infetados [com Covid]. O local de trabalho dos médicos é no centro de saúde ou numa extensão de saúde. Os médicos podem não aceitar ir para outros locais, mas em Reguengos não houve um dia em que os médicos não tivessem ido. Aliás, todos eles assinaram uma minuta a assinalar que não se responsabilizavam por eventuais problemas. A orientação da ministra, de os médicos de família substituírem os médicos dos lares é uma desconsideração, é uma tentativa de pôr os responsáveis e os familiares contra os médicos. E outra questão: Os médicos nos centros de saúde estão totalmente assoberbados. A maior parte deles têm centenas de horas extra. Fazem os contactos diários aos casos de Covid no país. Essa desconsideração aos médicos, para além de ser injusta, tenta esconder a realidade do monstro, que é a falta de investimento no SNS. Já existiam problemas antes, mas depois da pandemia piorou. Em vez de encontrar soluções, o Governo procura fazer com que haja dificuldades e procura criar factos políticos e diabolizar os médicos.

O bastonário acusou António Costa de não ter sido, na comunicação aos jornalistas, leal ao que tinha dito na reunião. Faltou um pedido de desculpas público?

O facto de o primeiro-ministro ter recebido o bastonário mostra de alguma maneira que reconheceu que tinha errado. Eu não percebo qual a dificuldade que os políticos têm, quando erram, de pedir desculpa. Faltou essa humildade ao primeiro-ministro que, no meu ponto de vista, tem fundamentalmente a ver com a tentativa de encontrar bodes expiatórios nos médicos face à incapacidade que tem demonstrado em encontrar soluções para o SNS. Em relação a essa reunião, faço confiança naquilo que o bastonário revelou e que não foi, aliás, desmentido. Da parte do SIM, achamos que o pedido de desculpas não teria ficado pior.

A crispação alimentada pelo Governo continua muito presente, quando estamos a poucas semanas do início dos problemas da gripe e com as listas de espera que temos, quer para cirurgias, quer para consultas

E considera que os ânimos ficaram sanados ou, pelo contrário, a tensão entre Governo e médicos ainda paira no ar?

Aquilo que nos apercebemos por parte dos nossos colegas é que a crispação alimentada pelo Governo continua muito presente, quando estamos a poucas semanas do início dos problemas da gripe e com as listas de espera que temos, quer para cirurgias, quer para consultas. Seria muito bom que o Governo, em vez de alimentar este clima de crispação, o desfizesse com medidas concretas, com diálogo com os sindicatos e com a Ordem, e possa criar condições de melhorias. O ambiente é de frustração, grande indignação, que se vai juntar a um clima de exaustão. O ano passado foram cerca de seis milhões de horas extraordinárias que os médicos fizeram. Estamos neste momento a atingir os valores já exorbitantes do ano passado. Nesta circunstância, achamos que poderia estar tudo a correr melhor se existisse uma atitude diferente da parte do Governo.

Não acredita então que o país esteja mais bem preparado para enfrentar a segunda vaga da pandemia?

Eu corroboro aquilo que os infeciologistas e médicos de saúde pública que o país está pior preparado para aquilo que se aproxime. Vamos ter a gripe, a par da pandemia. E estamos muito longe de ter as coisas controladas. Temos os enfermeiros, médicos e administrativos mais cansados e mais desmotivados. Sendo sindicalista, tenho uma lista de 1.900 utentes no centro de saúde de Camarate. Os utentes precisam de condições para regressar às consultas cara a cara, coisa que, por falta de orientação do Governo está a falhar. O Ministério da Saúde foi lesto em cancelar tudo o que é atividade programada, mas ainda não deu as orientações nem criou as condições para que as consultas voltassem presenciais a ser uma realidade.

Sem uma atitude proativa do Ministério da Saúde, não é possível neste momento garantir uma maior acessibilidade aos utentes

Não estão já a ser feitas as consultas presenciais nos centros de saúde?

Pontualmente. Presencialmente só as grávidas, as crianças (de acordo com o plano de vacinação) e doença aguda. As consultas de vigilância, neste momento e com a falta de recursos, não. Neste momento, é necessário os médicos estarem nos tais "covidários". Ou seja, sempre que há patologia respiratória, em cada concelho existe ou seis horas ou doze. No meu concelho, Loures/Odivelas, são seis médicos por dia, sete dias por semana. Temos de ter tempo para ligar aos infetados, para seguir os doentes com pulseiras 'verdes' e 'azuis' recambiados por parte dos hospitais. Sem uma atitude proativa do Ministério da Saúde, não é possível neste momento garantir uma maior acessibilidade aos utentes.

Brigadas nos lares? O princípio está correto, apesar de tardio

O que é que se exige? Contratação de mais médicos?

Em primeiro lugar é preciso dar orientações precisas às administrações daquilo que se pretende. Da mesma forma que houve uma orientação para cancelar tudo, também deve haver agora uma nova orientação para a retoma. Estamos disponíveis para participar e para ajudar. Mas tem que ser o Governo a dar a orientação e aí é uma desorientação. Aliás, essa desorientação verifica-se nos lares, onde cada um faz aquilo que entende. Aquilo que está a acontecer nos lares, juntamente com a questão do inverno, preocupa-nos de sobremaneira.

E que opinião tem das brigadas com 400 profissionais que vão apoiar os lares no combate à Covid-19?

Achamos que é insuficiente e tardio. Já devia estar a acontecer. E naturalmente, nesta fase inicial, os auxiliares que vão, se calhar, não têm a experiência e a formação que deviam ter para lidar com pessoas doentes e acamadas. O princípio está correto, apesar de tardio. A medida deve ser alargada à medida que a pandemia for avançando. Além do problema dos lares clandestinos, do universo de dois mil legais, só foram fiscalizados 500. É uma falta de responsabilidade por parte do Ministério da Segurança Social. 

O Governo tem defendido que o país está agora mais bem preparado para enfrentar a segunda vaga da Covid-19, tendo em conta o reforço humano e material que foi feito no SNS. Ainda há duas semanas a ministra anunciou mais 950 vagas para médicos. Não acredita mesmo que estejamos melhor?

Penso que os cuidados intensivos poderão estar um bocadinho melhor preparados, apesar de faltarem profissionais. 

Conhecem melhor a doença...

Têm mais ventiladores e há mais experiência. Mas é necessário mais profissionais. As máquinas sozinhas não funcionam.  Em relação aos profissionais contratados, são recém-especialistas que já estão no sistema, e que já estão nas escalas nos últimos dois anos. Não são médicos novos. São contratados porque já são especialistas, mas antes de o serem já estão nas escalas. 

Não faz qualquer sentido estar aqui a dourar a pílula. É uma coisa que não compreendo esta tentativa permanente de dizer que não há mal nenhumOu seja, já se encontram a trabalhar e, no fundo, não são propriamente um reforço face à situação atual.

Já estão a trabalhar e trabalham imenso. Essa contratação já devia ter acontecido, o Governo está a pagar como internos especialistas desde março. É lamentável que isso aconteça. Mas ainda é mais lamentável que o Ministério, sabendo disto, dê a ideia - por uma questão de propaganda exclusivamente - que as coisas estão melhores. Temos de estar muitíssimo atentos. E é de recordar também que os médicos já ultrapassaram as horas obrigatórias, que vai haver médicos a ficarem doentes, médicas a engravidar, médicos que passarão pela quarentena. Não faz qualquer sentido estar aqui a dourar a pílula. É uma coisa que não compreendo esta tentativa permanente de dizer que não há mal nenhum. Sobre a contratação dos recém-especialistas, nos últimos concursos houve cerca de um terço das vagas que não foram ocupadas. 

Por falta de interessados?

Sim. Vão para o privado ou para o estrangeiro. Não estão para aturar esta indefinição. E o Ministério sabe disto. E quantos médicos se vão reformar este ano e nos próximos três? Vão reformar-se 1.300 médicos hospitalares nos próximos dois anos. Reformam-se nos próximos três anos 1.500 médicos de família, e este ano já se reformaram pelo menos 600 médicos. E até ao final do ano, o número médicos que se reforma será muito semelhante aos 900 que irão ser contratados. E os médicos ficam doentes, têm que ter folgas, e para a sua sanidade mental tem de ter dois dias de descanso, têm de meter na cabeça que não faz sentido trabalhar 24 horas seguidas, os médicos têm que cuidar dos seus filhos, precisam de estar com as suas famílias. São cidadãos que não podem ser discriminados. Já basta serem discriminados por, quando têm qualquer doença crónica terem de continuar a trabalhar, ao contrário de qualquer cidadão nesta situação de pandemia

Mas quais são as maiores preocupações dos médicos neste contexto de pandemia?

Não devemos facilitar. O SIM está muitíssimo preocupado com o que aí vem. Está muitíssimo preocupado com a mortalidade que este ano está a acontecer por doença não-Covid. O Ministério da Saúde continua a esconder essa matéria. E estamos extraordinariamente preocupados com a atitude do Ministério de tentar desvalorizar o problema. E depois obriga médicos a irem substituir médicos que vão de férias no setor privado e social, o que é totalmente inaceitável. 

Não vê do lado do Governo nenhum sinal, nenhuma preocupação de querer aproveitar esta circunstância para investir no SNS?

Preocupa-me porque vejo no Governo uma tentativa de desvalorizar o problema desde o início da pandemia, incluindo agora esta questão da contratação dos médicos. É claro que é melhor serem contratados do que não serem, mas se não fossem então isto seria uma calamidade. Estou preocupado relativamente à mortalidade que ocorre este ano sem ser por Covid e a falta de investimento no SNS. E estou preocupadíssimo com a atitude do Governo de dizer que está tudo bem, ao mesmo tempo que insulta os médicos, não os respeita e não dialoga. Não basta dizer que o país está bem por decreto quando a realidade é o que é: pessoas que precisam de consultas e não têm, precisam de cirurgias e não têm. Não vemos da parte do Governo outra preocupação que não seja tentar dourar a pílula e fingir que está tudo bem. 

Situação de contingência. Medida demonstra uma atitude de facilitismo

Relativamente à situação de contingência, que o Governo anunciou com 15 dias de antecedência, o que lhe parece?

Haja pudor em relação ao estabelecimento dessa data. Não é uma medida de saúde pública. Uma medida de saúde pública teria sido tomada anteriormente, com mais tempo. Não se devia dar qualquer sinal de facilitismo. Avisar que dentro de 15 dias se vai entrar numa situação nova é política, não é saúde pública. 

Mas é um enquadramento necessário para tomar decisões de saúde pública. 

Então porque é que não foi logo no dia 1? Porque é que não anunciaram que era para o dia seguinte?

O Governo defendeu que a data se prendia com o regresso às aulas, marcado para essa semana, altura em que se espera um aumento de contágios. 

Em relação a essa matéria, o que digo é que mais uma vez foi uma medida que demonstra uma atitude de facilitismo. No momento em que a medida foi anunciada já se verificava um aumento dos casos de infetados. Não compreendo. Foi um critério político, não foi de saúde pública com toda a certeza. 

Volvidos mais de seis meses, que balanço faz da pandemia? Nem tudo correu mal, se pensarmos nos cenários de outros países como Itália e Espanha. 

Apesar do Governo, as coisas correram relativamente bem devido à resposta dos médicos que abdicaram da sua vida pessoal e profissional. Mas, quer a mortalidade por outros factores, quer aquilo que se aproxima em termos de gripe, não deve merecer outra atitude que não seja máximo cuidado, empenhamento e ainda uma maior dedicação por parte dos médicos. Apesar da desmotivação e desconsideração, os médicos vão dar a resposta que têm dado e que, aliás, os portugueses reconhecem como positiva.

O país espera que, no final de tudo isto, que não sabemos quando é, que o SNS acabe mais forte. 

Como dissemos desde o início, a pandemia está para ficar e a falta de investimento no SNS, infelizmente, também está para ficar. 

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