"A decisão histórica do Parlamento português de classificar a violação como crime público representa um marco crucial na protecção das vítimas e na prossecução da justiça. Esta decisão, que implica alterações nos códigos Penal e de Processo Penal, transcende a mera formalidade legal, prometendo um impacto profundo na forma como a sociedade em geral, e o sistema judicial em particular, lidam com este crime hediondo.
A violação vem sendo um crime semi-público, exigindo uma queixa da vítima para que a investigação prossiga. Essa “barreira jurídica”, muitas vezes insuperável devido ao trauma, estigma e medo, resultava em inúmeros casos sem denúncia e, consequentemente, sem justiça. A transição para crime público significa que a denúncia pode ser feita por qualquer pessoa e a investigação pode ser iniciada pelas autoridades, mesmo sem a queixa formal da vítima. Esta mudança é um passo fundamental para garantir que a voz das vítimas seja ouvida mesmo quando as próprias não conseguem falar.
Embora esta alteração seja fundamentalmente positiva, não é desprovida de constrangimentos para a vítima, em particular no que concerne a consequências nefastas decorrentes de uma eventual exposição forçada da experiência traumática e íntima. Existem diversas variáveis a considerar que só o tempo e a prática efectiva da lei vai permitir avaliar melhor e adequar procedimentos em prol da protecção das vítimas. Dar voz à vítima e respeitar o direito ao seu silêncio é um equilíbrio difícil de gerir.
Na argumentação favorável, a mudança para crime público significa a possibilidade de o Ministério Público poder iniciar uma investigação sem necessidade de queixa da vítima, o que pode contribuir para a diminuição da impunidade dos agressores, a fim de que mais agressores possam ser condenados e mais vítimas possam ser protegidas.
Na argumentação desfavorável, esta alteração potencia falsas denúncias e aumenta o risco de revitimização, com perda da liberdade de decisão por parte da vítima. A decisão de iniciar ou prosseguir com um processo judicial pode ser tomada por terceiros, incluindo as autoridades, independentemente da vontade expressa da vítima. Ser forçada a participar num processo legal, reviver o trauma, prestar depoimentos repetidos e ser sujeita a um escrutínio intenso pode ser factor de agravamento clínico ao nível da saúde mental, prolongando o sofrimento e dificultando o processo de recuperação psicológica.
A prática clínica com as vítimas de violação tem contribuído para o aprofundamento do conhecimento psicológico nesta área em particular. Tornou-se consensual que o controlo sobre o relato dos acontecimentos e o tempo necessário ao processamento do trauma são cruciais para a recuperação psicológica da vítima. O conhecido processo “Casa Pia” é disso um exemplo. O acompanhamento e estudo das vítimas nesse processo contribuíram, inequivocamente, para perceber a importância e a necessidade de aumentar os prazos de prescrição das queixas. A pessoa que é vítima precisa de tempo para cicatrizar e esse tempo é altamente subjectivo – é o tempo de cada pessoa e da sua história única. A imposição de um processo pode ser recebida pela vítima como uma invasão da sua privacidade e bem-estar, e contribuir para a ampliação do trauma. A discussão científica e o olhar técnico atento face a esta temática vai, certamente, fazer sentir-se nos tempos vindouros. São vários os desafios que temos pela frente.
A violação é um crime que atinge a liberdade sexual de qualquer pessoa, independentemente do seu género. A violência sexual não tem rosto, nem género, nem idade, nem orientação sexual. A “protecção” ora conferida abrange todas as vítimas, sejam homens, mulheres, crianças ou pessoas de qualquer identidade de género, consolidando um princípio de igualdade e abrangência na defesa dos direitos humanos.
Neste novo paradigma, a Psicologia Forense assume uma importância ainda mais crucial nos processos judiciais de violação. A sua intervenção não é apenas um complemento, mas um pilar essencial para a compreensão dos factos, na avaliação do impacto psicológico nas vítimas e no auxílio ao Tribunal na tomada de decisão.
Avaliação da Credibilidade e Consistência do Testemunho: O trauma da violação pode afectar a memória e a capacidade de narrar os eventos de forma linear. A formação específica e o treino dos Psicólogos forenses permitem entender estas dinâmicas, distinguindo inconsistências causadas pelo trauma de tentativas de fabricação, e ajudar o tribunal a contextualizar o testemunho da vítima, reforçando ou enfraquecendo a sua credibilidade.
Identificação e Amenização do Impacto Psicológico: A violação deixa cicatrizes profundas. A avaliação psicológica forense permite documentar o impacto psicopatológico, como stress pós-traumático, depressão, ansiedade, isolamento social e outros distúrbios, que não só validam a experiência da vítima, mas também podem influenciar decisões sobre a reparação dos danos. Além disso, a presença de um Psicólogo forense pode ajudar a mitigar a revitimização no processo judicial, criando um ambiente mais seguro para a vítima.
Análise Comportamental e Perfil Psicológico: A Psicologia Forense auxilia na análise comportamental do agressor, contribuindo para a elaboração de perfis que podem ser úteis na investigação e na compreensão dos padrões de comportamento.
Para vítimas particularmente vulneráveis, como crianças ou pessoas com deficiência intelectual, o papel do Psicólogo forense é ainda mais vital. Estes profissionais possuem as competências para conduzir entrevistas forenses adaptadas, garantindo que o testemunho seja obtido de forma não sugestiva e minimizando o trauma.
Num cenário onde a voz da vítima é, por vezes, silenciada pelo trauma ou pela pressão do Sistema, a peritagem independente em psicologia forense surge como um elemento de clareza e equidade processual, seja através de avaliações psicológicas forenses realizadas de raiz ou de pareceres técnico-científicos documentais sobre as peças processuais já existentes.
A peritagem independente em psicologia forense oferece uma visão técnico-científica imparcial fundamental para Advogados, Procuradores/Magistrados do Ministério Público e Juízes, que nem sempre possuem os conhecimentos aprofundados sobre a dinâmica do trauma e os seus reflexos no comportamento e no relato das vítimas. Uma avaliação pericial independente pode, por exemplo, corroborar ou questionar a consistência de um testemunho à luz dos conhecimentos científicos actuais sobre o evento traumático, ou ainda, fornecer uma análise detalhada do perfil psicológico do agressor e/ou da vítima.
Os pareceres documentais, por sua vez, permitem, por exemplo, uma análise crítica e cientifica de relatórios já produzidos no âmbito do processo, identificando lacunas e/ou inconsistências, sempre fundamentadas na ciência psicológica e na prática clínica e forense. A conjugação do exame pericial psicológico e a avaliação documental assegura que todos os ângulos do perfil psicológico e comportamental relevantes sejam devidamente explorados e apresentados, informando e auxiliando na concretização de justiça.
A transição da violação para crime público é uma vitória para a justiça e para as vítimas. Contudo, o sucesso desta medida dependerá, em grande medida, da forma como o sistema judicial integra as ferramentas e os conhecimentos que as ciências forenses, em particular a Psicologia Forense têm para oferecer, sem descurar a necessidade de salvaguardar a autonomia e o bem-estar psicológico da vítima.
Este é um momento de esperança e de renovação do compromisso com os direitos humanos. Que esta mudança seja um catalisador para uma sociedade mais justa e protectora, onde a busca por justiça seja sempre equilibrada com o respeito profundo pela dignidade e pela autonomia de cada vítima.
A procura da verdade na concretização de justiça é um pilar fundamental para qualquer cidadão. Neste contexto, o acesso a instrumentos que permitam essa busca, como a possibilidade de uma segunda opinião técnico-científica independente, é um direito inalienável que assiste a todos. Garantir que cada indivíduo tem os meios para contestar, corroborar ou aprofundar as provas é essencial para a equidade e a confiança no sistema judicial."*
* artigo escrito ao abrigo do anterior acordo ortográfico.