Divulgado recentemente, o Relatório da Primavera 2018, da autoria do Observatório Português dos Sistemas de Saúde (OPSS), propôs-se fazer um balanço da ação governativa neste domínio. Subordinada à interrogação 'Meio caminho andado?', esta análise cuidada das políticas de saúde constatou que, efetivamente, 'há pedras no caminho'. No Relatório, o OPSS propõe ainda alguns percursos alternativos. Será o Governo capaz de guardar as 'pedras' para, tal como diria o poeta, 'um dia construir um castelo'?
Este foi o tema que deu o mote à entrevista do Notícias ao Minuto ao bastonário da Ordem dos Médicos, Miguel Guimarães, que, por sinal publicamos, no dia em que uma outra classe ligada ao setor, no caso a dos enfermeiros, está em greve, exigindo mais contratações para evitar rutura de serviços. "Os médicos têm sido massacrados, mas não são os únicos. São também os enfermeiros", destaca Miguel Guimarães.
No entendimento do bastonário, o Relatório da Primavera 2018 é, de resto, claro quanto às "deficiências da capacidade de resposta" daquela que é considerada a maior conquista da democracia em Portugal: o Serviço Nacional de Saúde.
Uma conversa que não passou igualmente à margem da análise das vagas (ou falta delas) do internato médico, já que cerca de 700 médicos veem vedada a possibilidade de seguir a especialidade depois de concluído o mestrado integrado em Medicina.
Recentemente foi divulgado o Relatório de Primavera 2018. Qual a análise que faz deste Relatório que identifica algumas ‘pedras no caminho’ da saúde em Portugal?
Este é um relatório diferente do dos outros anos. Parece mais bem estruturado, mais bem fundamentado relativamente às interpretações que faz sobre o estado da saúde e portanto é um relatório que pode e deve ser valorizado. Mas a sensação que tenho é de que isso não está a acontecer.
Este relatório, grosso modo, evidencia aquilo que são as grandes deficiências da capacidade de resposta do Serviço Nacional de Saúde, por exemplo ao nível dos cuidados de saúde primários, onde é realçado aquilo que já sabíamos, isto é, que a reforma dos cuidados de saúde primários em 2017 esteve totalmente congelada; não abriu nenhuma Unidade de Saúde Familiar (USF) modelo B em 2017 contrariamente àquilo que o primeiro-ministro disse na Assembleia da República. É factual. A reforma tem-se feito lentamente e isto tem repercussões naquilo que é o acesso aos cuidados de saúde por parte dos portugueses e no combate às desigualdades sociais em saúde.
Além disso, ao nível da reforma hospitalar, o Relatório destaca falta de autonomia e de gestão das unidades de saúde, seja dos hospitais seja dos Agrupamentos de Centros de Saúde (ACES) porque estão condicionados a um orçamento mais baixo; estão sub-orçamentados. E a equipa que gere os hospitais ou os ACES não tem autonomia para tomar decisões e muito menos flexibilidade na gestão. Este é um sistema cheio de barreiras e esse facto está a prejudicar aquilo que é a capacidade de resposta das unidades de saúde. Note-se que tem de existir flexibilidade em circunstâncias especiais como é o caso da gripe.
Aliás, eu assisti ‘in vivo’ a esta situação no Hospital de Gaia. Podiam ter aberto mais 20 camas e para tal precisavam de contratar, durante seis meses, um ou dois enfermeiros e assistentes operacionais. A proposta foi feita, seguiu para a Administração Regional de Saúde Norte que, por sua vez, a enviou para o Ministério da Saúde. Neste nível foi autorizada, seguiu para as Finanças que não autorizou e deixou o hospital numa situação dramática, muito grave, que podia ter implicações na vida dos doentes. Aquela era uma altura caótica no serviço de urgência e os médicos não tinham onde internar os doentes. Temos de começar, de alguma forma, a responsabilizar o ministro das Finanças, que é quem toma a última decisão, por situações graves que possam acontecer.
Ainda no âmbito dos hospitais, o relatório lança uma questão que me parece essencial. As unidades hospitalares têm uma estrutura e um modo de funcionar muito semelhante àquilo que já existia há 30/40 anos. E os hospitais do presente e do futuro têm de ter modos de funcionamento diferentes e isso implica uma reforma profunda, que envolva naturalmente o serviço de urgência que é um dos cancros do Serviço Nacional de Saúde (SNS). E esta reforma tem de envolver os cuidados continuados, paliativos e os cuidados de saúde primários. A reforma já foi falada várias vezes e existe, inclusive, uma comissão nacional nesse âmbito, mas ainda não foi apresentado nenhum relatório, pelo menos que seja público.
Outra das questões que está refletida no relatório prende-se com o financiamento da saúde.
Estamos numa situação de sub-financiamento crónico, o que não permite fazer grandes alterações no SNS. No âmbito dos hospitais, a verdade é que os administradores sabem, mediante o orçamento que lhes é dado, que vão poder pagar aos recursos humanos até ao fim do ano, mas que, dependendo da dimensão do hospital, a partir de maio/junho já não conseguem pagar os medicamentos previsíveis. Começa-se a entrar em dívida com as empresas que fornecem os medicamentos e dispositivos e a reforma, substituição ou manutenção dos grandes equipamentos não é feita.
Se o senhor ministro das Finanças tiver um problema de saúde, vai ter acesso a tudo e a mais alguma coisa, e isto não está a acontecer com o cidadão normal neste momentoSe a meio do ano os hospitais entram em incumprimento com os fornecedores, corre-se o sério risco de uma situação de rutura?
Se os fornecedores dissessem que não forneciam, o sistema parava. E a dívida do Ministério da Saúde, do Governo mais concretamente, para com os fornecedores de medicamentos, de dispositivos, de equipamentos e de outros serviços, onde se inclui a Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS), provavelmente será superior a 2 mil milhões de euros. A dívida vai acumulando e de vez em quando o Governo, através dos orçamentos supletivos, injeta dinheiro para ir pagando, mas a verdade é que um hospital não pode funcionar assim.
E esta situação é má para toda a gente, seja para os gestores que estão numa situação difícil, seja para os profissionais de saúde que estão a ser pressionados pelas administrações para produzirem todos os dias, todos os anos, mais primeiras consultas, mais cirurgias. Já ninguém pensa na qualidade ou em diminuir as complicações de uma determinada técnica ou tratamento. Os profissionais de saúde estão sujeitos a um nível de stress imenso, às vezes com consultas marcadas em tempos inaceitáveis.
Outro aspeto igualmente negativo e que não tem sido falado prende-se ainda com a questão da dívida aos fornecedores. Apesar de estes continuarem a fornecer os respetivos materiais e dispositivos não o fazem com a mesma velocidade nem põem à disposição do hospital uma quantidade suficiente para fazer reservas. Isto quer dizer que estão a faltar nos hospitais coisas tão simples como compressas e fios de sutura. Em algumas situações estão a usar-se fios de sutura que não são os ideais. E isto é muito grave. Temos de fazer alguma coisa porque a situação não pode continuar assim. Se o senhor ministro das Finanças tiver um problema de saúde, vai ter acesso a tudo e a mais alguma coisa, e isto não está a acontecer com o cidadão normal neste momento. Se queremos equidade no sistema, equidade significa que a saúde no SNS tem de ser igual para quem está no poder político, no Governo e para o cidadão comum.
Os médicos têm sido massacrados, mas não são os únicos. São também os enfermeiros, os assistentes operacionais, são todas as pessoas ligadas à saúde, incluindo os próprios gestoresEste tem sido, aliás, um aspeto peculiar no seu mandato. Não se foca apenas na classe que defende...
Os médicos têm sido massacrados, mas não são os únicos. São também os enfermeiros, os assistentes operacionais, são todas as pessoas ligadas à saúde, incluindo os próprios gestores. Os administradores dos hospitais também estão preocupados, aliás o Dr. Alexandre Lourenço, que representa de alguma forma os administradores hospitalares, também tem falado nesta matéria. Temos de mudar este paradigma porque existem de facto situações complexas.
Apelo, por isso, ao primeiro-ministro que olhe para esta situação com outros olhos, visite os hospitais, mas não para falar apenas com quem manda, mas com as pessoas que lá trabalham.
Relativamente ao orçamento para a saúde, qual seria o valor aceitável no seu entendimento?
O que temos dito, e essa foi aliás a posição conjunta das várias ordens institucionais, é ter como ponto de referência aquilo que acontece na média dos países da OCDE. E essa média é de 6,5% do PIB. Por isso, acho que nos devíamos rapidamente aproximar desse valor.
O que é previsível para 2018 é 5,2% do PIB, mas se se considerar especificamente o SNS é menos, será 4,7%, o que é um valor efetivamente muito baixo. Nessa perspetiva é evidente que precisamos de melhorar a situação. E este é um apelo aos responsáveis pelo Governo e até à Assembleia da República – onde os deputados têm uma responsabilidade particular porque são eles que aprovam o orçamento e podem fazer propostas de alteração – porque a saúde dos portugueses pode e deve ser mais valorizada. Se a média dos países da OCDE acha que para existir uma boa capacidade ao nível do setor público significa ter disponível 6,5% do PIB, devemos aproximar-nos desta média.
Temos um problema no país que é a negação constante da realidade. É evidente que em Portugal, dentro do SNS, existe uma deficiência demarcada de capital humano
O Relatório da Primavera indica que a despesa com recursos humanos em Portugal (varia entre os 32 e os 34%) é mais baixa que a média dos países desenvolvidos (38%). Qual a sua leitura deste indicador?
Temos um problema no país que é a negação constante da realidade. É evidente que, em Portugal, dentro do SNS, existe uma deficiência demarcada de capital humano. As remunerações médias do setor público são das mais baixas da Europa ocidental. Este é um fator que, por um lado, está a ter implicações por parte do acesso aos cuidados de saúde e, por outro, no caso dos médicos concretamente, traduz-se na afetação da capacidade formativa de novos especialistas. É evidente que se continuarmos com esta baixa de capacidade de resposta, a capacidade concorrencial do Governo e do país para fixar os seus jovens é muito baixa. E como estamos numa Europa em que as diretivas permitem liberdade de circulação sem restrições, exceto, no caso da Medicina, a língua, esta concorrência é altamente desfavorável para Portugal.
Estamos a perder capital humano para reposição dos médicos que se vão reformando e para também dar capacidade aos serviços dos nossos hospitais e dos centros de saúde para acompanhar o desenvolvimento célere que a Medicina tem tido. Só conseguimos acompanhar este ritmo se tivermos a experiência de quem lá está há mais tempo e se a conseguirmos conciliar com a inovação dos mais jovens.
Este é um desafio e não é só nesta área. Não basta que o primeiro-ministro venha colocar este tema como um desafio no Congresso Nacional do Partido Socialista para depois não fazer nada. Se quer captar jovens para Portugal tem o nosso apoio e de todas as estruturas que existem. Mas para ir buscar os jovens que já saíram têm de ser promovidas melhores condições de trabalho que se aproximem das dos países com os quais temos relações privilegiadas.
Neste momento, o SNS já não tem capacidade de resposta para todos os portugueses. A sua capacidade de resposta é apenas para 60-65% dos portuguesesOutro dos aspetos apontado pelo Relatório prende-se com as desigualdades sociais em saúde.
Sim, as desigualdades sociais em saúde têm aumentado. Este é um facto reconhecido pelas entidades que fazem avaliações e auditorias internacionais como é a OCDE, que no último relatório que fez referiu que cerca de 10% dos portugueses não fazem os tratamentos que lhes são prescritos pelos médicos por insuficiência económica.
Esta situação grave, a par das desigualdades territoriais e da não existência de um financiamento per capita na saúde que seja igual em todo o país – depende do código postal –, não pode acontecer num país que tem um SNS cujo objetivo principal é que os utentes tenham acesso em condições de igualdade à saúde. E é por estes motivos que é determinante que se pense em reforçar a capacidade de resposta do SNS. Só conseguimos combater as desigualdades se aumentarmos a capacidade do Serviço Nacional de Saúde, investindo. Se não reforçarmos o serviço público, este vai começar a ter mais fragilidades e deficiências. Neste momento, o SNS já não tem capacidade de resposta para todos os portugueses. A sua capacidade de resposta é apenas para 60-65% dos portugueses.
Os restantes 35 a 40% são ‘empurrados’ para o setor privado?
Sim, porque as pessoas que têm maior capacidade financeira, perante as dificuldades no acesso ao SNS e face a listas de espera para cirurgias que ultrapassam com inúmera frequência os tempos máximos de resposta garantidos, procuram resposta no privado. O reforço do SNS é absolutamente obrigatório e depende não só do Governo, mas de todos os nossos representantes na Assembleia da República e de quem tem responsabilidades governativas diretas a nível do conselho de ministros.
É inaceitável que o ministro da Saúde se tenha deixado capturar pelas Finanças, neste caso pelo ministro. Mas esta ‘guerra’ entre o Ministério das Finanças e o da Saúde já não é de hojeHá quem defenda que o Ministério da Saúde não tem autonomia. No seu entendimento, quem ‘manda’ na saúde é o Ministério das Finanças?
É o que está a acontecer, infelizmente. Para mim, o responsável pela Saúde em Portugal é o ministro da Saúde e esta é a sua principal função. O ministro é diretamente o responsável pelo SNS, mas regula o setor privado e o social.
É inaceitável que o ministro da Saúde se tenha deixado capturar pelasFfinanças, neste caso pelo ministro. Mas esta ‘guerra’ entre o Ministério das Finanças e o da Saúde já não é de hoje.
Há um problema político na saúde? Um problema de cores partidárias ou as questões a resolver já vêm de outros mandatos?
O problema não é deste Governo só. A questão já tem anos; já vem pelo menos do Governo que foi liderado por José Sócrates. Mas se este Governo não fizer as reformas e as alterações que deveria, se não tomar medidas para impedir que o SNS se continue a afundar, o cenário só vai piorar. Ao não serem renovadas infraestruturas e equipamentos, ao não se apostar em recursos humanos, a situação vai agravar-se.
De acordo com os últimos dados divulgados, as vagas para internato médico deixam 700 médicos sem acesso à especialidade. Como se pode resolver esta questão?
Trata-se de uma questão complexa e que preocupa muito a Ordem dos Médicos. Ser médico hoje, exercer Medicina com qualidade, significa tirar uma especialidade. A evolução da Medicina só nos permite exercer se tivermos uma diferenciação específica.
Teoricamente, todos os médicos formados deveriam ter acesso a especialização. Nos últimos anos começou a assistir-se a alguma estabilização do números de alunos das escolas médicas, maximizando-se as capacidades formativas. Sem prejuízo disso, neste momento temos uma situação diferente do habitual. Se as vagas abertas fossem apenas para os médicos formados em Portugal, que por ano variam entre os 1.700 e os 1.800, nenhum deles deixaria de entrar na especialidade.
Mas, tal como acontece com as oportunidades de emprego, as diretivas europeias dizem que qualquer médico formado na Europa pode concorrer à especialidade em Portugal. E têm vindo centenas de médicos do estrangeiro para Portugal, sendo que fazem o mesmo concurso que os médicos formados em universidades portuguesas. Apesar de o mapa de vagas ser do Ministério da Saúde, tem contribuição do Conselho Nacional do Internato Médico, que é um órgão da ACSS, mas naquilo que é o papel da Ordem dos Médicos, temos tentado maximizar as capacidade formativas e nos últimos dois anos conseguimos os dois maiores mapas de vagas de sempre. Mas o número de médicos que concorrem também é maior.
Saliente-se ainda que o número, 700, traduz a acumulação dos médicos que não entraram na especialidade nos anos anteriores. Esta é uma situação difícil e enquanto bastonário não sou responsável direto pela avaliação dos serviços das capacidades formativas, mas vou tentar perceber se podemos fazer alguma coisa diferente para tentar maximizar ainda mais as capacidades formativas. Mas há uma coisa que temos de garantir sempre aos médicos que entram na especialidade: que vão fazer a especialidade com qualidade porque aquilo que distingue o nosso SNS a nível internacional são as pessoas e a qualidade dos recursos humanos. Essa é a imagem de marca do país em várias áreas.
Além disso, estamos também a tentar ter alternativas formativas em áreas tão diferentes como a emergência médica, a investigação e outras para que alguns destes jovens possam seguir estas áreas se assim o entenderem. De referir ainda que os órgãos que se dedicam a este trabalho, o colégio da especialidade e as secções regionais da Ordem dos Médicos, têm feito um excelente trabalho.