Francisco Seixas da Costa foi, enquanto secretário de Estado para os Assuntos Europeus, responsável por alguns acordos importantes para a Europa. Se hoje admite que na altura não tinha uma imagem positiva da Europa, agora reconhece que fazer parte dela pode trazer mais benefícios do que o contrário.
Por isso, lamenta que outros países olhem para a Europa como um "bode expiatório" e considera que devem ser os governos nacionais a mudar esta ideia.
Na segunda parte da entrevista que concedeu ao Notícias ao Minuto, o antigo embaixador das Nações Unidas fala, ainda, do papel de António Guterres nesta instituição e confessa que sempre soube que o português iria chegar longe.
Enquanto secretário de Estado dos Assuntos Europeus, esteve envolvido em vários acordos em prol da UE, tais como o Tratado de Amesterdão e de Nice ou a Agenda 2000. O que falta fazer por uma Europa mais unida?
Ui… isso é uma longa questão. Aquilo a que chamamos a Europa é uma realidade mutante. A Europa que existia quando fui secretário de Estado, e deixei de o ser em 2001, era uma Europa completamente diferente da Europa que vivemos hoje, da mesma forma que a de 2001 era diferente do que a que tinha sido constituída em 1957.
Vamos chamando Europa a coisas diferentes e, mais importante, vamos pedindo à Europa soluções diversas, e há algumas coisas que no passado não seriam consideradas na Europa e que agora o são. A Europa é uma realidade que vai mudando com o tempo. Diria que, vou ser sincero, quando fui secretário de Estado tinha uma leitura da Europa menos positiva do que a tenho hoje, independentemente de hoje ter muitas dúvidas sobre o seu modelo e o seu futuro. Mas na altura, fui convencido da bondade do projeto europeu ao integrá-lo e ao trabalhar nele.
Tinha muitas dúvidas sobre a passagem para a dimensão europeia de assuntos que achava serem só de âmbito nacional. Hoje em dia considero que há uma grande vantagem em garantir que a Europa tome conta de determinados assuntos mas também começa a revelar-se que certos países e certas opiniões públicas acham que a Europa não deve ir tão longe ao ponto de poder afetar aquilo que é uma perspetiva nacional relativamente a alguns problemas. E é preciso este equilíbrio entre o que se pode manter a nível nacional, ao nível das soberanias nacionais, e aquilo que pode ter uma dimensão europeia, sendo que esta dimensão terá sempre que passar por testes de legitimidade e eficácia.
Temos tido na Europa uma espécie de avanços pragmáticos, vai-se andando tanto quanto se pode, tendo em conta sobretudo uma coisa: a Europa viveu sempre na ambiguidade relativamente ao modelo final da UE. Esta ambiguidade é o segredo do sucesso. As coisas não podem caminhar como no marxismo tradicional em que tudo se fazia relativamente a um objetivo final. O objetivo final é aquilo que a realidade vier a demonstrar que é possível em função do avanço do sentimento comum dos vários países. Não haverá nunca uns Estados Unidos da Europa, nunca haverá um modelo federal tradicional, mas há seguramente a possibilidade de darmos passos em determinadas áreas de maior conjugação das políticas nacionais.
Europa é vítima da sua própria diversidade e da sua elevada diversidade, mas essa é a única maneira de viverFica desiludido ou triste com este projeto europeu, quando vê países a querer sair da UE, tal como o Reino Unido?
O Reino Unido foi sempre um parceiro relutante dentro da União Europeia. O Reino Unido entrou para a UE quando percebeu que a sua sobrevivência como potência económico-comercial estava em causa e que o projeto da EFTA não tinha força suficiente para garantir a sua projeção à escala internacional. O Reino Unido foi sempre a favor de se manter fora de determinadas políticas dentro da união europeia. E foi sempre muito crítico dos avanços em matéria de aprofundamento da UE. Por isto não estou surpreendido com a evolução dentro do Reno Unido embora esteja surpreendido com a falta de pragmatismo na solução do desenho final do referendo perante aquilo que parece ser uma estratégia suicidária para os interesses do país à escala mundial.
Agora, convém a UE olhar para isto: não é só o Reino Unido que causa problemas dentro da UE. Há outros países que o causam. Há outros países que manifestam as suas reticências. São aliás alguns deles países que aderiram à UE mais por uma questão de oportunidade, nomeadamente países que estavam tutelados pela União Soviética e que na altura consideraram que era a melhor opção juntarem-se aos países deste lado da Europa ocidental, de modelo democrático tradicional. Esses países juntaram-se naquela altura mas talvez não estivessem motivados para fazer parte da UE pela mesma razão que os outros estavam, por exemplo, os países que tinham sofrido a guerra e que conseguiram com um modelo democrático liberal organizar-se.
Há aqui, da parte de alguns países, das opiniões públicas de alguns países, muitas reticências relativamente à compatibilidade do modelo criado na Europa Ocidental com os seus próprios interesses e egoísmos nacionais. E por isso mesmo, a Europa é vítima da sua própria diversidade e da sua elevada diversidade, mas essa é a única maneira de viver.
Qual é o principal desafio que a Europa enfrenta atualmente?
Acho que é o convencer as diversas opiniões públicas, 27 com a saída do Reino Unido, de que é a Europa a melhor solução para a resolução dos problemas comuns porque se é verdade que as soluções nacionais continuam a prevalecer na Europa, os países não vão desaparecer, não haverá uma espécie de apagamento dos países em favor de uma matriz europeia. Há muitas coisas em que o ter sido tratado a nível europeu é a melhor forma de as abordar e o que tenho visto é uma grande dificuldade da Europa em conseguir convencer as opiniões públicas para este facto. As pessoas não dão conta disso e acho que parte da responsabilidade tem muito a ver com as circunstâncias dos governos nacionais que, pressionados para soluções muito rápidas, quase sempre quando as coisas correm mal procuram considerar que a Europa é o bode expiatório das suas insuficiências e não dão o devido valor àquilo que são as soluções europeias.
As pessoas tem de perceber que fazer parte deste clube nos traz vantagens e não pensar que é a razão pela qual temos problemasE quem deveria ter esse papel de convencer as opiniões públicas?
Acho que é uma questão que tem mais a ver com os governos nacionais do que com as instituições internacionais. Sendo instituições comuns, que representam o interesse europeu, normalmente não são vistas a nível nacional como instituições altamente representativas. Nos últimos anos, se olharmos para o que é a imagem da Comissão Europeia, vemos que já foi muito diferente. Para um país como Portugal, a Comissão era uma espécie de grande aliado aquando dos fundos, aquando do grande movimento de integração portuguesa dentro da Europa. Nos últimos anos, a Comissão estava a ser vista como uma espécie da ASAE do euro.
É muito difícil para as instituições, se não tiveram uma aliança com os governos nacionais, conseguirem uma imagem positiva. Naturalmente que isso afeta muito o modo como os cidadãos olham para as instituições. As instituições têm de ser eficazes e as pessoas tem de perceber que fazer parte deste clube nos traz vantagens e não pensar que ser parte deste clube é a razão pela qual temos problemas. E os governos nacionais às vezes ajudam a que esta última leitura se faça.
Dificilmente as Nações Unidas poderiam ter tido um líder mais capaz do que Guterres para uma situação tão difícil E como antigo representante das Nações Unidas, que análise faz ao trabalho que tem sido desenvolvido por António Guterres?
António Guterres foi eleito num dos momentos mais difíceis da história das Nações Unidas. As Nações Unidas dependem muito do modo como os cinco membros permanentes do Conselho de Segurança se articulam ente si e depende muito do modo como esses membros se empenham no próprio trabalho das Nações Unidas. Guterres foi eleito num momento de muita tensão entre os EUA e a Rússia no plano prático do terreno. Foi eleito pouco tempo antes de Donald Trump, que é um líder que tem uma leitura profundamente negativa do sistema multilateral das Nações Unidas, assumir funções nos EUA.
Guterres tem, nessa altura, uma dificílima função em mãos e não pode por si só ultrapassá-la se não houver uma mudança da conjuntura internacional.
Os EUA estão numa linha unilateralista de desrespeito pelos compromissos de natureza internacional que tornam muito complicada a ação das Nações Unidas. Dificilmente as Nações Unidas poderiam ter tido um líder mais capaz para uma situação tão difícil do que é Guterres.
E de que forma é que António Guterres é capaz de fazer frente a esse obstáculo que é Donald Trump?
Guterres pode tentar ser útil, por exemplo, na resolução de alguns conflitos que interessem quer aos EUA, quer à Rússia. Digo sempre aos EUA em primeiro lugar pela simples razão de que todos nós sabemos que os EUA, por um conjunto variado de razões e também pela circunstância de nos cinco membros permanentes estarem três países ocidentais, ter normalmente um papel mais importante.
Guterres pode, em primeiro lugar, aproveitar esta situação para uma função muito importante que é uma reforma profunda das Nações Unidas em matéria da sua própria estrutura, porque as Nações Unidas são uma estrutura cheia de gorduras. Quando Donald Trump a acusa de ter muitas gorduras, é verdade, porque tem representantes na sua estrutura interna de imensos países. São 193 os que fazem parte da organização e isso às vezes induz a alguns compromissos que nem sempre funcionam para a eficácia da organização. E, portanto, Guterres tem aqui uma oportunidade, como acontece sempre em situações de falta de dinheiro, de fazer um enxugamento da própria instituição. Por outro lado, tem uma oportunidade histórica de criar as alianças certas na questão, por exemplo, do equilibro de género, e fazer opções pela maior visibilidade das mulheres no quadro nas Nações Unidas, que é algo de muito positivo mas também que vai contra os princípios de muitos países, nomeadamente muçulmanos, que não veem com bons olhos este tipo de opções.
Essas medias de que falou, expulsar as gorduras e apostar mais em posições assumidas por mulheres...
Não é expulsar. Tem de ser uma espécie de dieta financeira.
Mas ao assumir essas duas posições, não irá dar azo a conflitos internos dentro da própria organização?
Cria resistências seguramente, mas acho que está criado um ambiente para que algumas dessas medidas possam ter sucesso. O caso do papel das mulheres é algo que é negativo em alguns órgãos das Nações Unidas mas que também está a fazer o seu caminho.
Foi secretário de Estado dos Assuntos Europeus do governo liderado por António Guterres. Alguma vez pensou, nessa altura, que poderia ele chegar tão longe na sua carreira?
Pensei, com toda a franqueza, pensei. António Guterres, que eu não conhecia, conheci poucas semanas antes de assumir funções como secretario de Estado para o qual me convidou, é uma personalidade muito focada no plano internacional e muito bem preparada em diversos setores que têm a ver com a economia, com a história e com a solidariedade social, que vem muito provavelmente das suas implicações nas políticas religiosas e nas suas opções de natureza pessoal. Pareceu-me sempre uma pessoa de grande capacidade para ocupar postos importantes. Se calhar, para secretário-geral das Nações Unidas não tinha pensado, mas não foi para mim nenhuma surpresa vê-lo como alto comissário para os refugiados ou mesmo vê-lo perante a possibilidade ser secretário-geral das Nações Unidas. Surpresa é conseguir, apesar de todas as dificuldades, dos adversários e de uma situação internacional que é sempre difícil de objetivar, passar entre as malhas, o que só prova que as Nações Unidas conseguiu escolher o melhor.
*Pode ler a primeira parte desta entrevista aqui.