O relógio já badalava além das 13h45 (12h45 em Lisboa) quando a presidente do Comité das Regiões Europeu, Kata Tüttő, irrompeu pela Esplanada Solidarność 1980, diante do Parlamento Europeu, para se juntar aos membros da Aliança pela Coesão, que mantinham um momento de silêncio em protesto contra a proposta do Quadro Financeiro Plurianual (QFP) apresentada pela Comissão Europeia, em julho passado.
Munidos com cartazes e faixas onde se liam apelos como "salvem a coesão", "não calem as regiões e as cidades", e até mesmo "stop von der Lyin’" ["Parem de mentir", num trocadilho com o nome da presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen], muitos foram os que se juntaram a este movimento, que agrega mais de 12 mil representantes de municípios, regiões e respetivas associações, assim como parceiros sociais e membros da sociedade civil, para transformar o silêncio num grito pela defesa da política de coesão, esta quarta-feira.
"Estamos aqui hoje porque sabemos que a política de coesão é a maior ferramenta de investimento a longo prazo e de estabilidade da União Europeia (UE), que tem de ajudar a transição de todas as nossas cidades e regiões. Estamos aqui para protegê-la da nacionalização, da falta de investimento, da desconexão de Bruxelas", expôs Kata Tüttő, diante da multidão.
O socialista André Rodrigues, por seu turno, destacou que "a proposta da Comissão Europeia para o próximo QFP fere de morte a política de coesão, que foi responsável pela história do sucesso e da construção deste projeto comunitário".
"Não podemos fazer outra coisa senão estar contra a proposta da Comissão Europeia e rejeitar a tentativa de centralização de fundos, acabando com a política agrícola comum (PAC), com a política comum das pescas (PCP). É um ataque direto ao coração da unidade europeia, que é a política de coesão", disse, em declarações ao Notícias ao Minuto.
Chegada da presidente do Comité das Regiões Europeu© European Union / Timothy Lawrence
O eurodeputado açoriano frisou que, caso não haja alterações na proposta, o executivo comunitário "não terá outro remédio senão contar com o chumbo da maioria do Parlamento Europeu", órgão esse "que é eleito democraticamente pelos cidadãos europeus e, por isso, tem de ser ouvido".
"É muito importante para as regiões ultraperiféricas. Hoje mesmo lancei, em conjunto com outros eurodeputados de França, de Espanha e também da Madeira, a Aliança para a Defesa das Regiões Ultraperiféricas, que visa exatamente combater esta proposta inicial da Comissão Europeia contra o próximo QFP, porque representa um enorme retrocesso relativamente à participação das regiões ultraperiféricas neste processo de construção europeia", elucidou.
É que, na ótica de André Rodrigues, a proposta atual "adensa as assimetrias territoriais e provoca profundas disrupções na coesão das diferentes regiões e dos Estados-membros", representando "um corte financeiro muito abrupto".
"Não podemos aceitar uma proposta que representa um retrocesso muito grande da arquitetura e do desenvolvimento das políticas comunitárias relativamente a áreas tão sensíveis e tão importantes como a política de coesão e aquilo que representam para a maioria da vida dos cidadãos europeus. Não estamos apenas a falar do orçamento, estamos a falar de políticas que têm um impacto direto nas comunidades, nos territórios e na vida dos cidadãos europeus, quer no que diz respeito a infraestruturas, quer no que diz respeito a um conjunto muito vasto de áreas. A política de coesão está no coração da construção da União Europeia", concretizou.
As linhas entre a Esquerda e a Direita esbateram-se em prol da política de coesão. De facto, o social-democrata Carlos Carvalho ecoou estas posições, tendo considerado ser "fundamental" que os membros do bloco lutem "contra aquilo que [entendem] ser um retrocesso na estratégia política que a comunidade europeia tem levado a cabo".
"Parece-me que este processo terá um claro retrocesso, porque se um país centralista como Portugal [transforma] aquilo que estaria estruturado e dividido por regiões num plano nacional, à semelhança daquilo que tem acontecido com o Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), vamos acabar por aumentar as assimetrias e as diferenças entre territórios menos beneficiados. Com toda a certeza que os fundos, que ao longo destes anos têm chegado a essas regiões, dificilmente chegarão, e isso criará graves problemas", disse o presidente cessante da Câmara Municipal de Tabuaço ao Notícias ao Minuto.
O membro do Comité das Regiões Europeu assumiu ainda que a desburocratização é importante, mas ressalvou que é necessário "perceber o histórico e a forma como governamos", particularmente no que diz respeito a países como Portugal, "em que as tendências são claramente centralistas". Nessa linha, "[a proposta] pode simplificar o processo de decisão, mas complicará o critério, a valorização e a equidade da distribuição dos fundos".
"Espero muito sinceramente que a posição do Comité das Regiões tenha eco no Parlamento Europeu e que ainda consigamos ir a tempo de emendar a mão e de fazer aquilo que bem temos feito: tentar dividir o dinheiro de forma a que tenha impacto nas regiões menos favorecidas. No fundo, é isso que transforma a Europa num todo e, numa altura em que o euroceticismo vem outra vez ao de cima, também derivado a muitos fenómenos populistas, temos de avaliar todas as decisões, olhando a uma distância maior e tentando antecipar não apenas o impacto económico, mas também o impacto social e democrático em toda a situação", resumiu.
Recorde-se que a proposta do QFP contempla 16 programas, ao invés de 52, dividindo-se em 865 mil milhões de euros no que toca aos planos de parceria nacional e regional – onde se incluem os fundos estruturais agrícolas e de coesão – e em 410 mil milhões de euros para o Fundo Europeu para a Competitividade.
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