Prestige. Maré de indignação e de solidariedade mantém-se 20 anos depois

A maré negra de toneladas de combustível derramadas pelo navio 'Prestige' há 20 anos ao largo da Galiza originou outras marés que ainda hoje se mantêm vivas, como a da consciência e ativismo ambiental ou a da indignação coletiva.

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© Getty Images

Lusa
12/11/2022 09:51 ‧ 12/11/2022 por Lusa

Mundo

Prestige

Foi a 13 de novembro de 2002 que o 'Prestige', carregado com 77 mil toneladas de fuelóleo, um combustível denso e pesado que não se dissolve, teve uma fissura no casco. Após dias a ser rebocado em frente da costa da Galiza, no norte de Espanha, sem aparente rumo, sujeito a decisões contraditórias das autoridades espanholas, o cargueiro partiu-se e afundou-se.

Dezenas de milhares de toneladas de fuelóleo foram derramadas, manchando de negro a costa galega e atingindo diversos outros pontos do norte de Espanha e do sul de França. Foram 2.980 os quilómetros de costa afetados, com impactos na biodiversidade, destruição de 'habitats' e prejuízos em inúmeras atividades, como a pesca.

O capitão do barco, o grego Apostolos Mangouras, acabou condenado, mais de dez anos depois, a dois anos e nove meses de prisão por desrespeito às autoridades espanholas e por causar um desastre ambiental. E em 2018, a justiça de Espanha fixou definitivamente, em mais de 1,5 mil milhões de euros o montante das indemnizações que o capitão e a companhia de seguros do 'Prestige' terão de pagar como compensação da maré negra a Espanha, a França e a outras 269 empresas, comunidades e pessoas afetadas.

As indemnizações não foram ainda pagas, com processos iniciados pela seguradora The London Owners Mutual Insurance Association pendentes na justiça britânica.

O 'Prestige' foi o maior desastre ambiental de Espanha e um dos maiores na Europa, e foi também um desastre político, com os dirigentes do Governo central espanhol e do executivo regional galego a entrarem em contradições, a demorarem a ir ao terreno e a darem informações que denunciavam o pouco conhecimento da situação ou que se revelaram mesmo falsas e enganadoras.

"A desinformação oficial foi uma das principais características desta catástrofe de repercussão internacional: foi escassa, insuficiente e, por vezes, falsa", escreveu esta semana num comunicado a organização de defesa do ambiente Greenpeace.

Foi deste contexto que nasceram as outras marés do 'Prestige', e que ainda hoje estão vivas, tal como a do próprio derrame de combustível do barco, cujo casco continua afundado ao largo da Galiza, ainda com fuelóleo armazenado.

A plataforma da sociedade civil "Nunca Mais" nasceu poucos dias depois do acidente, na Galiza, e transformou-se em algumas semanas num dos maiores movimentos de indignação, protesto e pressão de Espanha, tendo sido sua a iniciativa de queixas criminais, em janeiro de 2003, contra aqueles que considerou os potenciais responsáveis pela tragédia.

"A plataforma mobilizou mais de 300 mil pessoas ao mesmo tempo em diferentes pontos do país e conseguiu juntar em [Santiago de] Compostela em 01 de dezembro [de 2002] mais de 200 mil pessoas na manifestação mais concorrida deste país", lê-se na página na Internet da "Nunca Mais".

Vinte anos depois, são da responsabilidade da "Nunca Mais" algumas das várias dezenas de iniciativas que assinalam por estes dias em Espanha o aniversário do acidente do 'Prestige', numa demonstração de que continuam vivas as organizações e movimentos que nasceram em 2002.

Uma das iniciativas da "Nunca Mais" é a exibição, em várias cidades, de um documentário que a plataforma produziu com o título "20 anos de dignidade", que inclui testemunhos de pessoas que de forma direta e indireta estiveram na origem do movimento, mas que também se foca no presente, com o alerta de que um novo 'Prestige' pode voltar a acontecer.

"Conseguiram-se avanços em segurança marítima", mas "o perigo é óbvio, vem do tráfego diário" nas costas da Galiza, afirmou esta semana um dos porta-vozes da "Nunca Mais", Xaquín Rubido.

"Por cada cem barcos que passam na nossa frente, 35 são de mercadorias perigosas e 15 têm bandeiras de conveniência. O perigo está aí", acrescentou, numa referência a navios registados em paraísos fiscais, com tripulações pouco profissionalizadas e numa situação jurídica que dificulta a responsabilização dos verdadeiros proprietários.

No mesmo sentido, a Greenpeace, que também fez um documentário para os 20 anos do caso 'Prestige', lembrou esta semana que "aproximadamente 70% do transporte marítimo de petróleo na União Europeia (UE), calculado em mais de 800 milhões de toneladas, faz-se em frente das costas do Atlântico e do Mar do Norte", sendo que ao largo a Galiza passam mais de 36 mil barcos por ano, 35% deles com mercadorias perigosas como o petróleo.

Xaquín Rubido, da "Nunca Mais", em linha com o que têm denunciado peritos e académicos, acrescentou que outra questão pendente é a de averiguar em que estado estão os restos do 'Prestige' no fundo do mar: "Sabendo que há 1.100 toneladas de fuelóleo nos destroços, é obrigatório descer até lá e ver se há novas fugas para as selar", afirmou.

A confederação de associações ambientalistas espanholas Ecologistas em Ação realçou esta semana que os efeitos da maré negra do 'Prestige' "ainda estão presentes na Costa da Morte" e "podem observar-se à vista desarmada" sob a areia de algumas praias, "numa prova mais de que os impactos de um desastre ambiental podem durar anos, ou até décadas".

Cinco anos depois do acidente, em 2007, as autoridades espanholas reconheceram que 113 litros de fuelóleo eram ainda derramados anualmente dos restos do 'Prestige'.

A Ecologistas em Ação produziu também um documentário para o 20.º aniversário do acidente a que deu o nome, à primeira vista surpreendente, de "Alegria".

O filme, segundo um comunicado da confederação, "lembra que é necessário melhorar a coordenação de meios operacionais permanentes e unidades de vigilância marítima, assim como aumentar a quantidade e qualidade das inspeções dos navios que atracam no litoral da Galiza", além de "colocar a ênfase na necessidade de acabar com a dependência do petróleo".

"Mas, sobretudo, o filme quer lembrar a onda de solidariedade, a 'maré branca' que compensou a falta de meios com a força da vontade, enquanto o Governo de Espanha, ausente, continuava a negar a existência" do desastre, acrescentou a Ecologistas em Ação.

A "maré branca" do 'Prestige' foi formada por uma mobilização inédita de dezenas de milhar de voluntários oriundos de toda a Espanha e de outros países que se dirigiram à Galiza e, vestidos com fatos de proteção brancos, como os que são usados em instalações sanitárias, retiraram fuelóleo de extensas zonas da costa galega.

"Por isso, o título deste documentário é 'Alegria', o grito de guerra contra o 'chappote' [maré negra, numa expressão galega] que os voluntários e voluntárias entoaram", explica o mesmo comunicado.

Um "grito de guerra" de consciência ambiental, indignação e solidariedade que nasceu em 2002 e que continua a ecoar, 20 anos depois.

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