O diretor-geral adjunto da Direção-Geral da Política Regional e Urbana (DG REGIO) da Comissão Europeia, Hugo Sobral, admitiu ser "natural que haja alguma incompreensão" no que diz respeito às mudanças contempladas na proposta do Quadro Financeiro Plurianual (QFP) da União Europeia (UE), apresentada em julho passado pelo executivo comunitário. Ainda assim, o responsável frisou que "o facto de se permitir aos Estados-membros organizarem-se da forma como entenderem não quer dizer [...] que vão centralizar" os programas e os fundos, tal como receia o Comité das Regiões Europeus e uma grande fatia de deputados do Parlamento Europeu.
Em conversa com o Notícias ao Minuto, à margem da sessão 'Política de coesão: futuro e prioridades num mundo imprevisível', contemplada na 23.ª edição da Semana Europeia das Regiões e dos Municípios, que decorreu entre os dias 13 e 15 de outubro, em Bruxelas, Hugo Sobral sublinhou que o objetivo da Comissão Europeia e do Comité das Regiões Europeu "é igual", passando, precisamente, por "preservar a coesão, preservar esta abordagem regional e local dos investimentos".
O diretor-geral adjunto da DG REGIO ressalvou, contudo, que a proposta orçamental "ainda vai ser sujeita à discussão entre o Parlamento e o Conselho", pelo que "há lugar para melhorias, para calibrar diferentes aspetos", em prol da preservação da política de coesão.
Acho que é natural que haja alguma incompreensão, alguma contestação. A proposta, de facto, muda várias coisas. É uma proposta que procura simplificar, que procura flexibilizar a gestão dos programas, a forma como os programas são organizados, através da fusão de diferentes instrumentos e de diferentes programas europeus
Concretamente, qual é a sua função na DG REGIO e na Comissão Europeia?
Sou o diretor-geral adjunto na DG REGIO, com responsabilidade sobre a implementação dos programas de coesão. É uma função horizontal, uma função de coordenação, numa direção-geral importante, que gere os programas de coesão, um terço do orçamento europeu. Mais do que o orçamento, [gere] sobretudo os resultados, o impacto que estes projetos têm na vida das pessoas. Muitas vezes fala-se da desconexão que existe entre as pessoas, as comunidades, os cidadãos e o projeto europeu. Acho que a coesão é uma forma de aproximar o projeto europeu dos cidadãos.
Pegando nessa questão, como é que encara as críticas fervorosas que se vêm fazendo ouvir no que diz respeito à proposta do QFP?
Acho que é natural que haja alguma incompreensão, alguma contestação. A proposta, de facto, muda várias coisas. É uma proposta que procura simplificar, que procura flexibilizar a gestão dos programas, a forma como os programas são organizados, através da fusão de diferentes instrumentos e de diferentes programas europeus. E, portanto, há uma adaptação que vai ser necessária. Mas, em todo caso, como referi [na sessão], trata-se da proposta da Comissão. A proposta da Comissão ainda vai ser sujeita à discussão entre o Parlamento e o Conselho, portanto, há lugar para melhorias, para calibrar diferentes coisas.
O que acho, e do ponto de vista da Comissão, é que a coesão continua a ser não só uma política, mas também um valor muito importante para a própria integração europeia. Não queremos, de todo, pô-la em causa; pelo contrário. O que estamos a procurar fazer é responder a algumas das preocupações dos próprios beneficiários dos fundos, que são simplificar, tornar as coisas mais simples, mais ágeis, mas, ao mesmo tempo, ao fazê-lo, procurar justamente preservar aquilo que é a identidade da coesão, a abordagem regional, a abordagem local. Isso queremos preservar absolutamente [e encontrar] o equilíbrio entre estas duas dimensões. Admito que haja discussões sobre isto e sobre se o equilíbrio foi encontrado e foi bem conseguido, ou se é preciso fazer algum ajustamento. Admito que haja esse tipo de discussões.
Promover o desenvolvimento das áreas rurais ou de territórios são objetivos quer do desenvolvimento rural, quer da coesão que, provavelmente, se programados de uma forma integrada, podem ter melhor impacto no terreno
Claro, até porque, como Vasco Alves Cordeiro mencionou [na sessão], a política de coesão não pode ir para a rua com vacas e tratores, não é? Não será que a Comissão foi demasiado ambiciosa em procurar agrupar tantas áreas num só projeto?
Acho que há considerações de carga administrativa que favorecem esta simplificação. Há considerações também de natureza da própria integração de diferentes políticas para ter melhores resultados no final. Por exemplo, se levarmos em conta o que faz o desenvolvimento rural, que é uma área que está tradicionalmente sob a PAC ou a coesão, digamos que são objetivos muito próximos. Portanto, promover o desenvolvimento das áreas rurais ou de territórios são objetivos quer do desenvolvimento rural, quer da coesão que, provavelmente, se programados de uma forma integrada, podem ter melhor impacto no terreno. Agora, é importante, como dizia, preservar a identidade de cada política e ter a certeza que os objetivos de cada política continuam a ser alcançados com esta nova modalidade e com esta nova arquitetura, e se a Comissão está aberta a discutir isso com os Estados-membros e com o Parlamento.
Como é que a Comissão vai assegurar que os fundos realmente chegam às comunidades mais marginalizadas ou mais afetadas pela desertificação, por exemplo?
A proposta de regulamento que a Comissão apresentou sobre este novo fundo, que traria em conjunto quer a coesão, quer a PAC, quer outras políticas, tem objetivos específicos. [Há] a obrigação de os Estados-membros, ao prepararem os seus planos, atenderem àqueles objetivos. Nesses objetivos estão as necessidades, as circunstâncias diferentes de cada território, e estão especificados os diferentes tipos de territórios, as áreas rurais, as zonas industriais, industrializadas ou de industrialização, as regiões ultraperiféricas... Portanto, essa tipologia de territórios está prevista, está identificada no regulamento e os Estados-membros vão ter de demonstrar nos seus planos como é que estão a resolver esses problemas que existem.
Naturalmente, os problemas são diferentes de Estado para Estado e, portanto, nós, Comissão, com base na avaliação de cada Estado e da situação de cada Estado, vamos fazer valer o que está no regulamento para ter a certeza que, de facto, esses problemas que existem são abordados e estão compreendidos nos planos de investimento.
O facto de se permitir aos Estados-membros organizarem-se da forma como entenderem não quer dizer, por um lado, que vão centralizar [as políticas], e não quer dizer, por outro lado, que a Comissão aceite essa centralização, se viesse a ocorrer ou se nos propusessem isso
Mas, tendo em conta que estará tudo centralizado no Governo nacional… Por exemplo, no caso concreto de Portugal, se os Açores não concordarem com algum plano, há a possibilidade de não terem fundos de coesão?
Não, mas não está centralizado no Governo nacional. O que dizemos é que os Estados-membros têm a possibilidade de organizar-se para implementar este futuro fundo de acordo com as suas obrigações constitucionais e de acordo com as suas tradições administrativas.
No caso de Portugal, é uma decisão do Governo, naturalmente, mas antecipo que o Governo queira manter a atual estrutura, com as Comissões de Coordenação e Desenvolvimento Regional (CCDR), responsáveis por gerir os fundos das diferentes regiões do país, e com as regiões autónomas também com os seus programas específicos que, no futuro, serão capítulos deste plano nacional. Admito que, no caso português, Portugal queira manter esta estrutura e que a maior parte dos Estados-membros que, neste momento, estão organizados desta maneira, queiram manter [o mesmo modelo].
O facto de se permitir aos Estados-membros organizarem-se da forma como entenderem não quer dizer, por um lado, que vão centralizar [as políticas], e não quer dizer, por outro lado, que a Comissão aceite essa centralização, se viesse a ocorrer ou se nos propusessem isso. Aí, poderíamos dizer: “Se geriam isto de outra forma, porque é que agora estão a mudar? Qual é a justificação para o fazerem?” Portanto, podemos recusar um plano no futuro se, de facto, essa organização seja diferente e se não seja justificada. Acho que há mecanismos de salvaguarda que existem. No entanto, admito que isto é uma questão que pode ser discutida, se no regulamento é preciso reforçar isto ou não. Vamos ter um ano de negociações, seguramente, para ajustar tudo isso.
Até porque, lá está, o Comité das Regiões Europeu não tem essa perceção. Como é que pretendem convencer os Estados-membros que, de facto, a política de coesão é uma prioridade e que todos os receios não passam disso?
O objetivo não é tanto convencer, é discutir, é acordar em conjunto. Acho que o objetivo que temos é igual, que é preservar a coesão, preservar esta abordagem regional e local dos investimentos. Esse objetivo é comum.
O que temos [de fazer] agora é discutir se há diferentes interpretações de como alcançar isso, como é que podemos conciliar essas visões todas e ter a certeza que os futuros regulamentos e o futuro QFP refletem essa visão conjunta. Portanto, não se trata tanto de convencer, trata-se de iniciar esse processo de discussão com todos.
Acho que a coesão é essencial para a competitividade, porque a competitividade tem uma dimensão regional e, por outro lado, a coesão também permite que várias regiões participem nessa competitividade global e europeia, permite que todos participem nesse jogo que é procurar reforçar a União Europeia
De qualquer modo, a presidente do Comité mencionou, na sessão de abertura, que esta proposta força as regiões a uma espécie de ‘Jogos da Fome’. A Comissão não crê que esta proposta poderá dar azo a mais desequilíbrios sociais, e até a fenómenos que colocam em causa a democracia, tendo em conta o descontentamento crescente dos cidadãos?
Seguramente que o objetivo é reforçar a coesão económica, social e territorial dos Estados-membros da União Europeia no seu todo, não é minar essa coesão. A proposta da Comissão permite aos Estados-membros adaptarem os planos às suas realidades nacionais. Cada realidade é diferente e a ideia é que, na adaptação destes planos, tenham em conta essas situações que existem. Mais uma vez, são diferentes de Estado para Estado, mas [há] ainda regiões que estão em perda demográfica, regiões desertificadas, regiões que precisam de superar a saída de uma indústria… A ideia é trabalhar nisso em concreto, não é pôr isso de lado.
A questão é o método, como é que chegamos lá, porque o objetivo é esse. O objetivo é permitir que esses problemas sejam abordados. A questão é o método, se este método é o melhor, ou se é preciso rever alguma coisa. Mas esses objetivos são, seguramente, os objetivos centrais. A prosperidade, a competitividade, a coesão, a segurança é o que queremos promover com o orçamento em geral.
Há também o receio de que a competitividade e a coesão estejam a ser postas em polos opostos. Portanto, não é esse o objetivo da Comissão?
Não é esse o objetivo. Aliás, é errada essa separação, e essa é uma separação artificial. Acho que a coesão é essencial para a competitividade, porque a competitividade tem uma dimensão regional e, por outro lado, a coesão também permite que várias regiões participem nessa competitividade global e europeia, permite que todos participem nesse jogo que é procurar reforçar a União Europeia, para poder competir com outros Estados a nível global. Aí, estou absolutamente de acordo, a coesão e a competitividade não são opostos; pelo contrário, são duas faces da mesma moeda.
Na sua ótica, quais são, neste momento, os principais desafios não só para a União Europeia, mas também para as regiões?
Acho que os desafios são aqueles que foram identificados, por exemplo, no relatório Draghi e no relatório Letta. Estamos em perda de competitividade em relação aos nossos competidores globais, [que são] os Estados Unidos e a China. Portanto, como [é que podemos] reforçar isso, como [é que podemos] reforçar a produtividade da nossa economia? Temos o problema da segurança, que é evidente; enfim, temos uma guerra nas nossas fronteiras. Temos o desafio da transição climática, de como fazer isso de forma a evitar os custos sociais, ou a minimizar os custos sociais. Temos a questão das novas tecnologias, da digitalização, de como incorporar tudo isso.
Todas estas são questões fundamentais, a que acrescentaria precisamente o desafio de manter a coesão na Europa. Uma união é tão forte quanto o elo mais fraco; é o que dizemos, não é? Portanto, se não olharmos para os nossos elos mais fracos, estamos a pôr em causa a unidade do projeto. A coesão deve continuar a ser uma preocupação fundamental do projeto europeu.
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