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Mezze, um "exemplo único", um novo começo. "Aqui posso ter uma família"

Inaugurado há cinco meses, o Mezze não para de crescer e assume-se como um exemplo na integração de refugiados em Portugal. O Notícias ao Minuto foi ao Mercado de Arroios conhecer este projeto pioneiro na Europa e, para lá das deliciosas especialidades do Médio Oriente, ficou a conhecer histórias inspiradoras, de recomeço.

Notícias ao Minuto

08:00 - 04/03/18 por Anabela de Sousa Dantas e Pedro Bastos Reis

País Refugiados

Nos dias que antecederam a abertura do Mezze, restaurante de comida típica do Médio Oriente, situado no Mercado de Arroios, em Lisboa, a apreensão entre os refugiados que estavam prestes a começar o primeiro dia do resto das suas vidas era muita. Havia medo de que algo corresse mal. Quem não teria? Longe do país de origem, de onde fugiram de uma guerra que devasta a Síria há sete anos, estes refugiados estavam assustados com o futuro. Mas, com as obras terminadas e o espaço pronto a inaugurar, Fatima, a chef desta cozinha, olhou à volta e percebeu que aquele espaço já fazia parte de si: “Já me sinto em casa”.

Este é o momento que Francisca Gorjão Henriques, uma das fundadoras da associação Pão a Pão, recorda quando pensa no episódio mais marcante desde que o Mezze abriu portas em setembro do ano passado. “Foi uma emoção, a resposta a um trabalho muito intensivo, que se traduziu num resultado. Produziu o efeito que se pretendia: eles sentirem-se em casa”, explica. A integração destes refugiados foi o mote para o nascimento do projeto e continua a ser o principal objetivo da associação.

A Pão a Pão foi fundada por Francisca, Alaa Alhariri – estudante de arquitetura, a viver em Portugal, ao abrigo do programa criado pelo ex-Presidente Jorge Sampaio -, Rita Melo e Nuno Mesquita. Quando se conheceram, Francisca perguntou a Alaa do que é que ela sentia mais falta do seu país. “Do pão”, respondeu, de imediato, a estudante síria. "Se ela tinha saudades do pão, então os refugiados também teriam. Havia uma lacuna que nós poderíamos preencher e, ao mesmo tempo, estaríamos a apresentar uma novidade aos portugueses e a suprir uma necessidade do grupo de refugiados que está a chegar", conta Francisca.

Tal como na tradicional mesa portuguesa, o pão é fundamental para acompanhar as refeições da gastronomia do Médio Oriente. Por esse motivo, a Pão a Pão, que inicialmente pensou em criar uma padaria e não um restaurante, decidiu avançar com o projeto, que encontrou um lar no Mercado de Arroios, no centro da capital.

Este demorou a nascer e para que visse a luz do dia foi fundamental a “preciosa ajuda” de parceiros como a Câmara Municipal de Lisboa, o Alto Comissariado para as Migrações, o Turismo de Portugal, a Jerónimo Martins ou a Fundação EDP, além das verbas conseguidas através de crowdfunding, isto sem esquecer a generosidade e o apoio de amigos e de empresas, nomeadamente na construção do teto, do chão, ou de outras divisões do restaurante.

Uma "família acidental" e a dificuldade da língua

O Mezze, que significa refeição partilhada constituída por muitos pratos, começou com 12 empregados. Hoje, continua a crescer e são já 17, a grande maioria sírios, mas há também um iraquiano e uma palestiniana, bem como portugueses que ajudam a equipa no dia a dia.

Além disso, há uma família, o que, contudo, foi “um pouco acidental”. Quando os membros da associação Pão a Pão conheceram Fatima e as suas filhas, que “cozinhavam maravilhosamente bem”, apesar de não terem experiência no ramo da hotelaria, perceberam que seriam fundamentais para o projeto. O filho de Fatima, Rafat, de 21 anos, trabalhou num restaurante de kebabs num centro comercial. À experiência do jovem sírio, salienta Francisca, acresce a sua “dedicação, um foco, uma vontade de trabalhar, que nos deixou perplexos”. “Começámos a pensar: porque não aceitá-los, apesar de serem todos da mesma família, se todos têm competências tão grandes?”. E assim foi.

Notícias ao MinutoShiraz Sheikno já diz algumas palavras em português. Está "muito feliz" em Portugal© Blas Manuel / Notícias Ao Minuto

Hoje, Rafat, que aprendeu português a uma velocidade estonteante, serve às mesas e é fundamental para estabelecer a comunicação com os clientes. É ele que traduz tudo, faz a ligação entre as mesas e a cozinha, apesar de alguns empregados já dizerem algumas palavras em português. Compreender, contudo, é bem mais difícil.

Shiraz Sheikno, uma das cozinheiras, diz-se “muito feliz” no país e, ao trabalhar no Mezze, sente que, com a sua integração, retribui algo à sociedade portuguesa. Uma das dificuldades mais apontadas é a língua. “No início foi duro, foi muito difícil mas agora, ao lidar todos os dias com a comunidade, está a melhorar”, afirma Shiraz. Serenah William, natural de Belém, na Palestina, concorda: “A chave para a integração numa sociedade é sempre a língua, ser capaz de falar com as pessoas na sua própria língua. A língua é cultural, as expressões que se usam, tem muita cultura por trás”.

A língua "é uma barreira”, nota Francisca, apontando ainda para a necessidade de as autoridades portuguesas melhorarem o acesso ao ensino do português, de forma a que a integração destes refugiados possa ser feita de melhor forma. "Apesar de reconhecer que há muitas respostas eficazes por parte das instituições de acolhimento à chegada dos refugiados do Médio Oriente, a língua é muito importante e nem sempre está a ter a atenção devida, ora porque não há aulas suficientes, ora porque as próprias pessoas não vão às aulas porque não têm dinheiro para os transportes. Devia ser mais claro que a aprendizagem da língua é um fator determinante, porque pode fazer toda a diferença entre conseguir ou não um emprego", alerta Francisca Gorjão Henriques.

Hummus, fatoush ou meshawi? Difícil é escolher 

Dificuldades linguísticas à parte, no Mezze, ninguém deixa de contar histórias, de partilhar e de trocar vivências. A própria composição do restaurante, com uma mesa corrida, bem no centro, aponta para essa necessidade de proximidade, de diálogo. Não será também por acaso que não existe nenhuma parede entre a cozinha e a sala de refeições.

Há ainda mesas individuais e uma esplanada na rua, mais indicada, porventura, para o verão. No interior do restaurante, as prateleiras, compostas por garrafas de vinho e ‘partes’ da Síria, como por exemplo livros em árabe, fazem-nos viver, momentaneamente, no Médio Oriente, bem no centro de Lisboa, contudo.

Notícias ao Minuto© Blas Manuel / Notícias Ao Minuto

Um dado curioso, e surpreendente depois de degustarmos as refeições servidas no Mezze, é que apenas duas pessoas da equipa têm experiência na área da hotelaria. Além de Rafat, só Yasser , que fez pão no campo de refugiados onde estava, na Turquia, tinha esta experiência. O resto da equipa trouxe as receitas de casa, juntou-lhe a vontade de trabalhar e de partilhar os seus conhecimentos, e o resto aconteceu naturalmente.

Na ementa, não faltam opções. Para facilitar a escolha, a equipa do Mezze criou vários menus, incluindo vegetarianos, que combinam várias das especialidades da cozinha do Médio Oriente, entre elas hummus (pasta de grão cozido), fatoush (salada mista com pão árabe estaladiço), falafel (bolinhos fritos de grão com especiarias), kibbeh (bolinhos fritos de carne de vaca, bulgur e especiarias), baba ganoush (puré de beringela assada) ou meshawi (espetadas de borrego com molho de iogurte). O khubz (pão sírio) está sempre na mesa, "é a colher" que acompanha a refeição.

Parte dos ingredientes utilizados nestes pratos, nomeadamente os frescos, é comprada no próprio Mercado de Arroios. A carne, por seu lado, vem de um talho halal de Almada, algo fundamental para a comunidade islâmica, uma vez que assim têm a garantia de que a carne abatida segue os preceitos e rituais islâmicos. Outros produtos e especiarias chegam do Martim Moniz e da Mouraria.

Notícias ao MinutoCozinha do Mezze. Colada à sala de refeições, cria um sentimento de proximidade, de diálogo com os clientes© Blas Manuel / Notícias Ao Minuto

Enquanto os clientes, maravilhados na maior parte das vezes, desfrutam da gastronomia do Médio Oriente e experimentam pratos de uma cultura diferente, é notório o sorriso no rosto dos trabalhadores do Mezze. "Todas elas sentem orgulho quando olham para as mesas e veem as pessoas encantadas com aquilo que estão a comer. Sentem, imediatamente, a satisfação de que o que estão a dar é muito valorizada por quem está a receber", realça Francisca.

"Aqui posso ter uma família, ser uma mulher independente"

Com o sucesso do Mezze e consequente crescimento da equipa, cada vez mais pessoas querem fazer parte do projeto. E não só refugiados provenientes da Síria.

Serenah William tem apenas 24 anos, mas já dois recomeços na bagagem. O primeiro, na Bélgica, onde viveu durante três anos, e depois “o belo Portugal”. Começou a trabalhar no Mezze em outubro do ano passado, mas antes disso já fazia outros trabalhos em regime freelance. “Fiz traduções e dei aulas de árabe”, explica a palestiniana.

“É muito bom” viver em Portugal, diz Serenah, “o tempo é muito agradável” mas “a segurança é o principal e também a liberdade”. “Liberdade que não se consegue encontrar noutros países, como a Bélgica, por exemplo. É um país da União Europeia mas, especialmente depois do atentado que aconteceu [em março de 2016], há polícia por todo o lado, não há segurança, o racismo é tão elevado lá”, lamenta.

Em matéria de racismo, uma realidade fraturante que se tornou mais evidente com a chegada de migrantes aos países europeus, Serenah revela que essa é “uma das principais razões” por que escolheu Portugal. Quando questionada sobre se alguma vez foi alvo de racismo desde que veio para Portugal, Serenah é assertiva. “Nunca, mesmo. Mas talvez não deva fazer essa pergunta a mim, essa pergunta é melhor dirigida a elas [colegas de trabalho] porque estão a usar hijab. No entanto, elas também dizem o mesmo, o que é muito bom”, afirma.

Até ao momento, chegaram a Portugal 1.700 refugiados através do programa de recolocação da União Europeia, iniciado em dezembro de 2015, e muitos abandonaram o país logo de seguida, nomeadamente por motivos familiares, uma vez que foram recolocados no nosso país quando já tinham membros das suas famílias noutras zonas da Europa.

Notícias ao MinutoSerenah William é natural de Belém, na Palestina. "Aqui já me vejo a assentar, posso ter uma família", diz a jovem de 24 anos© Blas Manuel / Notícias Ao Minuto

Serenah, porém, encontrou em Portugal uma possibilidade de futuro.“Vejo-me a ter família aqui, o que é muito bom para mim, porque nos últimos quatro anos não conseguia ver-me a construir família, não conseguia planear o meu futuro. Mas aqui já me vejo a assentar, posso ter uma família, ser uma mulher independente, ter o meu próprio negócio”, indica.

Voltar à Palestina? “Não. Para mim, a tua casa não é onde se nasce, casa é onde uma pessoa se sente bem, feliz, onde há segurança. Senti isso aqui em Portugal”, refere a jovem, explicando que acompanha o que lá acontece com tristeza. “A comunicação social tem um importante papel na forma como se vê o conflito israelo-palestiniano. Eu digo sempre às pessoas aquilo que vivi na Palestina mas também aconselho a irem lá, a irem à Palestina e a Israel e a verem os dois lados. Só assim vão perceber”, frisa Serenah.

A comunicação social acaba por ser um dos principais instrumentos que estes refugiados têm para acompanhar a dura realidade dos seus países. Os sírios, principalmente, veem com apreensão o desenrolar da guerra que já dura há sete anos. Yasser, por exemplo, é natural de Ghouta, cidade nos arredores de Damasco que tem sido intensamente bombardeada pelo regime de Bashar al-Assad. Já Shiraz veio de Alepo, zona que esteve durante quatro anos sob controlo do autodesignado Estado Islâmico e que ficou praticamente destruída com os conflitos.

O "exemplo único na Europa" continua a crescer 

Sem deixar de acompanhar a realidade nos seus países, estes refugiados vão construindo a sua vida em Portugal. Aos poucos, vão completando o seu processo de integração e até já têm algumas preferências no que diz respeito à gastronomia lusa.

Nem Serenah nem Shiraz estão há tempo suficiente em Portugal para conhecerem a bem a culinária portuguesa, ainda assim, Serenah já fala em “percebes”, “mariscos”, “bacalhau com natas” e “francesinha” para se referir aos pratos preferidos. “Há uma coisa que já ouvi falar muito mas que ainda não provei, que é feito com sangue”, lança. Uma das jornalistas, minhota, exulta: cabidela? “Sim, cabidela. Toda a gente diz que é bom, tenho de experimentar”. Shiraz, mais tímida, diz que ainda conhece pouco da cozinha lusitana mas que, onde quer quer que vá, “toda a gente oferece bacalhau”. “Não gosto assim muito de peixe”, admite, porém.

Notícias ao MinutoFrancisca Gorjão Henriques é uma das fundadoras da associação Pão a Pão © Blas Manuel / Notícias Ao Minuto

O Mezze, referido como “exemplo único na Europa” pelo Alto-comissário para as Migrações, Pedro Calado, não para de crescer e já há planos para a abertura de um take away, mesmo ao lado do restaurante. Para lá de suprir a necessidade de imensos clientes que continuam a passar pelo Mercado de Arroios a perguntar se podem levar comida para casa, o take away será também fundamental para a criação de mais postos de trabalho.

Segundo Francisca Gorjão Henriques, o balanço destes cinco meses é “muitíssimo positivo”, uma vez que o negócio já é autosustentável. Nestes primeiros tempos, além de garantir o bem-estar dos refugiados, o objetivo é aprender para no futuro continuar a crescer e levar o projeto a outras zonas do país.

“Quisemos começar aqui, aprender com a experiência, ver como corre. É uma novidade para nós estarmos a trabalhar com pessoas com este background cultural e esta carga da experiência por que passaram, e daí temos de tirar lições. Tudo isto é fundamental para, quando quisermos abrir um próximo [restaurante], em vez de estarmos a fazer tudo outra vez, já levamos uma bagagem para começarmos com uma confiança diferente", elucida Francisca, que destaca a ainda a importância de outras atividades para o processo de integração. Nesse sentido, nos próximos tempos, o Mezze será também palco de debates ou de workshops. Porque, como refere a fundadora da Pão a Pão, “queremos questionar o que estamos a fazer e também recolher pistas para percorrer este caminho de uma forma mais sólida".

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