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"Nós complicámos o mundo de uma forma muito grande"

Tiago Guedes é o entrevistado de hoje do Vozes ao Minuto. O realizador de 'A Herdade', filme que tem sido muito elogiado cá dentro e reconhecido a nível internacional, traz-nos mais um projeto este ano. 'Tristeza e Alegria na Vida das Girafas’ estreia esta quinta-feira nos cinemas.

"Não faz sentido continuarmos a ver a Cultura como um parente pobre"

Notícias ao Minuto

21/11/19 por Fábio Nunes

Cultura Tiago Guedes

O ano de 2019 está a ser recheado em termos cinematográficos para o realizador, mas também encenador, Tiago Guedes. O filme 'A Herdade' estreou em setembro e foi bem recebido pelo público e pela crítica portugueses. Esse reconhecimento da crítica não se verificou apenas dentro de portas. Também se registou além fronteiras, como atestou a nomeação para o Leão de Ouro no prestigiado Festival de Cinema de Veneza.

O filme vai ser o candidato português ao Óscar de Melhor Filme Internacional. A lista contempla no total 93 longas-metragens e os dez filmes nomeados para o Óscar nesta categoria serão conhecidos no dia 16 de dezembro.

Mas o trabalho de Tiago Guedes na realização este ano não se fica por aqui. Esta quinta-feira chega aos cinemas outro filme seu: 'Tristeza e Alegria na Vida das Girafas', uma adaptação ao cinema de uma peça de teatro de Tiago Rodrigues e que conta com a música de Manel Cruz. 

A ação da película segue a aventura de uma menina de dez anos chamada Girafa e do seu urso de peluche, Judy Garland, pelo território mágico que é Lisboa. O objetivo desta criança é pedir ajuda ao primeiro-ministro. 

Foi num cenário mais realista e num momento mais atarefado a nível profissional que o Notícias ao Minuto entrevistou Tiago Guedes. Os seus dois filmes deste ano e a escolha de 'A Herdade' como candidato português aos Óscares foram temas incontornáveis da conversa. 

Mas também houve oportunidade para falar sobre os paralelismos estabelecidos entre a realidade e estas duas obras, a importância que a área da Cultura deve ter em Portugal e a era das plataformas de streaming que estamos a experienciar agora.

Pelo que percebi, o Tiago debateu-se com a adaptação da peça ‘Tristeza e Alegria na Vida das Girafas’ ao cinema. O que se revelou determinante para avançar com este projeto?

Foi simples. Eu queria falar sobre a forma como as crianças em determinadas situações têm de lidar com a dor e têm de crescer muito depressa. Deparei-me com a peça do Tiago Rodrigues e fiquei apaixonado por duas personagens, a da Girafa e a do Judy Garland, e quis muito guardá-las no tempo como o cinema consegue, porque o teatro é efémero e desaparece, ficam só as palavras. Essas foram as grandes motivações para querer adaptar ao cinema.

A Girafa, uma menina de dez anos, a protagonista principal de ‘Tristeza e Alegria na Vida das Girafas’, atravessa uma fase importante. A sua realidade impõe-lhe ganhar maior maturidade. Pode-se estabelecer um paralelo entre as dores de crescimento desta criança e a dor de crescimento de Lisboa, onde decorre a ação do filme, e até do próprio país?

Sim. Completamente. Nas mudanças e em obrigar-nos a mudar. Sim, pode-se estabelecer esse paralelismo. Falando na questão da morte, da ausência e de ficarmos pobres, eu fiz esse paralelismo para mim em relação à Girafa (Maria Abreu) porque ontem (terça-feira) íamos apresentar a antestreia, e eu acabei por não o fazer mas pensei em falar nisso, que a partida de figuras como o José Mário Branco deixa-nos um bocadinho órfãos no nosso lado cultural. E temos todos de sobreviver um bocadinho a isso, obriga-nos a crescer.

Essas dores, que foi o que quis focar, são dores que, no caso de um criança e sendo alguém muito próximo, são extremamente violentas e obriga-nos a enfrentar a vida de uma forma para a qual ainda não estávamos preparados. Esse era o tema que queria focar e quando vi a peça achei que era muito apropriado, ao mesmo tempo que me cruzei com o universo do Manel Cruz do ‘Foge, Foge Bandido’, porque era um disco que me estava a acompanhar nessa fase da minha vida também e, de repente, as coisas fizeram todo o sentido juntas.

Eu não sei se ainda está lá essa esperança nas novas gerações. Mas está lá uma revolta, e dessa revolta pode nascer uma esperança e isso é interessanteO filme vive sob a perceção que a Girafa tem da realidade. Ora, nós vivemos num mundo marcado por diversas tensões geopolíticas, pela ascensão do populismo e da extrema-direita, pelo crescente impacto das alterações climáticas. Quão importante é a perspetiva de uma criança sobre temas tão atuais e o seu olhar esperançoso sobre a realidade?

Esse olhar é fundamental. Eu tenho dois filhos, portanto é um assunto que está constantemente em cima da mesa e vamos falando muito da questão do futuro. Angustia-me muito a forma como estamos a deixar as coisas. Não somos só nós, já vem de há algum tempo. Há uma irresponsabilidade muito grande nos adultos. Estava a colocar a questão da forma pura e esperançosa como as crianças olham para o mundo, não sei se ainda está lá essa esperança nas novas gerações. Mas está lá uma revolta, e dessa revolta pode nascer uma esperança e isso é interessante. A revolta é mais do que justa e faz sentido, porque estão a crescer num mundo no qual percebem que estão a ser-lhes retiradas possibilidades de futuro e isso está a torná-los zangados, e isso pode originar alguma mudança. E daí vir a esperança. 

É muito bom conseguirmos recuperar um lado meio ingénuo e puro na forma como se olha para o mundo e tentar protegê-lo. Este filme fala muito sobre isso. Fala sobre uma parte de nós que tem de morrer para crescermos. O que estamos a fazer é obrigar a matar partes da nossa essência para nos confrontarmos no mundo dos adultos, e isso é um bocadinho complexo.

Nós complicámos o mundo de uma forma muito grande objetivo da Girafa é encontrar-se com o primeiro-ministro, que simboliza o poder, para pedir-lhe ajuda. Ao contrário das crianças, nós adultos temos a tendência para complicar as coisas. Falta-nos um pouco esta simplicidade com que as crianças encaram as coisas?

Sim. O pragmatismo. Qual é que é o problema, onde é que está a solução, porque é que não se faz. E nós temos a tendência para complicar. Um dos maiores problemas do mundo, e que é cada vez mais complexo, é a burocracia, que conseguimos pôr em tudo. Tudo fica quase impossível por processos burocráticos. Acho que essa forma simplista de olhar para as coisas, às vezes era a forma de resolvê-las. Mas não acontece. Nós complicámos o mundo de uma forma muito grande.

O Estado Novo, a Guerra Colonial foram períodos marcantes na história de Portugal. No entanto, não há muitos livros, filmes ou séries, por exemplo, que abordem estes períodos. Porque é que acha que isso acontece? Historicamente não passou assim tanto tempo, as cicatrizes ainda são recentes?

Eu só posso especular. O meu pai esteve na guerra e o que eu sinto pela minha experiência pessoal, e que depois posso transferir para o país de uma forma genérica, é que quem lá esteve não gosta de falar, e logo aí há um silêncio que se coloca e torna-se um assunto que se quer esquecer. Há ali qualquer coisa de muito séria e grave que se passou que querem esquecer e querem seguir com a sua vida. Isto no meu caso familiar. Imagino que no país seja um bocado assim. São experiências muito traumáticas e foram gerações muito maltratadas. Foram para uma guerra para a qual não sabiam porque é que iam e tiveram, provavelmente, de fazer coisas que não queriam. Agora, porque é que não se fala? Não sei se é só por essa razão ou se há de facto uma falta de vontade de ir lá mexer nesse tema.

A violência que isso representou para o país, porque não foi só para os que foram, também foi para os que ficaram. Foi dramático as pessoas terem de ver partir os seus. E depois há características muito portuguesas, porque os americanos fartaram-se de falar sobre a guerra no Vietname. Nós temos características mais contidas, falamos menos, mas acho que é muito importante artisticamente falar-se sobre isto. Têm existido coisas. No teatro, no cinema, na literatura há muitas. Estamos a fazê-lo de alguma forma, mas se calhar não é da forma que poderia ser feito.

Sentia que ‘A Herdade’ funcionava quase como uma ilha autossuficiente e que a revolução se passava longeO que o motivou a fazer ‘A Herdade’, sobre este período importante de Portugal?

‘A Herdade’ foi um argumento que me chegou às mãos, foi um convite do Paulo Branco e deu-me a ler o argumento do Rui Cardoso Martins. Essa foi a primeira fase. A segunda fase foi quando me apropriei um bocadinho do argumento e transformei aquilo num filme mais pessoal, mais meu. Interessou-me muito essa época, ver o 25 de Abril de uma perspetiva diferente, que nunca tinha sentido. Interessou-me muito ver este personagem, o João Fernandes (Albano Jerónimo), que tem tudo para ser de uma certa forma e acaba por não ser, interessou-me as ambiguidades que eu podia explorar naquilo. E depois transforma-se num filme sobre heranças e está-se a falar do país também.

Há bocado falávamos do paralelismo na ‘Tristeza e Alegria na Vida das Girafas’, acho que no filme ‘A Herdade’ há muito isso. Temos um homem que carrega o peso da herança e que não tem noção do que está a provocar nos que vêm a seguir a ele. Aconteceu a mesma coisa ao país. Herdámos cargas e pesos depois de termos uma revolução que se achava que ia mudar tudo, e que mudou em vários aspetos, mas havia uma expectativa muito maior daqueles que a fizeram, e que depois se desiludiram um pouco. Apetecia-me retratar isto. É falar do pequenino, do individual, e falar do geral, do país. E gostei muito dessa amplitude que o projeto tinha.

Nós temos um país riquíssimo e o Interior continua a ser muito mal amadoHá uma perspetiva neste filme que é diferente da que se tem habitualmente sobre o impacto do 25 de Abril na vida dos portugueses. A vida desta família não mudou para melhor. Era um lado que queria mostrar do impacto da revolução?

O João Fernandes faz parte do mundo daqueles que perderam, que eram aqueles que detinham o poder e que, de repente, perdem-no porque entram os direitos e as leis e rebentou com a forma quase feudal que eles tinham de lidar com a vida. As pessoas trabalhavam a troco de quase nada e chegaram os direitos, e muito bem, e acabou com este modo de vida. Eles acabam por ser derrotados. O 25 de Abril não é muitas vezes retratado desse ponto de vista. Mas esse não era um fator fundamental para mim, apesar de me interessar. Havia uma coisa que me encantava neste projeto que era sentir que ‘A Herdade’ funcionava quase como uma ilha autossuficiente e que a revolução se passava longe, apesar de ser relativamente perto. Mas Lisboa era longe, o país ficava longe, e era interessante na forma como a revolução ia interferir na vida ali.

Quando damos o salto para os anos 90, há um sentimento daqueles que lutaram e que deram tudo pela revolução de que parece que as coisas voltaram ao mesmo, camufladas de outra forma, mas o poder permanece nas mesmas pessoas e parece que as coisas quase que não mudaram para onde deveriam ter mudado, que era um mundo com maior igualdade. Continuam a haver muitas diferenças e o poder continua a usar o poder para se proteger, mesmo em democracia. 

Acho que houve muita gente que teve muita esperança e que lutou muito, que acreditou que íamos de facto ter um mundo muito melhor, uma sociedade mais aberta. Temos, mas continuamos a ter muitas desigualdades. Acho que essa luta permanece.

Nós vemos isso muitas vezes da perspetiva dos principais polos, Lisboa, Porto. Aqui vemos a perspetiva da revolução de uma localidade mais afastada, tal como tantas outras neste país. Hoje em dia, o Interior do país continua a estar distante. Isso não mudou muito quando comparado com o período do 25 de Abril.

Completamente. Continua tudo a girar à volta de Lisboa, do Porto, dos grandes centros. Essa deveria ser a grande mudança. Olharmos para o nosso país e distribuirmos essa igualdade que era importante. Nós temos um país riquíssimo e o Interior continua a ser muito mal amado. É o que eu sinto. Eu vivi oito anos no interior e sentia mesmo no dia a dia que se passa tudo nos grandes centros.

Notícias ao Minuto'A Herdade' é o candidato português ao Óscar de Melhor Filme Internacional© Global Imagens

A Herdade’ vive muito das interpretações das personagens principais. É um elenco forte. Sabendo o que queria desde filme e do peso que as personagens teriam, quão importante foi o processo de casting? Nomeadamente, a escolha de Albano Jerónimo para o papel de João Fernandes e o de Sandra Faleiro para o papel de Leonor.

Sem dúvida. São as peças fundamentais daquele puzzle. O Albano foi uma escolha imediata. Eu já tinha trabalhado com o Albano, conheço-o bem. E quando vi a personagem, não vi muita gente em Portugal que pudesse ter o porte, o físico que ele tem para aquela personagem. Aliado a isso, a densidade e a profundidade que ele tem, nos silêncios que eu queria explorar. Eu disse logo que tinha de ser o Albano e ajustámos até o calendário de forma a conseguir tê-lo. Para o papel de Leonor, eu fiz algumas pequenas audições mas estava com muita vontade de trabalhar com a Sandra há algum tempo e achava que a Leonor precisava daquele lado silencioso e do olhar que a Sandra tem. Foi nessa lógica que trabalhámos e foi um trabalho angustiante para todos, porque eles estavam a viver muitas vezes de poucas coisas concretas, mas ao mesmo tempo muito angustiantes. A personagem da Sandra é muito angustiante.

O processo de casting foi um processo normal. Gosto muito de atores e conheço muitos atores, por isso para mim é sempre relativamente fácil arranjar um pequeno grupo para os escolher. Para mim não é um processo de enorme dificuldade.

Expectativas para os Óscares? São realistas. Estamos a concorrer com 93 países, portanto é fazer as contas  

A Herdade’ está na lista para concorrer ao Óscar de Melhor Filme Internacional. Quais são as suas expectativas?

São realistas. Estamos a concorrer com 93 países, portanto é fazer as contas. Eles este ano vão selecionar dez, o que é bom, mas ao mesmo tempo é o ano em que mais países concorreram. Eu nestas coisas sou muito pés na terra e não faço mesmo prognósticos. Fico muito contente por as pessoas verem o filme e se acharem que é merecedor, ficarei muito feliz por isso. Mas são sempre júris, são sempre opiniões. O filme está feito, ou seja, nós não podemos fazer mais nada [risos].

Não faz sentido continuarmos a olhar para a Cultura como um parente pobre. E acho que a Cultura devia estar de mãos dadas com a EducaçãoHá uma nova geração de realizadores que se tem destacado a nível internacional e até tem consquistado alguns prémios em festivais importantes. Acha que Portugal está mais perto hoje em dia de ter um filme nomeado para nesta categoria dos Óscares?

Pelo que tenho percebido agora que sinto que os países estão todos a concorrer, há ali um fator de negócio muito grande e há interesses económicos muito fortes. No caso de um país como Portugal, que é pequeno do ponto de vista de poder económico cinematográfico, eu não sei até que ponto é que isso pode interferir. Mas acho que isso também conta. Os Óscares são negócio. Se se conseguir ter um filme nomeado, isso vai aumentar toda a possibilidade de o filme ser mais visto. Agora, eu não sei como é que as coisas se processam lá. Nós agora até vamos a Los Angeles com o filme, mas vou tentar perceber. Mas acho que era ótimo um dia termos um filme nomeado para o Óscar de Melhor Filme Internacional.

Há uma questão eterna sempre que discutimos o Orçamento do Estado, que é a fatia que vai para área de Cultura. Este continua a ser um problema crónico. A Cultura continua a ser o parente pobre.

A meta do 1%, que parece uma coisa enorme, devia ser um mínimo. Porque a Cultura, apesar de toda uma contrainformação que existe muitas vezes, gera muito movimento económico. Nós temos muita gente a trabalhar e gera muito dinheiro à volta disso. Não faz sentido continuarmos a olhar para a Cultura como um parente pobre. E acho que a Cultura devia estar de mãos dadas com a Educação, devíamos estar num trabalho conjunto com a Educação para formarmos novos públicos, para formarmos o futuro.

O cinema na sala não tem nada a ver com o cinema em casa, nos iPads, nos telemóveis (...) Tenho pena porque aquele momento de emersão na sala de cinema é irrepetívelComo é que encara esta nova dinâmica com as plataformas de streaming? Começou com a Netflix, depois surgiu a Amazon, e agora entraram a Apple e a Disney neste mercado. Isso acaba por mudar um pouco a forma como os filmes chegam ao público. O ‘The Irishman’, em certos países, como Portugal, não vai entrar no circuito de cinema, estreia diretamente na Netflix.

Está a ter um impacto enorme a vários níveis. Está a ter um impacto enorme porque muitas dessas plataformas estão a investir muito dinheiro e estão a permitir que filmes que, se calhar não existiriam de outra forma se estivessem dependentes do sistema tradicional dos estúdios de cinema, existam. Porque são filmes que poderiam ser um risco para o cinema e na plataforma já têm um risco menor e eles têm muito dinheiro para investir. Acho que vai continuar a mudar. Sinto que estamos numa fase de transformação, porque isto está em constante mutação. Eles próprios estão a adaptar-se. Antes a Netflix era rainha e senhor, e agora tem que dividir o mercado e ninguém sabe como é que eles vão jogar e como é que tudo vai funcionar.

Agora, para quem filma, para quem faz, é sempre bom a possibilidade de ter outras formas de conseguir filmar. Portugal tem estado afastado do jogo das grandes plataformas. Mas para o mundo, eu sei que o Scorsese diz que o ‘The Irishman’ era um filme que não existia se não fosse a Netflix. Portanto, eu fico muito agradecido, porque alguém que eu admiro tanto como o Scorsese, possa fazer o filme que queria, nas condições que queria. Mas depois fico com muito pena que o filme não vá para as salas de cinema. Acho que o cinema na sala não tem nada a ver com o cinema em casa, nos iPads, nos telemóveis. Isso para mim é outro meio. É uma coisa de rápido consumo e tenho pena porque aquele momento de emersão na sala de cinema é irrepetível.

Mas Portugal ainda está muito longe desse jogo. Continuamos com a nossa forma de produzir e mesmo as tentativas que temos tido com séries são orçamentos muito complicados. Nós estamos sempre a fazer omeletes sem ovos. Ou seja, estamos sempre a fazer muito mais do que o dinheiro que temos permite. E isso está a formar muita gente. É complicado porque é injusto, mas ao mesmo tempo está a formar músculo.

Houve algum filme(s) ou realizador(es) que o levaram a seguir este percurso de realização?

Desde cedo percebi que queria fazer cinema. Mas foram tantos filmes e realizadores, e muito diferentes ao longo do tempo. Foram fases muito diversas. Por isso nomear algum é muito injusto. É como se fosse um novelo, começa-se a puxar um fio e são mesmo muitos. No outro dia perguntaram-me qual foi o primeiro filme que me lembro de ter visto e eu tive de fazer esse exercício complicadíssimo. Portanto, posso falar-lhe desse filme. Foi um filme do John Huston, que vi na televisão e que foi o ‘Moby Dick’ (1956).

Mas na realidade foram milhares de filmes. Vi muito cinema americano, depois vi mais cinema independente americano. Vi filmes italianos, agora gosto de todo o tipo de cinema, portanto é mesmo difícil enumerar alguém. Falámos há pouco de Scorsese. O ‘Touro Enraivecido’ foi um dos meus filmes de eleição durante muito tempo.

Gosto da realização e da encenação e contagio-me muito com as duas (...) Tenho a sorte de conseguir fazer esta dançaJá tem ideias para o seu próximo projeto? Há alguma ideia que já tenha tido para um filme e que ainda não tenha posto em prática no grande ecrã?

Tenho algumas coisas em gaveta que estão ali à espera do dia. Neste momento estou a começar a desenvolver um projeto de cinema. Quero voltar a filmar. Não quero ficar muito tempo sem filmar. Ainda é cedo para dizer exatamente que tipo de projeto é. Há um projeto que tenho o sonho de um dia conseguir fazer e que é sobre a vida de D. João II. É uma das histórias que mais me fascina da nossa história em particular, e na história do mundo até. A história de vida dele é algo que me está atravessada na garganta [risos], gostava muito de um dia conseguir transformar em filme, mas é muito ambicioso e é muito difícil, na lógica económica de orçamento que nós temos, pensar num filme dessa dimensão. Portanto, continuo com essa esperança na gaveta, mas quem sabe um dia.

Além do trabalho no cinema, o Tiago também se tem destacado pelas peças de teatro. Quais são as principais diferenças entre o trabalho de realizador e o de encenador?

São muito diferentes e muito parecidos ao mesmo tempo. São muito diferentes, porque no caso do teatro estou no local e, se quisermos fazer uma comparação ao cinema, estou a construir um plano de sequência da duração da peça e faz-se a montagem com luzes e com tudo o resto. Funciona-se num plano mais distante, não há planos aproximados. Mas a principal diferença é que é ao vivo, o espetador está presente enquanto a peça está a acontecer. No cinema quando se entrega o produto ele já foi completamente manipulado e já está construído. No teatro há um espaço maior de magia do momento, e essa energia é muito contagiante e é algo de que gosto muito. E como gosto muito de atores e gosto muito de vê-los trabalhar, no teatro tenho a possibilidade de os ver repetir, evoluir e fazer coisas diferentes. O cinema permite outras coisas, outro tipo de linguagem.

A grande diferença é que o cinema faz-se aos bocados, estou a filmar pedaços. No teatro trabalha-se num plano de sequência gigante, em que se vai ensaiando e construindo até estar tudo pronto. Depois há as diferenças óbvias, a câmara, a abordagem da luz é uma coisa interessante, porque no teatro partimos de um buraco escuro e que começa a ser iluminado, enquanto que no cinema fazemos o contrário. Temos luz e temos que começar a tapá-la. No limite é contar uma história e passar alguma coisa aos espectadores, e isso para mim é comum aos dois. Gosto muito dessa possibilidade de chegar às pessoas.

Gosto da realização e da encenação e contagio-me muito com as duas. Eu levo muito do teatro para o cinema e do cinema para o teatro. Tenho a sorte de conseguir fazer esta dança.

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