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"Também muitos heterossexuais estão fechados na gaveta"

Ativista de muitas causas, não pensa em parar enquanto a saúde permitir. Aos 74 anos, tem um programa de rádio, está a tirar um Mestrado e é vogal na Junta de Freguesia de Arroios, em Lisboa. António Serzedelo é o entrevistado de hoje do Vozes ao Minuto.

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Catarina Correia Rocha
03/09/2019 09:30 ‧ 03/09/2019 por Catarina Correia Rocha

País

António Serzedelo

 

António Serzedelo recebe o Notícias ao Minuto, na sua casa, em Lisboa, com vista para o Castelo de São Jorge e o rio Tejo. O seu cão, Barack, em homenagem ao ex-presidente dos Estados Unidos que admira, acompanha a conversa como fiel ouvinte.

É um dos mais antigos ativistas pelos direitos LGBT em Portugal, um dos autores do primeiro manifesto da causa – publicado 18 dias após o 25 de Abril – e um feminista assumido.

Quanto ao seu percurso de ativismo diz estar por terminar e que “devia poder viver mais 20 anos para completar aquilo que está por fazer”.

A causa LGBT que defende está muito ligada à sua vida. Não é algo que se consiga separar facilmente…

Não é fácil separar, embora tenha feito muitas coisas que não têm propriamente a ver com a causa. Por exemplo, fui do Movimento Feminista. Até digo que era um feminista ‘avant la lettre’. Em Setúbal, criei com amigos uma associação que era de homens contra a violência. Acho que sendo nós os culpados – com aspas ou sem aspas – da violência que sofrem as mulheres ao longo dos séculos, devíamos assumir essa culpa e criar uma associação.

E fazer mais para combater.

Para darmos o exemplo. Porque as associações de defesa das mulheres são quase todas de mulheres. Claro, estão a defender-se em causa própria e fazem muito bem, mas nós os agressores - não estou a dizer que eu seja! – devíamos hoje fazer esta penitência... sem ser propriamente em termos de penitência cristã, mas termos a humildade de criar associações em que defendemos a mulher. A ‘mulher’ que são as nossas mulheres, as nossas mães, as nossas namoradas, ou as nossas companheiras de vida.

Eu próprio sou católico, costumo dizer que sou um católico quase à beira da excomunhão devido às grandes defesas que tenho feito

Apesar de estar mais associado à causa gay é ativista também noutras áreas. Manifestou-se, por exemplo, a favor da despenalização da Interrupção Voluntária da Gravidez. O que o fez ‘entrar’ também nestas questões?

São tudo lutas de cidadania. São tudo lutas de liberdade. E tudo lutas de igualdade. Percebo que uma mulher católica ou que um casal católico não seja a favor da Interrupção Voluntária da Gravidez. Percebo isso e respeito. Mas há muitas pessoas que não são. E essas não têm de ceder aos mandatos da Santa Igreja Católica. Eu próprio sou católico, costumo dizer que sou um católico quase à beira da excomunhão devido às grandes defesas que tenho feito. Designadamente a homossexualidade que agora, graças a este Papa, estão a aliviar a pressão. Mas a verdade é que enquanto nos aliviam pressão, o pobre Papa está a sofrer uma grande pressão dos cardeais conservadores.

O António tinha 30 anos no 25 de Abril…

Devo dizer-lhe que esses foram os dias mais felizes da minha vida até hoje! E tenho muitos dias felizes. E já previa porque estava no Estado Maior do Exército na repartição de Informação e Contra Informação. Portanto já lia os telegramas, as mensagens que chegavam... Já sabia que poderia acontecer. Aliás, aconteceu uma coisa muito engraçada: estava na repartição e houve um dia em que recebemos lá uma mensagem que havia uns generais que pediam uma sala para se reunirem. Fui ver os nomes dos generais e vi que era tudo gente fascista.

E tinha de fazer algo.

Entretanto, o meu chefe lá me deu ordem que eu é que ia receber os generais. Perguntei se não queria que ficasse na sala às ordens deles… “Vou perguntar”, respondeu. A resposta que veio é que não queriam ninguém lá dentro. Fiquei com as orelhas ainda mais aquecidas. Fui à quarta repartição do Estado Maior, falei com um major e disse-lhe o que é que lá se ia passar. Então ele disse-me: “Olha, o que tu vais fazer é comprar vários blocos de notas de papel muito fininho e lápis número 1 e pões nas diferentes secretárias onde eles estão, com o nome deles à frente. Quando eles saírem vais lá. Eles devem arrancar as páginas e vais lá ver o que está por baixo. Nós temos cá um aspirante que é de Química...”

Que tem forma de descobrir.

Assim fiz. Quando eles depois saíram fui a correr, deixei lá os blocos, tirei as primeiras folhas e fui levar à quarta repartição lá a esse major. Não fiz pergunta nenhuma porque tinha medo que se soubesse alguma coisa e se me fizessem mal ou me torturassem, que deitasse cá para fora. Assim como não sabia de nada…

… Não corria esse risco.

Exato. Depois, passado 15 ou 20 dias, encontrei-me na escada e perguntei-lhe: “Olhe, então valeu a pena?”. O major disse: “Sim, sim, valeu muito!” Já nem perguntei mais nada. Fiquei só satisfeito de ter valido a pena. E depois passado dias foi o 25 de Abril. Estava ainda no Estado Maior e, nessa noite, vinha de fazer uma peça de teatro do Altino Tojal – que já não foi para a frente porque no dia a seguir estava ‘velha’ - mas era bastante interessante antes. Naquela altura [os telefones] eram por moedas e troquei-as para avisar alguns amigos que os tanques estavam na rua. Vi-os ali ao pé do alto do Parque, fui mandado parar pelas tropas que estavam a rodear o Rádio Clube Português. Mandei chamar o oficial e disse que precisava de passar porque morava em Benfica e tinha que descer a rua de Campolide. Deu-me ordem para passar e perguntei o que se passava, porque não sabia se aquele golpe era o bom ou o mau. Ele disse-me: “Vá para casa descansado!”

Não foi.

Não fui assim tão descansado e com as moedas que tinha fui telefonando a alguns amigos a dizer que havia canhões na rua. Falei para casa de um amigo que era jornalista do Diário de Lisboa. E, para a polícia não me seguir, ia telefonando de diferentes cabines, pondo os escudos. Ele atendia-me e dizia: “Sai para a rua! Está a passar-se alguma coisa importante!” E ele perguntava quem falava. Não dizia. Desligava e ia ligar de outra cabine. À quarta ou quinta vez diz-me ele assim: “Oh, cabrão! Ou dizes quem é ou eu desligo!” Respondi que era o António Serzedelo: “Oh cabrão, não devias ter dito!”. E desliguei. O Diário de Lisboa foi o primeiro a por as rotativas a funcionar a sair com o golpe cá para fora.

Comecei a assumir-me muito lentamente em Lisboa, mas ao princípio negava-me completamente. E, entretanto, pelo meio, fui tendo algumas namoradas que ainda hoje são minhas amigas Cresceu e viveu com a sua identidade pessoal e sexual a ser desenvolvida num regime que contrariava tudo o que sentia.

E além disso em colégios religiosos.

Como foi?

Muito difícil. Comecei a assumir-me muito lentamente em Lisboa, mas ao princípio negava-me completamente. E, entretanto, pelo meio, fui tendo algumas namoradas que ainda hoje são minhas amigas. Depois, comecei a perceber que não era o único porque encontrava parceiros. E apercebi-me de que no próprio colégio se passavam essas coisas extraordinárias. Com a ajuda da faculdade, com a abertura dos livros que se liam e que se compravam… E ia ao estrangeiro, comecei a ir aos 19 anos, de autocarro, de comboio ou à boleia. Lá ia para essas cidades e comecei a ver o que lá havia e a perceber que o que cá não havia é que era o extraordinário. O que lá havia é que era o normal.

E como eram essas viagens? Fazia sozinho ou acompanhado?

A primeira vez que vi uma porno shop eu queria entrar. Mas olhei para trás e para a frente da rua para ver se ninguém me via. Nessa altura ia sozinho. Foi em Amesterdão. Olhei para um lado e para o outro como se alguém me conhecesse na cidade. Quando vi que não vinha ninguém na rua, entrei na loja e fui lá para o fundo para que ninguém que passasse na montra me pudesse ver.

Sempre com a ideia de se esconder.

De me esconder, sim. Depois não havia esta pornografia que há hoje – era uma pornografia que hoje consideraria muito chata – mas era o que havia. Então peguei em dois livros que queria trazer para Lisboa, mas depois pensei: “Agora o homem vai ver o que eu quero. Isto é uma vergonha. Como é que eu hei-de-fazer?” Lá arranjei também um heterossexual, que era para misturar… mas depois voltei para trás e pus os livros outra vez na prateleira porque me lembrei que cá em Lisboa abriam as malas, apanhavam-me aquilo e eu ia preso. Portanto não comprei livros nenhuns. Mas ficaram-me na memória estes medos que tinha interiorizados e de que me fui libertando ao longo dos tempos.

Nunca teve um caso que o tivesse marcado e feito pensar duas vezes se deveria ou não continuar a luta pela causa?

Algumas vezes houve tentativas de me atacar mas sempre corria mais ou escapava muito melhor. Fui uma vez preso pela polícia em frente a Universidade de Direito – vinha da Feira Popular – subi a Alameda e… tinha bebido uns copos. Às tantas passa um avião tiro o meu lenço e digo adeus. Os polícias que lá estavam, nuns Volkswagen pequeninos verdes, meteram-se nos carros a correr e cercaram-me: “O que é que você está a dizer ao avião?” Não estava a dizer nada nem as pessoas do avião podiam perceber [se fosse uma mensagem]. Mas e convencê-los? Prenderam-me, não me bateram e chamaram a PIDE para me levar para o Governo Civil. Subiram as escadarias da Universidade de Direito e foram conferenciar. Estava dentro do carro sozinho, abri a porta, saí muito baixinho quase a rastejar pelo chão, meti-me naquelas valas e naqueles matos que havia na altura ali à volta e desapareci. Nunca mais me viram. Senão levava porrada na certa.

A libertação da homossexualidade deixando de ser crime, creio, foi um grande passo. Lembro-me que dizíamos: "Somos livres! Somos Gente!" Porque até lá não o éramos  Estávamos há pouco a falar do 25 de Abril e o António foi um dos autores do primeiro manifesto da causa LGBT em Portugal, publicado 18 dias depois da Revolução. Como foi todo esse processo?

Para mim e para alguns foi um marco. Para os que são do Bloco de Esquerda e outros não foi. Porque isso privilegia-me e prestigia-me e eles não querem isso por não ser dessa área. Mas, de facto, já estávamos a combinar isso. Porque não se combina num dia. Aliás, éramos uns do Porto – o Jorge Lima Barreto, por exemplo, que já morreu - e outros de Lisboa, que também morreram. Um ainda é vivo mas não digo o nome porque é um cantor e, se calhar, estragava-lhe a venda dos álbuns e as simpatizantes que ele tem. Nessa altura não havia Internet, falávamos ou por telefone ou então creio que mandávamos faxes. Eles fizeram uma parte e nós fizemos a outra. Amalgamei - pelo telefone disse-lhes o que tinha feito - e resolvemos levar à opinião pública. Levei-o ao Diário de Notícias onde estava o Carlos Nuno Pinto Coelho, que era chefe de redação e que conhecia porque já tinha morado comigo como estudante. E depois ao Alexandre Oliveira que estava no Diário de Lisboa, mas a quem o entreguei foi ao Fernando Dacosta que mandou publicar todo.

Foi assim que saiu à rua e depois provocou aquela onda de choque do General Galvão de Melo ter vindo à televisão dizer que o 25 de Abril não se fez para as prostitutas e os homossexuais reivindicarem seja o que for. O que significa que a homossexualidade ficou ao nível da prostituição. Mas que aquilo também teve impacto porque para vir um general que fazia parte da Junta de Salvação Nacional à televisão fazer isso… Bem, e silenciou por alguns anos todas as reivindicações que pudessem haver. Depois começaram a aparecer outros grupos que tiveram mais importância – muito mais do que este papel – mas que também se foram desfazendo porque o ambiente não era ainda apropriado. Só 20 anos depois é que aparecem as primeiras instituições: a ILGA Portugal e a Opus Gay, três meses depois. Por causa disso a ILGA sempre tratou mal a Opus Gay.

Desde esta altura quais foram as maiores vitórias? A nível do reconhecimento dos direitos…

A nível do reconhecimento dos direitos em primeiro foi quando a homossexualidade deixou de ser crime. E depois até já se podia entrar para o exército. Teoricamente, porque conheci homens que estavam no exército e depois quando se descobriram foram destratados. Ainda aqui há tempos vimos no Colégio Militar o que lá aconteceu com um jovem. A libertação da homossexualidade deixando de ser crime, creio, foi um grande passo. Lembro-me que dizíamos: “Somos livres! Somos Gente!” Porque até lá não o éramos. Mas depois vários passos foram sendo dados. Não tenho responsabilidade nesses grandes passos - tenho uma responsabilidade mínima - mas depois começou a haver mais consciência e aí foi importante o trabalho que a ILGA e as Panteras fizeram. E que as lésbicas também fizeram. Mas a primeira luta parlamentar foi pelas uniões de facto. Depois de estas serem aprovadas já foi mais fácil o casamento. Acho, mas isto é discutível.

O grande caminho tem de ser o da libertação das mentalidades. E aí há uma coisa que digo: se lutarmos pelas mulheres e as mulheres vencerem, nós por atacado também vencemos. Porque é o mesmo machismo que ataca as mulheres que ataca os homossexuaisE o que falta fazer? Qual é o caminho que tem de ser percorrido?

Agora o grande caminho tem de ser o da libertação das mentalidades. E aí há uma coisa que digo: se lutarmos pelas mulheres e as mulheres vencerem, nós por atacado também vencemos. Porque é o mesmo machismo que ataca as mulheres que ataca os homossexuais. Exatamente o mesmo. As palavras podem ser outras mas o espírito que está por detrás é o mesmo. Quem o alimentou durante muitos anos foi, infelizmente, a Igreja Católica Apostólica Romana.

Ainda há a carga de vergonha em um homossexual se assumir?

Ainda temos. Se for de Lisboa para o Interior ou do Litoral para o Interior essas cargas, embora as leis já não permitam, continuam a ser as mesmas. Ainda há pouco um rapaz me telefonou a dizer que num ginásio chique das Amoreiras foi tão discriminado que entrou em depressão e teve de sair, porque os próprios professores o gozavam e depois instigavam os outros ginastas.

O que disse a esse rapaz?

Disse que se fosse queixar à polícia e que arranjasse testemunhas porque se os outros o gozaram vão juntar-se todos para dizer que é mentira. Mas se ele tiver testemunhas, o desmentido deles cai por terra.

E quem não tem coragem de se assumir…

Ainda há muita gente que não tem coragem. Às vezes há interesses de família, por razões de prestígio, por razões de heranças. Várias razões que pesam em algumas famílias, também por ignorância e Catolicismo exacerbado que fazem imenso mal aos próprios filhos e que leva até à desestruturação da família. Mas preferem isso a deixar que uma pessoa assuma a sua própria liberdade interior. Por isso há muitos anos que me defino um homem que é Republicano, Socialista, Libertário e Libertino. Quando digo libertino as pessoas…

Também muitos heterossexuais estão fechados na gaveta. Nas gavetas que as mamãs ou os papás ou a família criaram e que não lhes deixam ter a liberdade de se exprimir afetiva e sexualmente com as moças que gostamFicam de orelhas levantadas.

Ficam de orelhas levantadas porque pensam que ando aí metido em bacanais. Não, não é por isso. O meu libertino é no sentido do exemplo que se dá de liberdade aos outros e depois cada um assume-a como quiser. Mas primeiro tem de assumir por dentro que quer ser livre. Isto tanto diz respeito aos heterossexuais como aos homossexuais. Porque também muitos heterossexuais estão fechados na gaveta. Nas gavetas que as mamãs ou os papás ou a família criaram e que não lhes deixam ter a liberdade de se exprimir afetiva e sexualmente com as moças que gostam. Porque a mamã comanda em casa com quem eles se vão casar.

Contou-me antes que já tinha tudo preparado para casar com uma rapariga.

Primeiro uma e depois recusei e outra e outra e outra. A minha mãe negociava com a mãe delas e uns ofereciam a casa, outros o carro, outros a geleira, a viagem de núpcias… Estava tudo decidido. Por eles, não era por mim. E ia sempre dizendo que não. Porque não queria vender-me a um casamento qualquer. Por muito que pudesse depois vir a gostar da rapariga e ela de mim. Não posso dizer que elas eram feias ou bonitas ou assim assim. A forma como as coisas eram apresentadas é que não me podia interessar, nem que elas fossem a Miss Mundo.

E se o António de hoje pudesse dar uma mensagem ao António dos seus 20 anos? O que tinha para lhe dizer?

Dizia-lhe que aproveitasse a modernidade. Que se instruísse e se cultivasse. Que percebesse o tempo presente para poder entender o futuro.

Já falámos de causas como a gay ou a das mulheres. Acha que há possibilidade de regressão nos direitos que já foram alcançados?

Estamos a ver na Europa esses exemplos. Ali em Espanha com o Vox e com os acordos que fizeram em Madrid, que é uma cidade de liberdade LGBT. O Vox conseguiu impor a sua agenda. Estamos a ver o que acontece em Itália com o partido no poder. Na Aústria… a pressão que acontece na Alemanha… Estamos a assistir a uma constelação de extrema-direita muito perigosa cujos capitães são o Trump e o Bolsonaro. Repare que são dois países continentais. Os Estados Unidos são um país continente e o Brasil também. E depois aqui na Europa, a Itália que pertence à União Europeia, sem falar no ‘Brexit’ que também traz grande gravidade a estas questões.

Os partidos de Esquerda têm culpa e particularmente o Partido Socialista. Não houve uma educação para a cidadania nem para a Democracia. Não se explicou às pessoas a gravidade dos males que se faziam durante o antigo regime fascistaO que tem de se fazer?

Consolidar as vitórias que tivermos e talvez não avançar muito para a frente para não termos de recuar. Porque depois quando recuamos não o fazemos para onde estamos, recuamos mais para trás. Há que consolidar as vitórias. Os partidos de Esquerda têm culpa e particularmente o Partido Socialista. Não houve uma educação para a cidadania nem para a Democracia. Não se explicou às pessoas a gravidade dos males que se faziam durante o antigo regime fascista. Falava-se na PIDE, porque há heróis que sofreram com a PIDE, e falava-se que não havia contratos coletivos de trabalho, que a jorna era de 12 horas e que se ganhava uma miséria, mas não se contou tudo o que se passava: como as mulheres eram destratadas e maltratadas até pelos próprios maridos, como não havia Serviço Nacional de Saúde, como as crianças tinham de ir descalças para a escola  - e era só até à quarta classe porque os ensinos superiores estavam reservados às classes com mais prestígio. Os livros não podiam circular, a imprensa estava fechada... há toda uma série de coisas a ensinar e a explicar às pessoas e que não podem ser esquecidas e nunca houve essa pedagogia.

Fundou a Opus Gay e tem um programa de rádio, o 'Vidas Alternativas'.

Há 20 anos. Que, aliás, já foi fechado, também por ser um programa libertário. Foi o primeiro programa na Península Ibérica que tratava destas coisas. Hoje já deve haver bastantes em Espanha. Era aberto, portanto as pessoas podiam telefonar – passava em Lisboa e no Porto – era a rádio Voxx. Houve um travesti que nos telefona, a Lola, que já morreu, e diz coisas particulares da vida de um senhor que era ministro e com um posto muito alto naquele governo. Tentei brincar: “Oh Lola, tu assim provocas um golpe de Estado”. E desliguei logo que pude. O resultado foi que, uma semana depois, o andar estava comprado por uma pessoa desse mesmo partido e com massa. E foi fechado.

Tanto o programa como a associação surgem para dar voz a quem não a tinha?

Exatamente. Tanto que o programa tinha como slogan ‘Um programa muito pouco Católico para todos os protestantes sexuais’. E agora modifiquei, como trato mais problemas sociais: ‘Um programa muito pouco Católico para todos os protestantes sociais’. Não quero fechar só às questões sexuais. E agora estamos a tentar fazer um no Brasil. O último programa falava do aquecimento global, das minas que estão a fazer a céu aberto e que fazem mal à população porque contaminam o ar… De outra vez falei dos emigrantes que vivem em Portugal. Entretanto já fomos atacados duas vezes por fascistas, atiraram-nos abaixo a página e deixaram lá uma mensagem. Nessa altura tinha sido também ameaçado por um líder de extrema-direita em Portugal e fui avisado pela polícia. Tive de modificar a minha vida, mudar de carro, não ter mais rotinas, evitar sair à noite, por uma câmara na escada de casa… Naquela altura tínhamos oito milhões de visitantes e depois já não recuperámos. Há um ano ou dois fomos novamente atacados e levaram-nos outra vez tudo.

Tenho a consciência de que fui bem-nascido, mas também tenho a consciência de que há milhões que não tiveram essa sorte. Se a tive devo tentar lutar para que os outros tenham a mesma sortePor que razão o António incomoda?

Não sei. Não percebo, agora é muito fácil atacar. São os hackers que atacam e destroem. Claro que é um programa incómodo para alguns, não é de massas. Nunca fui apoiado, faço isto com o meu dinheiro. Até para não estar conotado tirei-o da Opus [Gay], mas como há a mesma pessoa que faz os dois caminhos, devem fazer essa leitura.

Atualmente, tem o programa na rádio, é presidente da Opus Gay, vogal na Junta de Freguesia de Arroios, está a fazer um Mestrado em ‘Ciência das Religiões’ e tem ginástica todas as manhãs. ‘Parar é morrer’?

É um bocado. O que tenho mesmo medo é de ter de parar. É inevitável com a idade. Mas enquanto puder aguentar-me vou fazer os possíveis para fazer coisas que são a favor dos outros, mas que também são a meu favor porque me dão força para viver. Tenho a consciência de que fui bem-nascido, mas também tenho a consciência de que há milhões que não tiveram essa sorte. Se a tive devo tentar lutar para que os outros tenham a mesma sorte. E, portanto, é uma luta que acho justa. Pelo caminho tropeço e serei aberto a críticas, mas é o impulso que tenho e que espero ter até morrer.

E olhando para o seu percurso de ativismo. Fez tudo o que se propôs ou algo ficou incompleto?

Nunca estou contente comigo, falta muita coisa. A Opus é uma pelintrice, não tem dinheiro. E devíamos ter dinheiro para fazer mais coisas, para podermos fazer coisas úteis. Disse a um amigo: “Estou com pouco dinheiro”. E ele respondeu: “Oh, António mas tu tens uma boa reforma. Mas quanto mais tens mais gastas para dar aos outros e, portanto, ficas sempre pior”. Quando recebo mais dinheiro penso que agora já posso ajudar aqui ou ali. Em vez de me ajudar a mim próprio. Na minha idade convém sempre ter um pé-de-meia. Se nós não tivermos dinheiro ninguém nos trata e sei disso porque tive um cancro. E trataram-me muitíssimo bem, mas tive de pagar 7 mil euros. Se tivesse 6.999 não me faziam o tratamento.

Há a Secretaria de Estado da Juventude, do Turismo, do Desporto… e não há dos Idosos. Pedi-a ao próprio António Costa e ele disse-me: "Vou pensar"Regresso à minha pergunta. Olhando para o seu percurso de ativismo como o caracterizaria?

É tão difícil responder. Acho que está incompleto, que devia poder viver mais 20 anos para completar aquilo que está por fazer. Gostaria de fazer outras coisas. Agora estou a dedicar-me aos migrantes e aos idosos. Aliás, até já propus ao Governo que crie uma secretaria de Estado dos Idosos. É o grupo social percentualmente mais numeroso e mais destratado. Há a Secretaria de Estado da Juventude, do Turismo, do Desporto… e não há dos Idosos. Pedi-a ao próprio António Costa e ele disse-me: “Vou pensar”.

Ficou com essa promessa.

Fiquei e acho que ele ainda está a pensar. Mas tem tido tantas coisas em que pensar que ainda não teve tempo para isto. Também é preciso que a opinião publica comece a sentir que há esta necessidade. Mas a opinião pública dos idosos… eles não têm cidadania e então não reivindicam. É preciso que as pessoas reivindiquem por eles.

Quem é, pelas suas próprias palavras, o António Serzedelo?

Um cidadão do mundo.

É como gostaria de ser lembrado.

Sim, tento ser um cidadão do mundo. Compreender os diferentes mundos em que hoje vivemos e que temos obrigação de entender. Por exemplo, agora estava com vontade de ir à Índia. Queria ir estudar o Budismo. Só podia ir em outubro porque a Clínica do Viajante para tomar as vacinas só nesse mês me podia receber e nessa altura já estava em aulas… por isso não dá.

Há algum tema que tenha ficado de fora na nossa conversa?

Gostava de lembrar que há um monumento em Lisboa em memória das vítimas LGBT do fascismo de que ninguém fala e de que fui o promotor. Está no Príncipe Real. É destratado até pela própria Junta de Freguesia. E custou à Câmara alguns milhares de euros. E foi graças ao vereador que nessa altura estava que era socialista, a quem eu pedi. Bem, mas sou independente. Na Junta de Freguesia também estou como independente. Mas sou um independente que me considero dependente porque se aceito um cargo é para o assumir em plenitude. E na Junta, onde estou com a Margarida Martins - foi ela quem me convidou e era o último da lista, talvez por ser o mais velho e até por ser independente – ela veio-me buscar e aceitei e não estou nada arrependido. E agora tenho mais dois anos de lutas e tenho quatro pastas de que gosto muito: as bibliotecas – tenho a mais bonita biblioteca de Lisboa – a Cultura, a Interculturas, porque no bairro há 94 ou 95 nacionalidades, e os idosos ativos. Portanto, estou a nadar na minha piscina.

E todas as causas podem contar consigo…

Enquanto puder não recuo. Assim tenha saúde e, nalguns casos, dinheiro. Porque há coisas que custam dinheiro. Se tiver de ir a Coimbra tenho de pagar o comboio, almoçar ou jantar lá. Vou-me aguentando. A Opus tem uma sucursal na Madeira e volta e meia tenho de lá ir, pago do meu bolso. Quando lá vou tenho de desembolsar. É um desembolso que gosto, mas nos outros dias do mês tenho de cortar.

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