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"Vivemos num país em que o grau de armário ainda é imenso"

Está na ILGA há 14 anos, há três como presidente e tem um percurso de vida que se confunde com os avanços e lutas da comunidade LGBTI. Nuno Pinto é o entrevistado de hoje do Vozes ao Minuto.

"Vivemos num país em que o grau de armário ainda é imenso"
Notícias ao Minuto

28/01/19 por Sara Gouveia

País Nuno Pinto

É investigador e formado em Psicologia, está ligado à ILGA Portugal (Intervenção Lésbica, Gay, Bissexual, Trans e Intersexo) há 14 anos e há três tornou-se presidente. Em conversa com o Notícias ao Minuto, Nuno Pinto dá conta de que os principais desafios com que se depara a comunidade LGBTI (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Trans e Intersexo) já não são tanto a nível legal, mas sim a nível social.

Apesar de todo o trabalho que tem vindo a ser feito, deixa o alerta que Portugal é "um país com lei mais avançada" mas que ainda "há todo um trabalho social" e de reeducação de toda a sociedade a fazer, "o processo ainda não acabou".

O responsável fala da discriminação que ainda existe na sociedade, do avanço dos populismos, da importância das 'saídas do armário' que "vêm reforçar que as pessoas LGBTI estão por todo o lado", das maiores conquistas pela igualdade, mas também das lutas que ainda é necessário travar.

Como é que surgiu o ativismo na sua vida?

O ativismo surgiu desde de muito cedo. Acho que a minha aproximação ao ativismo tem a ver com ser gay e ter precisado de me aproximar de pessoas e de encontrar outras pessoas como eu, combater o isolamento a que estava sujeito e combater a homofobia internalizada que sentia. Aproximei-me não só no sentido de lutar pela igualdade, mas também por mim mesmo.

Olhando retrospetivamente, tenho 36 anos e percebo que nas várias coisas em que já estive envolvido, profissionalmente, academicamente, o ativismo sempre esteve presente. Quando acabei o curso de Psicologia na Universidade do Porto, em 2005, estagiei num projeto do Espaço Pessoa, na Associação para o Planeamento da Família, que dava apoio a pessoas que se prostituíam na rua e já na altura, no âmbito de um estágio curricular - e só mais tarde é que me apercebi disto - tive alguma intervenção ativista. Já naquela altura, em que as questões do trabalho sexual ainda não eram uma questão mais politizada, fiz uma recolha de testemunhos junto das trabalhadoras do sexo e trabalhei para que percebessem os seus direitos. Foi também nessa época que comecei como voluntário na ILGA, tinha 23 anos, havia um grupo formal no Porto, que ainda existe, e acabei por me tornar coordenador desse grupo. 

Porquê a ILGA (Intervenção Lésbica, Gay, Bissexual, Trans e Intersexo)?

A ILGA era, e continua a ser, a associação LGBTI com maior visibilidade ou com maior tato, especialmente quando comecei. Em 2005 a cena ativista LGBTI não era a mesma que é atualmente. Aproximei-me do grupo, as coisas foram acontecendo naturalmente, acabei por ficar e quando vim morar para Lisboa aproximei-me ainda mais da associação e continuei sempre voluntário numa série de atividades.

Foram as questões LGBTI que o levaram a querer ir estudar psicologia?

Talvez, mas não consigo dizer com certeza. As nossas decisões são sempre complexas e às vezes não temos noção por que é que as tomámos. Quando fiz o doutoramento aqui em Lisboa, no ISCTE, fiz uma investigação sobre os direitos das pessoas transexuais e sei que o meu percurso académico esteve sempre muito ligado a esse tipo de questões, mas acho que as nossas escolhas têm sempre causas que nos escapam.

Hoje em dia acho que o percurso académico, profissional e de ativismo que tenho feito acabam por estar muito sobrepostos e por se complementarem. É um desafio e toda a formação que fiz permite-me ter ferramentas para trabalhar no ativismo. O trabalho que faço na ILGA é voluntário, sempre foi voluntário, mas acho que tenho conseguido aliar a investigação académica que faço ao ativismo de uma forma muito clara.

O mais recente exemplo tem a ver com a alteração que conseguimos fazer à Lei da Identidade de Género, que permite desde agosto de 2018 a autodeterminação e reconhecimento legal da identidade das pessoas trans e que teve por base um estudo académico, feito no ISCTE e do qual fui investigador principal.

A igualdade na lei é o princípio do fim da homofobia e da transfobia. Mas o Estado ainda não está preparado para apoiar devidamente todas as vítimas LGBTI que existem Crê que o preconceito inerente aos homossexuais e às pessoas trans é uma coisa do passado ou ainda está muito presente em Portugal?

Está muito presente em Portugal e de alguma forma na generalidade dos contextos globais. É importante percebermos que o que está a acontecer agora historicamente, nomeadamente na sociedade ocidental e em Portugal em específico, é que começamos a perceber que as questões LGBTI são questões fundamentais de direitos humanos.

Conseguimos em Portugal, só agora, a igualdade na lei, portanto há toda a discriminação, todo o estigma e dificuldades que as pessoas passam no dia a dia ainda por combater. A igualdade na lei é o princípio do fim da homofobia e da transfobia. Mas o Estado ainda não está preparado para apoiar devidamente todas as vítimas LGBTI que existem. Neste momento os serviços que existem para apoio a vítimas são serviços feitos por ONGs, com apoios pontuais por parte do Estado, mas não há um reconhecimento da necessidade que há de garantir a não discriminação e o apoio a vítimas de uma forma global por todo o país. Portanto estamos apenas ainda a dar os primeiros passos. Apesar disso, o ativismo em Portugal e a sociedade civil LGBTI têm conseguido em conjunto com o Estado avanços legais enormes.

Por que razão será que a sociedade portuguesa aparenta estar mais aberta a mudanças?

Isto é uma perceção pessoal do que tem acontecido na última década, mas acho que o associativismo e a sociedade civil LGBTI têm trabalhado muito e têm uma responsabilidade enorme nisso. Relativamente a todas as outras variáveis, podemos pensar que Portugal é um país pequeno e por isso a escala pode ter as suas vantagens no sentido de ser mais fácil provocar mudança numa sociedade mais pequena onde o acesso das pessoas e dos ativistas ao poder e a quem toma decisões políticas é mais facilitado. Acho que as grandes mudanças que aconteceram em Portugal em termos legais nas últimas décadas e todas as mudanças que surgiram depois foram motivadas pelo trabalho forte, sério, rigoroso da sociedade civil LGBTI, no qual a ILGA tem tido um papel fundamental, mas não exclusivo.

Há toda uma população, e estamos a falar de cerca de 10% da população, que de cada vez que sai à rua deixa de ser quem é de uma forma automática Quantos anos está atrasado o país nas questões dos direitos LGBTI?

É muito difícil responder a esta questão porque quando falamos em direitos, não falamos apenas dos direitos legais. Portugal é de facto dos países europeus e mundiais com uma legislação mais igualitária e com maior proteção contra a discriminação na lei. Mas este processo ainda não acabou. Há ainda outras questões na lei que muito em breve precisarão de alguma atenção pública e política.

No entanto, vivemos um contrassenso em Portugal, porque de facto temos uma legislação avançada, mas vivemos num país em que o grau de armário ainda é imenso. Em grandes cidades como Lisboa é que conseguimos ver de uma forma regular manifestações de afeto de casais do mesmo sexo na rua. Portanto há toda uma população, e estamos a falar de cerca de 10% da população, que de cada vez que sai à rua deixa de ser quem é de uma forma automática.

Cresci num contexto em que aquilo que aprendi foi que quem eu sou é errado, cresci num contexto em que as únicas palavras que encontrava para darem nome a quem eu sabia que era desde muito cedo eram insultosPorque é que isso acontece?

Acontece porque de facto a homofobia e a transfobia são ainda muito fortes e é preciso percebermos o contexto histórico. Por exemplo, cresci num contexto em que aquilo que aprendi foi que quem eu sou é errado, cresci num contexto em que as únicas palavras que encontrava para darem nome a quem eu sabia que era desde muito cedo eram insultos e que apreendia em contextos que deveriam ser seguros, como a escola, como a família. É muito difícil fazer um trabalho de reparação de tudo isto. Uma pessoa lésbica, gay, bissexual que tenha hoje 60 anos cresceu num contexto em que quem são era considerado uma doença e crime. Até aos anos 90, de acordo com a OMS, uma doença e até 1982 um crime do código penal.

É uma questão que estruturou e continua a estruturar as nossas vidas. É preciso um trabalho com as próprias pessoas LGBTI de empoderamento, de reparação e fazer ainda um trabalho com toda a sociedade que não se pode esgotar em mudanças legislativas. Tem de se fazer um trabalho pedagógico, de reeducação de toda a sociedade, com campanhas, com tolerância zero à discriminação.

Mas acho que Portugal é um país paradoxal. É um país com lei mais avançada, mas onde há todo um trabalho social para fazer. No entanto, este trabalho social é agora muito mais fácil de fazer havendo igualdade na lei.

Ainda há contextos que são mais associados à homofobia?

Há. A discriminação que incide sobre as pessoas LGBTI é um ramo do sexismo que está por trás. As questões da igualdade de género são as questões transversais aqui. Os contextos que são tipicamente mais sexistas, em que há uma maior rigidez e menos abertura à mudança, são contextos que ainda são bastante difíceis para as pessoas LGBTI.

Um deles é o desporto, por exemplo. Em Portugal temos apenas, até agora, um atleta olímpico que saiu do armário como um homem gay, o Célio Dias. Foi a primeira figura do desporto em Portugal a sair do armário. Nós estamos em todas as áreas e, obviamente, o desporto é uma delas, mas as Forças Armadas também são. Essa é uma área onde fizemos alguns progressos no passado, nomeadamente com as denúncias de discriminação que existiu no Colégio Militar, mas nas quais continua a ser muito difícil trabalhar.

Portugal é o único país que conhecemos em que a Ordem dos Médicos tem de autorizar caso a caso os tratamentos físicos feitos a pessoas transHá ainda outras áreas que parecem menos óbvias, onde ainda há muita resistência à mudança, mas nas quais temos trabalhado bastante,  Por exemplo, a área da Saúde. Há uma grande resistência na Saúde para a mudança e é uma área chave porque foi responsável pela patologização e discriminação das pessoas LGBTI até muito recentemente.

Em Portugal conseguimos tirar o poder de profissionais de saúde no reconhecimento legal da identidade de pessoas trans, mas os cuidados que são prestados a essas pessoas ainda são altamente precários e, em alguns casos, com violações das diretrizes internacionais. Portugal é o único país que conhecemos em que a Ordem dos Médicos tem de autorizar caso a caso os tratamentos físicos feitos a pessoas trans.

Mesmo com o nosso alerta constante e do trabalho de proximidade que temos feito com a Direção Geral da Saúde e com as equipas de especialidade em vários hospitais públicos, há cerca de 11% de pessoas lésbicas, gays ou bissexuais que já recorreram à psicoterapia a quem já foi sugerido pelo profissional de saúde mental que a homossexualidade ou bissexualidade é uma doença e tem cura. Apesar de todo o trabalho, estas questões ainda são invisíveis para a maioria das pessoas.

Seria importante que pessoas desses contextos se assumissem publicamente, ou considera que não teria peso?

É muito importante. A ILGA tem premiado nos últimos anos as pessoas LGBTI em Portugal que têm contrariado o silêncio sobre quem são. Este ano foi a primeira vez que premiámos várias pessoas em várias áreas e isso é sinal de que as coisas estão a mudar. A importância da visibilidade é imensa. Ainda há esta ideia de que as pessoas LGBTI são estranhas, distantes, remotas, mas não. Estamos em todas as famílias, em todos os contextos profissionais e em todos os contextos sociais. É importante acima de tudo que as pessoas LGBTI tenham role models, pessoas com quem se possam identificar.

Enquanto crescia havia muito poucas pessoas, figuras públicas LGBTI com histórias de sucesso e felicidade, em Portugal e no Mundo, para poder projetar a minha vida e quem sou. Hoje em dia, felizmente, isso começa a ser contrariado. Um jovem que faça desporto e que queira ser atleta profissional já tem uma ou outra referência nesta área.

Quanto mais saídas do armário há, mais demonstração há do trabalho imenso que ainda há por fazer. Costumamos dizer que se todas as pessoas saíssem do armário íamos perceber a gravidade do problema que temos atualmente, íamos perceber que existe uma enorme fatia populacional que se encontra escondida.

Os dados estatísticos dizem que 10% da população tende a ser lésbica, gay ou bissexual. Foi publicada em 2005 uma sondagem que dizia que um milhão de portugueses são homossexuais ou bissexuais, portanto nas formações que fazemos costumamos dar o exemplo de contar até dez em qualquer lado e perceber que 1 em cada 10 pessoas nas nossas escolas, nas nossas famílias, nos contextos públicos, nos transportes públicos onde andamos, são homossexuais ou bissexuais. Isso ajuda a que as pessoas se sintam menos isoladas, que é um problema que ainda existe principalmente fora dos grandes centros urbanos. Há muitas pessoas LGBTI que se dirigem para Lisboa ou para o Porto para poderem encontrar outras pessoas, para fazerem parte de uma comunidade e se sentirem mais seguras, acima de tudo.

Quão importante foi a ‘saída do armário’ de Graça Fonseca, atual ministra da Cultura ou de Adolfo Mesquita Nunes, vice-presidente do CDS, um partido mais conservador?

Estas saídas do armário vêm reforçar que as pessoas LGBTI estão por todo o lado, nomeadamente no aspeto partidário. Vêm reforçar que as questões LGBTI, de Direitos Humanos em geral, deveriam ser uma questão de união entre todos os partidos, independentemente de questões ideológicas relativamente a outros assuntos. Pode existir uma perceção social, que estamos confinados a determinados grupos populacionais ou a determinadas ideologias políticas. Obviamente que não, estamos por todo o lado. E o que estes coming outs nos mostraram é isso mesmo.

A saída do armário em particular do Adolfo Mesquita Nunes mostra-nos que as pessoas estão por todo lado, mesmo em contextos mais difíceis como é o caso do CDS, que tem tido posições homofóbicas e contrárias à igualdade historicamente e que continua a ter. Mesmo nesses contextos as pessoas continuam a estar, são resilientes e encontram forças para dizerem quem são, saírem do armário e afirmarem positivamente as suas identidades. Portanto esse exemplo para nós é de facto fundamental, independentemente das críticas que fazemos e que temos feito a todos os partidos e pessoas com responsabilidade política que têm estado contra a igualdade.

Outra questão que seria bem mais complexa é analisar porque é que alguém que é lésbica, gay ou bissexual protege partidos que não defendem os seus próprios direitos.

Ainda há pessoas prejudicadas em contexto de emprego por se assumirem como homossexuais ou trans?

Em Portugal temos uma falta de dados em geral sobre a discriminação em específico que afeta as pessoas LGBTI em diferentes áreas: na saúde, no trabalho, no acesso a serviços, no espaço público, etc. A ILGA recolhe dados através do Observatório da Discriminação, mas que são apenas a ponta do iceberg, dependem de denúncias voluntárias e portanto não temos dados gerais e precisamos de os ter.

O que sabemos dos vários casos que nos chegam é que de facto há pessoas com bastantes dificuldades no emprego. Casos de pessoas que nem sequer põem a possibilidade de estar fora do armário no trabalho e que muitas vezes nem percebem isso como problemático - enquanto que um colega heterosexual pode ter uma fotografia da sua família na secretária, isso não é sequer pensado, uma pessoa LGBTI nem sequer coloca para si mesmo essa possibilidade. Há mesmo uma necessidade de fazer um trabalho de reparação.

Hoje em dia há mais homofóbicos, transfóbicos ou bifóbicos?

Acho que estão todas relacionadas. Temos de subdividir porque estes mesmos grupos dentro de si também são muito diversos. Se falarmos de pessoas homossexuais podemos falar de homens, mulheres, homens e mulheres com expressões de género diferentes, por exemplo, um homem gay com uma expressão de género muito feminina irá experienciar situações de estigmatização e discriminação muito diferentes de uma mulher lésbica muito feminina, mas em geral as mulheres lésbicas sofrem de uma maior invisibilidade porque são mulheres e há uma discriminação sexista antes de haver uma discriminação pela orientação sexual.

Se falarmos nas questões trans as coisas também se complexificam. Os processos de discriminação e estigmatização dirigidos a mulheres trans e homens trans são muito distintos. Há uma certa perceção que vamos tendo de que tende a haver uma menor discriminação dirigida a homens trans, portanto pessoas cujo sexo determinado ao nascimento foi feminino mas que se identificam como homens, do que para com mulheres trans. Mas isso levar-nos-ia a uma discussão complexa sobre o facto de as mulheres trans serem vistas como pessoas que abdicaram da masculinidade, que é algo socialmente valorizado e que há uma dificuldade em perceber como é que alguém abdica de algo que é aquilo que temos por exemplar.

Está tudo relacionado. Dificilmente alguém que homofóbico, não é bifóbico ou transfóbico.

Mas mesmo em contexto LGBTI há quem não acredite na bissexualidade.

As questões de homofobia, transfobia ou bifobia são transversais a toda a sociedade, nomeadamente a pessoas LGBTI. Há muitas mulheres sexistas. As questões de discriminação em função do género são de uma forma geral tão profundas e estruturais que muitas vezes são invisíveis, são algo a que estamos habituados. A luta pelos direitos das pessoas LGBTI não é uma luta das pessoas LGBTI versus as pessoas não LGBTI, é uma luta das pessoas que defendem a igualdade versus as pessoas que não acreditam na igualdade ou não a desejam.

Depois, tendemos desde muito cedo a crescer e a educar num contexto tendencialmente binário e o género vive muito desse binarismo, mesmo quando falamos das questões LGBTI. Acho que as pessoas bissexuais sofrem de um estigma particular porque violam de alguma forma o sistema binário de género, ou se é uma coisa ou se é outra, ou se sente atração por um género ou por outro e este estigma particular que enfrentam existe também na comunidade LGBTI, obviamente.

E acho que o importante é denunciar esta discriminação e este estigma em geral. O trabalho tem de ser feito tem de ser de forma transversal.

No caso da violência doméstica entre pessoas LGBTI ou contra pessoas LGBTI existe um duplo estigma e uma dupla invisibilidade

A violência doméstica em contexto homossexual é mais encapuzada do que no heterosexual?

Bastante mais. Costumamos dizer que no caso da violência doméstica entre pessoas LGBTI ou contra pessoas LGBTI existe um duplo estigma e uma dupla invisibilidade. Porque há um estigma em geral dirigido a vítimas de violência doméstica, mesmo heterosexuais, que muitas vezes faz com que as pessoas não denunciem e que no caso das pessoas LGBTI se transforma num duplo estigma.

Os dados mostram que os números de violência doméstica são iguais em casais do mesmo sexo ou de sexo diferente. Há muito menos visibilidade em casais do mesmo sexo, começa agora a haver algum trabalho. A CIG - a Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género lançou há uns anos um manual com recomendações para profissionais de estruturas de apoio a vítimas. 

As questões da violência doméstica que afetam as pessoas LGBTI não se reduzem à violência conjugal. É importante lembrar que uma das graves formas de violência doméstica que afetam as pessoas LGBTI é em contexto familiar não conjugal. Muitas vezes vinda de pais ou responsáveis legais para com filhos e filhas, nomeadamente menores, que são vítimas de violência psicológica, física e social por parte da família. Mas ainda são muito invisíveis e só começamos agora a ter respostas para estes casos. Daí a importância dos serviços de apoio a vítimas. Temos pela primeira vez desde o ano passado uma casa abrigo no norte do país que acolhe vítimas LGBTI, mas é o primeiro recurso e muito recente.

Só agora enquanto sociedade começamos a perceber que todas as outras questões que casais de sexo diferente enfrentam também os outros enfrentam

Mas por vezes em situações conjugais há uma maior demora em denunciar a situação por não se perceber que se trata de uma situação de violência doméstica?

Claro. Pode demorar para os próprios ou para as próprias e para o contexto social à volta. Ou seja, as relações entre pessoas do mesmo sexo só agora historicamente é que são reconhecidas como relações tal como todas as outras e não como um desvio ou manifestação de uma doença. Só agora enquanto sociedade começamos a perceber que todas as outras questões que casais de sexo diferente enfrentam também os outros enfrentam.

Nas formações que dou sobre violência doméstica entre casais do mesmo sexo dou costumo dar um exemplo pessoal sobre a altura em que vivia no Porto. Tinha um casal amigo, dois homens, onde existiam situações de violência doméstica que hoje em dia consigo reconhecer obviamente e que são tipificadas como crime - na altura ainda não eram tipificadas como crime porque não incluíam casais do mesmo sexo - e que eu próprio não reconhecia como sendo violência doméstica. Porque de facto temos dificuldade em perceber as relações entre pessoas do mesmo sexo como relações como todas as outras. Depois há várias ideias e vários mitos: Como é que um homem não se defende de outro homem? Há uma certa ideia de que nas relações entre pessoas do mesmo sexo não há dinâmicas de poder. Nomeadamente dinâmicas de poder de género. Que existem e que podem ser fortíssimas.

Portanto a resposta é sim. Pode haver muito mais dificuldade em identificar uma situação de violência pelas próprias pessoas, pelo contexto social envolvente e por técnicos que trabalhem em estruturas de apoio à vítima.

Mais do que criar legislação para assegurar os direitos LGBTI, considera que a meta mais importante agora é aplicá-la na realidade?

Há diferentes tipos de leis. Houve mudanças legislativas que vêm consagrar igualdade no acesso a direitos. O exemplo mais óbvio é o casamento. Durante os primeiros anos a seguir à lei da igualdade no acesso ao casamento ter sido aprovada, depois de 2010, houve vários casos de algumas dificuldades em conservatórias, por exemplo, mas no geral a lei tem sido aplicada.

Relativamente às leis no acesso à parentalidade estamos ainda no início. Estas leis nomeadamente a igualdade no acesso à adoção e a igualdade no acesso às técnicas de procriação medicamente assistida para casais de mulheres ou mulheres sem companheira ou companheiro são recentes. Houve alterações recentes a estes direitos por parte do Tribunal Constitucional e de facto ainda estamos a perceber qual o impacto que têm na vida das pessoas, estamos a monitorizar a aplicação dessas leis. Se bem que irá demorar algum tempo, mesmo até as candidaturas a adoção são questões que demoram tempo, independentemente de que tipo de casal estejamos a falar ou pessoa individual.

Depois há outras questões na lei que têm a ver com proteção contra discriminação, por exemplo, no trabalho ou noutros contextos. Aqui de facto tem de ser aplicada mais vezes, mas para isso tem de haver denúncias e perceção de que se trata de uma situação desse género.

Estamos ainda nessa fase de aplicação da lei e o grande objetivo agora, mais do que a aplicação da lei, é conseguir que as práticas sociais e a forma como regulamos as nossas práticas sociais em termos éticos, mais do que em termos legais, estejam de acordo com o espírito da lei.

Durante o debate sobre o casamento entre pessoas do mesmo sexo, um dos argumentos que se ouvia era que os homossexuais deviam ter acesso ao direitos inerentes a um casamento, mas que o nome não deveria ser o mesmo. Porque é que era importante ser assumido legalmente que era de um ‘casamento’ que se tratava?

Porque se não continuaria a haver discriminação na lei. Aquilo que seria criado, e tem sido em alguns países, é a criação de uma figura menor em termos legais e em termos simbólicos. Porque muitas vezes são figuras que em termos legais configuram os mesmos direitos, mas que simbolicamente diz que àquele grupo não se permite o acesso àquela instituição, que continua a ficar reservada a pessoas heterossexuais. Não havendo casamento para todas as pessoas continuaria a haver discriminação na lei.

É fundamental perceber, e atualmente estamos com essas questões muito presentes, que as expressões da linguagem são fundamentais. A questão do casamento é muito mais do que a questão da linguagem, mas que a questão da linguagem é fundamental. Os nomes que damos às coisas e as categorias em que incluímos as pessoas são fundamentais. A linguagem constrói as realidades na nossa cabeça e atribuir-lhes significados.

Passado nove anos do acesso igual ao casamento a sociedade portuguesa é muito diferente, se não tivesse acontecido com esse nome não seria assim. Para quem cresceu como LGBTI entende isso. As questões da linguagem são absolutamente fundamentais e uma das grandes discussões que temos de ter hoje em dia enquanto sociedade com as várias questões que têm surgido.

Há necessidade de criar políticas de educação sobre matérias LGBTI nas escolas?

Muita necessidade. Estamos a falar de questões estruturais. Era necessário por várias razões, uma delas e a mais óbvia é que as crianças de hoje em dia serão os adultos de amanhã e portanto é aí que a mudança também tem de acontecer. Além disso, como as coisas estão a mudar, cada vez há mais jovens LGBTI a expressar livremente a sua identidade desde de muito cedo, nomeadamente em contexto escolar, portanto é fundamental que as comunidades escolares estejam preparadas para isso e que as escolas sejam contextos seguros.

É um trabalho essencial porque tem havido mudanças muito recentes na própria lei nesse sentido. A lei da autodeterminação do género, que entrou em vigor em agosto de 2018, inclui não apenas recomendações mas também um mandato que é atribuído a responsáveis políticos nas questões da educação em particular, para que num prazo - que quase já está a ser ultrapassado - sejam implementadas políticas nas escolas para que os jovens trans não sofram discriminação, nem transfobia, podendo usar o nome com que se identificam. Está na lei e estamos ainda à espera que seja implementado.

É impossível não falar do Brasil e do que está a acontecer no Brasil. Desde que o governo brasileiro está em funções temos recebido muitos pedidos de ajuda de pessoas que querem fugir do contexto brasileiro O avanço de populismos, e em particular da extrema-direita na Europa, traz um risco acrescido de retrocesso ao movimento LGBTI?

Traz um risco imenso, mais do que um risco já é uma realidade que acontece na vida das pessoas. Há contextos muito difíceis. Tenho amigos próximos que vivem em países como a Polónia atualmente, que permitem demonstrar o privilégio que é atualmente na Europa residirmos em Portugal. Não é um risco apenas para os avanços que se conseguiram mas é um risco para o avanços que ainda não se conseguiram noutros países.

Este ataque que está a acontecer à democracia tem sido global, obviamente na Europa tem havido contextos assustadores a este nível, com a Polónia, a Hungria, mas temos visto a extrema-direita a avançar em países como a Espanha, mesmo aqui ao lado. Nos dias de hoje é impossível não falar do Brasil e do que está a acontecer no Brasil. Desde que o governo brasileiro está em funções temos recebido muitos pedidos de ajuda de pessoas que querem fugir do contexto brasileiro e que sentem a sua vida ameaçada e devemos lembrar-nos que isto pode acontecer em qualquer lugar, nomeadamente cá.

O apelo que acho fundamental fazer numa altura destas é de que se cumpra a lei e lembrar que o discurso de ódio em Portugal é criminalizado. Mas acima de tudo apelar à responsabilidade e aos limites éticos de quem tem poder e a comunicação social tem muito poder. Com a atual discussão que está a haver sobre o palco que foi dado a movimentos e pessoas que são contra a democracia, pessoalmente faço um apelo ético para que se responsabilize quem tem poder e quem tem possibilidade de criar mudança positiva ou negativa. A responsabilidade é de todos nós e todas nós neste momento histórico. Em Portugal temos conseguido ser uma exceção ao que está a acontecer, mas há várias pessoas interessadas que movimentos populistas cheguem ao poder, mais do que populistas, movimentos anti-democráticos. 

Na ILGA temos apelado a uma responsabilidade ética da comunicação social, temos tido ao longo dos anos e mais recentemente muitos pedidos por parte de profissionais de comunicação que querem ter formação sobre estas questões de igualdade, LGBTI, para terem linguagem, para terem recursos para usar, para estarem devidamente informados para entrevistas ou quando dão palco a quem incita à violência ou ao ódio. Por isso responsabilidade e ética são as palavras-chave.

Como viu a recente entrevista de Manuel Luís Goucha, homossexual assumido e casado com um homem, ao nacionalista de extrema direita, Mário Machado, um homem que foi líder do grupo neo-nazi ‘Portugal Hammerskins’ conhecido por ter como alvo minorias como negros, muçulmanos e homossexuais e que fundou o movimento de extrema direita, a Nova Ordem Social?

Começo por acrescentar à sua pergunta que Manuel Luís Goucha já recebeu um prémio da ILGA Portugal. Quando saiu do armário recebeu um prémio e fez na altura um discurso muito bom, brilhante, quando o foi receber. É importante percebermos que as pessoas mudam para o bem e para o mal. Eu sou ativista porque acredito na mudança das pessoas, acredito na mudança para a positiva e não desisto das pessoas facilmente.

Neste caso volto à resposta que dei anteriormente, neste momento as palavras-chave independentemente das questões legais, de configurar crime ou não, Mário Machado aparecer na televisão, que não configura, são ética e responsabilidade. Por isso é que a comunicação social e figuras reconhecidas da comunicação social têm poder e esse poder traz responsabilidade.

Não acusaria uma mulher sexista por ser sexista e considerá-lo-ia mais grave por ser mulher, desvalorizando-o no caso de ser um homemE a responsabilização não é maior neste caso por ser uma pessoa que faz parte da comunidade LGBTI?

Tenho dificuldades em responder a essa pergunta. Acho que da mesma forma que não acusaria uma mulher sexista por ser sexista e considerá-lo-ia mais grave por ser mulher, desvalorizando-o no caso de ser um homem, se for uma pessoa LGBTI acho que a lógica deve ser a mesma.

Agora isto não impossibilita termos uma reflexão privada sobre como é que de facto estes movimentos populistas, anti-democráticos e os ideais de quem ataca e incita ao ódio sobre grupos sociais específicos comecem a ser tão naturais ao ponto de as pessoas que pertencem a esses grupos ajudarem, intencionalmente ou não, a dar-lhes palco. Sem se aperceberem que aquela pessoa que está ali à frente é um ataque para todos, mas em especial para si mesmo. 

É uma discussão e uma reflexão que acho que devemos ter, mas custa-me bastante e tenho alguma dificuldade em apontar responsabilidades acrescidas a uma pessoa LGBTI por ser LGBTI.

É presidente da ILGA desde novembro de 2016, a fazer três anos de direção este ano, que avanços foram feitos?

Em qualquer associação todo o trabalho que fazemos em determinado momento está alicerçado no trabalho feito anteriormente. A ILGA tem feito um trabalho muito positivo e fundamental para a sociedade portuguesa ao longo dos últimos anos, em especial na última década, tal como outras associações LGBTI. Somos muitas pessoas, o trabalho é de todas elas. Ao longo dos últimos três anos orgulhamo-nos de várias questões. A mais óbvia tem de ver com as mudanças legais que conseguimos.

Quando tomámos posse havia um certo risco de haver a perceção de que a parte do trabalho legal já estava feita, mas conseguimos num curto espaço de tempo criar uma discussão pública e séria sobre as questões da autodeterminação trans, intersexo, com dados, com envolvimento de diferentes entidades e associações, conseguir uma mudança legislativa e voltar a Portugal no topo europeu e mundial destas questões. Orgulhamo-nos também que este processo tenha sido feito em conjunto com toda a sociedade civil LGBTI. A ILGA teve um papel importante, mas sempre em articulação com outras associações como a Amplos - Associação de Mães e Pais pela Liberdade de Orientação Sexual e Identidade de Género e o caminho foi feito acompanhado.

Temos conseguido também manter os direitos LGBTI na agenda política. Conseguimos, juntamente com muitas outras pessoas, que o Estado português organizasse o maior evento político LGBTI que já houve em Portugal que foi, em 2018, a conferência do IDAHOTB - International Day Against Homophobia, Transphobia and Biphobia.Pela primeira vez há um plano nacional específico de combate à discriminação que afeta as pessoas LGBTI, anteriormente estavam incluídas no plano nacional pela igualdade, agora têm um plano específico, é um avanço imenso. Queria realçar também todo o trabalho comunitário que não foi descurado e que foi mesmo aumentado. Ajudamos a fazer crescer a marcha de orgulho LGBTI e o ano passado foi a maior que Portugal já teve.

A grande luta vai ser de facto monitorizar o acesso à parentalidade das pessoas LGBTI e perceber se as leis estão a ser cumpridasPorque é que a marcha LGBTI é tão importante?

As marchas LGBTI são momentos políticos, de reivindicação de um espaço público que em geral não é nosso, em especial em meios pequenos. Já estive em várias marchas e lembro-me por exemplo que em Vila Real havia um espanto enorme para com o que estava a acontecer, para muitas das pessoas era a primeira vez que viam uma afirmação pública daquele género. Causa impacto. Até por questões de comunidade, as pessoas organizam, participam e de repente naqueles locais passa a haver um reforço comunitário.

Temos conseguido fazer um trabalho bastante forte e de alguma forma em conjunto e em rede com outras associações e outros coletivos. Temos tentado fazer um trabalho em que as diferentes visões e as diferentes perspetivas, dentro do movimento LGBTI, não conflituem, mas que se complementem.

Quais é que considera terem sido maiores conquistas para os direitos LGBTI nos últimos anos?

Houve um marco, absolutamente fundamental, que foi a igualdade no acesso ao casamento. Essa conquista, em 2010, permitiu tudo o que se seguiu. O termos conseguido igualdade no acesso ao casamento e não uma figura alternativa, como dizia, foi essencial. Bem como toda a discussão pública que houve na altura e que permitiu depois mais para a frente a Lei da Identidade de Género de 2011, as leis de acesso à parentalidade e da procriação medicamente assistida mais tarde e agora as questões da autodeterminação trans/intersexo.

Não é por acaso que os prémios Arco-Íris acontecem sempre em torno do dia 8 de janeiro, que foi o dia em que se fez história em Portugal e em que foi aprovado no Parlamento português a igualdade de acesso ao casamento. Em termos legais esta foi a maior conquista e que ultrapassou muito a questão legal, porque teve um efeito pedagógico fortíssimo na sociedade. Se fizermos uma sondagem sobre se a população portuguesa é contra ou favor da igualdade no acesso ao casamento antes de 2010 e depois de 2010 percebemos a pedagogia que a consagração desse direito legal trouxe.

Quais são as próximas lutas?

A grande luta vai ser de facto monitorizar o acesso à parentalidade das pessoas LGBTI e perceber se as leis estão a ser cumpridas, nomeadamente para com as mulheres no acesso à procriação medicamente assistida com as alterações que houve por consequência da decisão do Tribunal Constitucional.

Há uma discussão que sabemos que é importante que a sociedade portuguesa comece a ter de uma forma responsável, de uma forma informada e que é sobre a gestação de substituição e sobre o acesso de homens gays a essa opção. É uma discussão que estamos a preparar e que muito em breve será uma questão fundamental.

Outras lutas nas quais nos temos envolvido e que têm de alguma forma a ver com as questões que trabalhamos, nomeadamente da igualdade, e que acreditamos que vão ser questões políticas muito fortes nos próximos anos, são por exemplo o caso do trabalho sexual. Não são questões exclusivamente LGBTI, mas que estão ligadas à luta que temos feito e que tem a ver com lutar contra um policiamento das escolhas relativamente à sexualidade. 

Isto são lutas mais legais, mas a grande luta continuará a ser manter as questões LGBTI na política e encontrar medidas e lutar por políticas públicas que consigam contrariar toda a discriminação e todo o estigma que ainda existe na sociedade e provocar mudanças reais concretas na vida das pessoas em diferentes áreas, na saúde, no trabalho, da segurança. São mudanças mais difíceis de concretizar porque não se reduzem a uma lei e que são um trabalho essencial.

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