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"Não existiria o caso Sócrates se não houvesse Segredo de Justiça"

O recém-eleito presidente da Associação Sindical dos Juízes Portugueses é o entrevistado de hoje do Vozes ao Minuto.

"Não existiria o caso Sócrates se não houvesse Segredo de Justiça"
Notícias ao Minuto

03/05/18 por Patrícia Martins Carvalho

País Manuel Ramos Soares

Manuel Ramos Soares é juiz-desembargador e é, desde abril, o presidente da Associação Sindical dos Juízes Portugueses cujas eleições decorreram em março.

Em entrevista ao Notícias ao Minuto definiu aqueles que são os seus objetivos para o mandato que tem pela frente.

A “independência” dos juízes é uma das suas grandes lutas, mas não é a única. Mudar a constituição do Conselho Superior de Magistratura, que atualmente tem mais políticos do que juízes, é outro dos seus grandes objetivos.

Quanto ao Segredo de Justiça, Manuel Ramos Soares é perentório: “É claro que tem de existir”. Se não existisse, defende, não seria possível levar a cabo grandes investigações a figuras públicas de relevo. 

No discurso de tomada de posse disse que a “independência não pode dar lugar à subordinação”. Os juízes não são independentes nas decisões que tomam?

Os juízes são independentes nas suas decisões, não temos nenhuma situação - que eu conheça - em que o juiz tenha sofrido pressões ilegítimas. Quando nos referimos à subordinação falamos de subordinação administrativa e estou a falar do Conselho Superior de Magistratura (CSM) e do Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais (CSTAF). Não podemos permitir que o nosso sistema evolua para um modelo em que os juízes, apesar de independentes na decisão, estão dependentes do CSM.

Dependentes em que sentido?

Dependentes em tudo aquilo que é instrumental da decisão, que tem a ver com a forma como o juiz gere o seu serviço ou como se relaciona com os funcionários da sua unidade orgânica. Vou dar um exemplo: imagine que o CSM - não é agora o caso embora possa vir a ser e nós não vamos permitir isso - tinha poder de mudar um juiz de um lado para o outro. Amanhã calhava a um juiz um caso polémico de um político importante e o CSM mudava-o de tribunal e tirava-lhe o processo. Isto podia acontecer por razões legítimas de gestão, mas também podia acontecer devido a pressões políticas vindas de fora, porque o CSM tem uma maioria de pessoas que não são juízes, foram nomeadas pela Assembleia da República e pelo Presidente da República.

No Conselho Superior de Tribunais Administrativos e Fiscais a correlação de forças é mais desequilibrada: há mais políticos do que juízesE isso faz sentido?

Faz sentido que o CSM não tenha apenas juízes, mas devia ter uma maioria de juízes para ficar mais protegido contra essas interferências políticas externas e é isso que diz o Conselho da Europa. No Conselho Superior de Tribunais Administrativos e Fiscais a correlação de forças é mais desequilibrada: há mais políticos do que juízes.

Mudar esta realidade é um dos objetivos a que se propõe neste mandato?

Nós vamos propor que a maioria dos membros dos conselhos sejam juízes. Achamos que temos razão, que o Estado português está vinculado a este principio porque integra o Conselho da Europa e, por isso, devia seguir as suas recomendações.

Não admitimos que a pretexto da eficiência e da celeridade se desvirtue o trabalho de um juizE quais são os outros objetivos?

Queremos rever o estatuto completa e adequadamente e de forma razoável, não queremos andar mais anos a falar nisto, queremos terminar este dossier de maneira razoável para nós e para o cidadão; queremos melhorar a comunicação, estar mais presentes no dia a dia do cidadão; queremos que a justiça daqui a três anos esteja melhor do que está agora, sobretudo nas duas áreas críticas que são os tribunais administrativos e fiscais e os tribunais comuns, onde a morosidade das ações executivas é grande; queremos defender a independência e autonomia do juiz e não admitimos que a pretexto da eficiência e da celeridade se desvirtue o trabalho de um juiz.

Nós não somos imunes nem estamos a decidir fechados numa redoma de vidro sem estar a ver o mundo

Por falar em político importante. O juiz que ficar responsável pelo julgamento de José Sócrates pode, ainda que inconscientemente, ser influenciado de alguma forma?

Nós não somos imunes nem estamos a decidir fechados numa redoma de vidro sem estar a ver o mundo. É evidente que os juízes que vierem a ter esse processo - se chegar a julgamento - e outros equivalentes têm um conjunto de condicionamentos e pressão que outros juízes não têm: opinião pública, comunicação social, defesas dos arguidos… Os juízes desses processos têm de ter mais força para se libertar desse tipo de pressões externas. O que nós achamos importante dizer é que, seja qual for o juiz, o sistema que nós temos garante que todos os arguidos terão direito a um juiz independente, imparcial e com muitos anos de experiência.

Como vê a relação entre a Justiça e a Comunicação Social?

Já a vi pior. Em tempos era uma relação de menor confiança mútua e um bocadinho mais tensa. Ainda há barreiras, porque a comunicação social, por regra, quer ter acesso a toda a informação e há um conjunto de informação que é reservada e que não pode ser disponibilizada.

Estamos a falar do segredo de Justiça?

Sim, existe este conflito inerente às duas atividades: uma atividade tem como valor máximo a transparência e o acesso à fonte, a outra tem como valor máximo a Justiça e o cumprimento da lei. E a lei em certos aspetos não permite o acesso à fonte.

Acha que existiria o processo que envolve o ex-primeiro-ministro se não houvesse Segredo de Justiça? 

Qual é a sua posição relativamente a este tema?

É claro que o Segredo de Justiça tem de existir. Acha que existiria o processo que envolve o ex-primeiro-ministro se não houvesse Segredo de Justiça? A investigação tinha tido a mínima possibilidade de descobrir alguma coisa se não houvesse Segredo de Justiça? É impossível.

Qual é o objetivo principal do Segredo de Justiça?

É o de proteger a investigação, permitindo que se faça investigação criminal sem que as pessoas sujeitas em investigação saibam e ocultem provas. Mas o Segredo de Justiça também tem uma outra função que é proteger a pessoa que está sujeita a investigação, porque se se vier a descobrir que as suspeitas são infundadas esta é uma forma de a pessoa não ter o seu nome manchado. Mas a verdade é que a partir de um certo momento o Segredo de Justiça deixa de fazer sentido.

Se a investigação está fechada, é importante que o cidadão, através da comunicação social, tenha acesso a essa informaçãoQue momento é esse?

Se a investigação está fechada, se o nome da pessoa já é conhecido, se já estão no domínio público quais são os factos em investigação, aí, sim, o Segredo de Justiça tem de ceder porque há também valores importantes como a transparência e é importante que o cidadão, através da comunicação social, tenha acesso a essa informação.

Há então um exagero em torno da aplicação do Segredo de Justiça?

Não acho que haja um exagero naquilo tem que a ver com a proteção da informação reservada que permite investigar. O que existe é um desvirtuamento do Segredo de Justiça quando os jornalistas se constituem assistentes utilizando a arma de estar no processo para extrair informação e publicá-la.

Se algum sujeito do processo revela informações a um jornalista, seja em ‘on’ ou em ‘off’, está a violar o Segredo de Justiça e deve ser punido por issoOu seja há um crime…

Claro. Se algum sujeito do processo revela informações a um jornalista, seja em ‘on’ ou em ‘off’, está a violar o Segredo de Justiça e deve ser punido por isso.

E o jornalista que divulga?

Também. A norma penal também pune a divulgação de informações em Segredo de Justiça que sejam obtidas de forma ilícita.

E quanto aos jornalistas que se tornam assistentes num processo?

Aí devo dizer-lhe com franqueza que acho é uma fraude à lei que está pensada para que qualquer cidadão, que no fundo é vítima de um crime, possa intervir no processo para auxiliar a investigação. A verdade é que a lei também abriu a porta para que órgãos de comunicação social, que querem ter acesso privilegiado a certas fontes, se constituam eles próprios como assistentes e depois extraiam informação. Isso não está certo pois estão a utilizar um mecanismo que foi pensado para outra finalidade.

Se o Segredo de Justiça passa a ser utilizado como um buraco de fechadura para se espreitar para onde não se deve, um dia a lei mudaQue consequências podem advir desta utilização?

O preço que isso vai ter é que qualquer dia deixa-se de poder ter acesso. Se este mecanismo passa a ser desvirtuado e é utilizado como um buraco de fechadura para se espreitar para onde não se deve, para depois se revelar o que se passa, evidentemente que um dia a lei muda.

E o facto de um jornalista ser assistente num processo não pode condicionar de alguma forma o juiz?

Condicionar o juiz não, mas a certa altura pode condicionar a atividade do Ministério Público e das investigações.

Como?

Se o processo ainda estiver em Segredo de Justiça e houver fuga de informação a tentação pode ser a de esconder esses aspetos [que ainda estão em segredo] do processo. Não diria que é uma pressão, mas pode de alguma forma desvirtuar os procedimentos processuais.

 Pode ler a segunda parte desta entrevista aqui.

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