"É também, de certo modo, a herança do Concílio Vaticano II que está em causa", admitiu Austen Ivereigh, um dos biógrafos de Francisco.
O Concílio Vaticano II, no início dos anos 1960, marcou mudanças estruturais na doutrina da Igreja, com o fim de práticas antigas (como os ritos em latim) e o incremento do diálogo ecuménico (com outras confissões cristãs) e diálogo inter-religioso, alterações que não foram bem vistas por vários setores.
Mais do que qualquer Papa, Francisco tentou implementar uma política de diálogo interno, numa lógica muito semelhante ao modelo de centralismo democrático habitual em partidos marxistas-leninistas, a partir de discussões nas células-base da Igreja até à elaboração de propostas programáticas de alterações que serão apresentadas na Assembleia Eclesial de 2028.
Em 2021, o Papa lançou um "debate sem temas tabu", denominado Processo Sinodal, que visava promover a discussão interna, em particular entre os leigos, retirando aos religiosos o papel de fiscalizar ou condicionar as propostas a apresentar em 2028.
Esta discussão interna, uma tradição que surge de muitos movimentos católicos latino-americanos, influenciados pela teologia da libertação -- um movimento de reflexão teológica sobre o papel da Igreja face à injustiça do mundo e dos governos que foi duramente reprimido por Joseph Ratzinger, antes de ter sido eleito Bento XVI -, teve eco em vários países onde se assiste a um divórcio cada vez maior entre as novas gerações e a fé.
A Igreja Católica tem vivido, a nível mundial, um processo sinodal convocado pelo Papa e dividido em três fases, entre outubro de 2021 e outubro de 2023, com uma etapa diocesana e outra continental, antes do encontro mundial no Vaticano.
A Alemanha decidiu abrir o seu Caminho Sinodal para discutir uma série de questões teológicas e organizacionais contemporâneas relativas à Igreja Católica, bem como possíveis reações à crise dos abusos sexuais por parte de elementos da Igreja Católica.
Em 2022, a Santa Sé desautorizou esse Caminho Sinodal, considerando que esse processo não tem autoridade para decidir sobre matérias de governo ou doutrina, nas comunidades católicas.
Para a Santa Sé, decisões unilaterais representariam "uma ferida para a comunhão eclesial e uma ameaça à unidade da Igreja".
As propostas alemãs incluíam a abertura às mulheres do diaconado (a primeira ordenação no caminho sacerdotal) e o fim do celibato obrigatório para os padres diocesanos.
Francisco chegou mesmo a fazer críticas ao então presidente da Conferência Episcopal Alemã, Georg Bätzing: "Na Alemanha há uma Igreja Evangélica muito boa. Não precisamos de duas".
Nos debates internos estão temas como o celibato dos padres, o papel da mulher, o lugar dos divorciados ou a homossexualidade.
No caso das relações, Francisco aprovou o documento doutrinal Fiducia Supplicans, que abre a possibilidade de abençoar casais em situação "irregular", algo fortemente criticado pelos mais conservadores.
Apesar de um recuo, em que o Vaticano insistiu na bênção das pessoas e não das relações propriamente ditas, Francisco, na sua autobiografia "Esperança", contestou as críticas feitas e reafirmou a abertura de uma Igreja a "todos, todos, todos".
"Na Igreja, são todos convidados, mesmo as pessoas divorciadas, mesmo as pessoas homossexuais, mesmo as pessoas transexuais", escreveu Francisco. "Se o Senhor diz todos, quem sou eu para excluir alguém?", acrescentou.
"Abençoam-se as pessoas, não as relações", precisa o Papa.
Francisco lamentou que mais de 60 países no mundo criminalizem homossexuais e transexuais, "uma dezena até com a pena de morte, que por vezes é efetivamente aplicada".
"A homossexualidade não é um crime, é um facto humano e a Igreja e os cristãos não podem, por isso, permanecer indolentes diante desta injustiça criminosa", escreveu.
Se Francisco pode ser recordado como progressista, muitos movimentos católicos consideram que não o foi suficiente.
E neste equilíbrio de sensibilidades, movimentos mais radicais, que pedem o regresso às práticas pré-Concílio Vaticano II, como a Fraternidade São Pio X, têm aproveitado estes dias para criticar algumas das decisões, como o Caminho Sinodal, que retira à hierarquia o papel decisivo na aprovação das conclusões.
Depois da morte de Francisco, o movimento, fundado por Marcel Lefebvre, publicou uma nota contra o Concílio Vaticano II: "As lojas [maçónicas] podem regozijar-se: o seu sucesso é sensacional, os próprios clérigos decidiram a grande mutação que a Igreja deve sofrer; deve procurar uma expressão do seu dogma adaptada ao espírito moderno, isto é, ao ateísmo prático".
Mas se estes radicais têm menos eco no colégio cardinalício, há muitos nomes que estão associados ao conservadorismo, como é o caso do norte-americano Raymond Leo Burke ou do alemão Gerhard Muller, que foram desautorizados hierarquicamente por Francisco.
Os cardeais mais conservadores que, segundo vários analistas, entre os quais o jornal La Stampa, têm um quarto dos votos do conclave, são maioritariamente nomeados por Bento XVI e alinham-se em torno do conceito da "hermenêutica da continuidade", um termo apresentado pelo antecessor de Francisco, propondo que o Concílio Vaticano II deve ser interpretado em total coerência com a doutrina que sempre foi ensinada pelos papas predecessores.
Ou seja, "uma mudança que nunca seria concretizada de facto", disse à Lusa um dos bispos portugueses.
São precisos 45 votos para bloquear uma maioria que eleja um Papa e se os conservadores não parecem ter força para escolher um sucessor de Francisco tudo indica que poderão ser suficientes para exigir uma grande disciplina de voto aos mais progressistas.
E há nomes como "Peter Erdo [cardeal húngaro] ou Peter Turkson [Gana]" que poderão representar o voto útil dos conservadores, a que se juntariam votos suficientes junto de cardeais que não queiram alinhar com a visão mais radical de Francisco, escreve o El Pais.
O Conclave tem início na quarta-feira, dia 07 de maio, e caberá aos 133 cardeais eleitores, com menos de 80 anos, a responsabilidade de escolher o sucessor de Francisco.
Todos os dias serão feitas quatro votações e o futuro Papa deverá ter pelo menos dois terços dos boletins contados.
Leia Também: Novo Papa? Análise de votos aponta para eleição de cardeal de Marselha