No 6 de Maio havia "sítios onde nem sequer entrava o sol"

Um bairro compacto, labiríntico, com "sítios onde nem sequer entrava o sol". Era assim o 6 de Maio, na Amadora, às portas de Lisboa, onde durante mais de 40 anos muitos imigrantes viveram em condições difíceis até ao realojamento.

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Lusa
21/05/2023 12:08 ‧ 21/05/2023 por Lusa

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PER/30 Anos

Começou a erguer-se nos anos 70 do século XX, paredes meias com as Fontainhas, pelas mãos dos imigrantes das ex-colónias, na maioria da comunidade cabo-verdiana que chegava a Portugal em busca de melhores condições de vida e para trabalhar, sobretudo, na construção civil.

Juntamente com o Estrela de África, os três bairros foram uma casa que só deixou de ser provisória por os moradores terem sido integrados no Programa Especial de Realojamento (PER), que a Câmara da Amadora assinou em 1995, dois anos depois de o plano ser instituído pelo Governo. As casas precárias da zona foram totalmente erradicadas há cerca de dois anos e os terrenos estão agora vazios.

À Lusa, a irmã Deolinda Rodrigues, responsável pelo Centro Social 6 de Maio, explica que chegou ao bairro em 1986, onde as Irmãs Missionárias Dominicanas do Rosário já se encontravam há quase uma década a dar apoio à população. Começou por viver "numa barraca" nas Fontainhas.

"Eu costumo dizer que quando as irmãs vieram para aqui não traziam nenhum projeto, era estar com a população, acolhê-la, ser um sinal de Igreja [Católica], de solidariedade. Foi esse o objetivo, mas chegaram ali e surgiram todas as necessidades do mundo", reconhece.

Uma das primeiras medidas foi a constituição de comissões de moradores, conta, lembrando que iam tentando dar resposta aos problemas que surgiam.

"Era a habitação, não havia água no bairro, não havia nada. As pessoas precisavam de tratar dos papéis [de legalização], de arranjar trabalho, enfim, tudo, tudo, tudo. As crianças que chegavam não tinham escola. As mulheres, na altura, não trabalhavam e, portanto, era preciso ocupá-las. Foram surgindo, em catadupa, todas as necessidades e fez-se tudo em conjunto com a população", recorda.

Foram as necessidades da população que fizeram erguer um bairro "completamente denso", nas palavras da irmã Deolinda, de tal modo que, já numa altura em que os residentes começaram a casar os filhos, era comum construir-se por cima das casas já existentes, "construções muito clandestinas, muito precárias - e havia sítios no bairro onde nem sequer entrava o sol".

"Nós dificilmente podíamos abrir um guarda-chuva. Era, de facto, muito, muito compacto e sempre em aumento. Se não havia no chão, porque não havia, era para cima [que crescia]", conta.

A alfabetização foi uma das "grandes e primeiríssimas atividades" das irmãs, concretizada graças a voluntários, alguns dos quais pessoas "muito conceituadas", com métodos de tal forma atualizados para a altura que constituíam uma referência.

Com as mulheres que chegaram ao bairro para acompanhar os maridos, as irmãs fizeram uma espécie de cooperativa para formação, "com cursos de corte e confeção, costura, economia doméstica". As crianças tinham uma espécie de atividades de ocupação de tempos livres onde as ensinavam também a falar português, para depois poderem ir para a escola.

A vida da comunidade acabou, contudo, por complicar-se, primeiro com a crise dos anos 80 - as mulheres que até então não trabalhavam tiveram de arranjar emprego, deixando muitas vezes as crianças entregues à sua sorte - e mais tarde com a chegada da droga ao bairro.

Tendo em conta novamente "a necessidade da comunidade", as irmãs decidiram então fazer um protocolo com a Segurança Social e constituir uma instituição particular de solidariedade social, com valência de creche.

Chegou também o que a irmã Deolinda descreve como "uma crise de identidade nas crianças e jovens", que começaram a agrupar-se em bandos, levando o bairro a ser "um verdadeiro gueto", com uma estrada (Estrada Militar) a separar os que viviam em barracas daqueles que viviam nos prédios e "nem queriam olhar para o bairro clandestino".

A droga que chegou ao 06 de Maio, "vinda de um bairro da Buraca e do Casal Ventoso", levou a uma situação "incontrolável de tráfico e muito consumo", recorda.

Apesar de o bairro ser "um autêntico labirinto", onde só entrava quem conhecia, Deolinda Rodrigues é perentória ao afirmar que as irmãs nunca tiveram medo de ali estar, como costumavam perguntar-lhes as autoridades policiais.

"As pessoas conheciam-nos, tirando nos últimos anos, em que vinha tanta gente para o tráfico e para o consumo. Essas não nos conheciam, mas pronto. Sabíamos que a população nos conhecia e, portanto, não tínhamos medo nenhum, nenhum. Corri o bairro todos os dias mil vezes", lembra, sorridente.

As famílias mais estruturadas foram saindo do 06 de Maio com medo que os filhos entrassem no mundo da droga, assim como aqueles com "mais capacidade, até para comprar casa fora".

Os restantes foram ficando até aos realojamentos, na grande maioria em bairros camarários no concelho da Amadora, mas o trabalho das missionárias permanece ao lado do espaço agora descampado.

Além da creche e do pré-escolar no Centro Social 6 de Maio, prestam apoio social a quem as procura, sejam os antigos moradores dos bairros ou novos imigrantes.

"Temos muito contacto com a população", diz Deolinda Rodrigues, contando que, no início de maio, as irmãs alugaram três autocarros e foram a Fátima com antigos moradores.

O PER, criado pelo decreto-lei n.º 162, de 07 de maio de 1993, tinha como objetivo primordial acabar com as denominadas barracas e o realojamento das famílias nas áreas metropolitanas, envolvendo 28 municípios - 19 em Lisboa e nove no Porto -, onde foram identificadas mais de 48 mil famílias a viver em construções precárias.

Segundo a presidente da Câmara da Amadora, Carla Tavares, no antigo 6 de Maio vai existir uma via de distribuição de tráfego para facilitar o acesso à CRIL (Cintura Regional Interna de Lisboa) e de onde irá sair o novo Centro Social 6 de Maio, construído de raiz.

Leia Também: Amadora segue "política de não construir mais guetos"

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