O debate de alto nível da 80.ª sessão da Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), que ocorreu na terça-feira, foi amplamente marcado pela situação em Gaza e o consequente reconhecimento do Estado da Palestina por parte de vários países, entre os quais Portugal. Do mesmo modo, o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, proferiu o seu último discurso enquanto chefe de Estado, e o homólogo norte-americano, Donald Trump, não deixou de tecer críticas ao organismo - assim como apoio "a 100%".
O secretário-geral da ONU, António Guterres, alertou que o "isolamento é uma ilusão" e saiu em defesa do multilateralismo e da organização, a qual considerou "uma bússola moral" e uma "guardiã do direito internacional".
Na abertura do debate de alto nível da Assembleia-Geral da ONU, e num momento em que as Nações Unidas celebram 80 anos, Guterres recordou o cenário que levou à criação da entidade, afirmando que os líderes da altura escolheram a cooperação em vez do caos, a lei em vez da ilegalidade, e a paz em vez do conflito.
"Esta escolha deu origem às Nações Unidas - não como um sonho de perfeição, mas como uma estratégia prática para a sobrevivência da humanidade", disse, relembrando que muitos dos fundadores da ONU viram de perto os terrores dos campos de extermínio e da guerra.
A nova presidente da Assembleia-Geral da ONU, por seu turno, lamentou que o 80.º aniversário da organização esteja a ser manchado pelo atual "estado do nosso mundo", com vários conflitos e tragédias a afastar a possibilidade de celebração.
Annalena Baerbock dirigiu-se diretamente aos chefes de Estado e de Governo presentes no salão num apelo para que se faça "melhor".
"Este aniversário da ONU deveria ter sido um momento de celebração. Mas este não é um ano comum. Basta olhar para o estado do nosso mundo. Milhares de órfãos em Gaza vagueiam pelos escombros, comendo areia e bebendo água contaminada. Mulheres de 90 anos na Ucrânia estão escondidas dos drones, presas nas suas casas em vez de viverem os seus últimos anos em paz", disse a ex-ministra dos Negócios Estrangeiros da Alemanha.
"Perante estas realidades, agora não é tempo de celebrar. Mas perguntar-nos: Onde estão as Nações Unidas? Distintos chefes de Estado e de Governo, as pessoas lá fora estão a olhar para nós". […] Claramente, temos de fazer melhor. Mas não devemos deixar que os cínicos transformem estas falhas em armas", defendeu, referindo-se às acusações de que a ONU "é um desperdício de dinheiro", "desatualizada" e "irrelevante", mas sem apontar nomes.
Marcelo Rebelo de Sousa, por seu turno, destacou o trabalho de Guterres, que "nunca desistiu" e "esteve sempre correto".
"As reformas por que tem lutado desde 2017, que incluem agora a UN80 e o Pacto para o Futuro, são a sua marca e o seu legado. […] É um orgulho para mim ter um português como secretário-geral das Nações Unidas", disse.
No seu discurso, de cerca de 20 minutos, em que falou em inglês, português, francês e castelhano, o chefe de Estado considerou que "as Nações Unidas enfrentam um momento existencial" e precisam de mudanças, mas nenhuma outra organização as poderá substituir: "Nenhum G1 nenhum G2, nenhum G3, nenhum G1+1, 1+2 ou 2+1 será uma alternativa."
"Basta pensar na situação na Ucrânia ou na situação no Médio Oriente. Na Ucrânia, há anos e agora há meses, há oito meses, está-se à espera mediação do mais poderoso do mundo. Temos um cessar-fogo? Não, não temos", apontou.
E complementou: "No caso do Médio Oriente, esperámos, esperámos e esperámos pela intervenção do mais poderoso do mundo. Tivemos um cessar-fogo? Sem a intervenção multipolar e multilateral de tantos países, aqui, em Nova Iorque, com o reconhecimento da existência do Estado da Palestina - alguns europeus, outros não europeus - não mudaríamos tão cedo."
Já Donald Trump acusou a Índia e a China de serem os "principais financiadores da máquina de guerra russa" através da compra contínua de petróleo e reiterou que o conflito na Ucrânia "nunca teria começado" se estivesse na Casa Branca em fevereiro de 2022.
"Era uma guerra que deveria ter durado três dias, mas já leva três anos e meio, com milhares de mortos semanalmente", afirmou o presidente norte-americano.
Numa questão que divide a Europa e os Estados Unidos, Trump apenas ameaçou impor tarifas de grande escala à Rússia caso o Kremlin (presidência russa) não aceite negociar a paz.
"Serão tarifas devastadoras. E, se os aliados europeus não se juntarem, de nada servirá. São vocês que estão ao lado de Moscovo, não nós", frisou.
Durante o discurso, Trump atacou duramente a organização, acusando-a de não "ajudar" a acabar com as guerras ao redor do mundo.
"Se for esse o caso, qual é o objetivo das Nações Unidas?", questionou o presidente, denunciando a ineficiência da organização porque "tudo o que parecem fazer é escrever cartas muito fortes e depois não cumpri-las".
Trump também acusou a ONU de promover a imigração ilegal e mentir sobre a crise climática. Criticou igualmente a organização por não contratar a sua empresa para reabilitar o edifício em que está instalada. Contudo, garantiu a António Guterres que apoia a organização a "100%".
"O nosso país apoia as Nações Unidas a 100%. Acho o potencial das Nações Unidas incrível. Verdadeiramente incrível. Podem fazer tanto, eu apoio-as. Posso discordar [das Nações Unidas] às vezes, mas apoio-as totalmente", declarou Trump no início de uma reunião bilateral com Guterres.
A afirmação surgiu após o chefe de Estado reiterar que o teleponto da Assembleia-Geral da ONU falhou durante o seu discurso e que as escadas rolantes usadas na sede das Nações Unidas também estavam avariadas.
Aliás, a porta-voz da Casa Branca, Karoline Leavitt, disse que, caso um funcionário da ONU tenha desligado intencionalmente a escada rolante onde estava o presidente norte-americano, deveria ser despedido. Isto porque a responsável relatou que o jornal britânico The Times noticiou no domingo que os funcionários da ONU brincaram com a possibilidade de desligar a escada rolante quando Trump entrasse.
O incidente ocorreu minutos antes do discurso do presidente. Trump olhou em redor, surpreendido, mas continuou a caminhar atrás da primeira-dama e ignorou as perguntas dos repórteres que registaram o momento.
"Tudo o que recebi das Nações Unidas foi uma escada que, quando se sobe, para no meio", disse o líder norte-americano.
Donald Trump acrescentou que, "se a primeira-dama não estivesse em grande forma, teria caído…" "Estamos os dois em grande forma", disse, rindo.
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