Em declarações por telefone à agência Lusa, Rita Dieb, nascida na Guiné-Bissau há 50 anos e que reside no Líbano há 18, lembrou que as quatro tentativas para avançar com o inquérito esbarraram no facto de vários membros do Governo estarem "indiciados" no processo.
"[O inquérito não avança porque], curto e grosso, estão indiciados membros do Governo, pessoas com cargos bastante elevados, e têm sido precisamente essas que têm levado a que se torne inviável qualquer tentativa de inquérito, de responsabilização ou de andar com o processo para diante. Os magistrados têm tido bastante dificuldade para poder avançar com o processo", afirmou.
A 04 de agosto de 2020, a explosão de 2.750 toneladas de nitrato de amónio armazenadas no porto de Beirute provocou a morte a mais de 215 pessoas e ferimentos em cerca de 6.500 outras, tendo arrasado bairros inteiros, deixando cerca de 300.000 pessoas sem teto.
Organizações não-governamentais (ONG) têm denunciado o facto de ainda não terem sido apontados responsáveis pela catástrofe, situação desencadeada, segundo apontam, por uma justiça inoperante, associada à ideia generalizada entre a população de que os políticos libaneses são corruptos.
As mesmas ONG têm vindo a lembrar que a crise política então aberta no Líbano, ainda em agosto de 2020, está por concluir, face aos sucessivos desentendimentos entre os políticos, o que mergulhou ainda mais o país numa já existente grave crise económica.
A persistente crise política, que arrasta há vários anos outra de cariz económica, também não tem ajudado, explicou à Lusa Rita Dieb, que não consegue observar uma luz ao fundo do túnel, lembrando que, depois das eleições legislativas de maio passado, a tensão mantém-se e que para as presidenciais, previstas para o último trimestre desde ano, ainda nem sequer há candidatos.
"Quanto à crise política não me parece que haja qualquer luz ao fundo do túnel. Não me parece que seja solucionável, pelo menos a médio prazo. Estamos a cerca de dois meses das eleições presidenciais e, a nível oficial, ainda não temos qualquer candidato. Quanto ao Governo pouco ou nada tem feito", sublinhou a advogada.
Rita Dieb lembrou que os resultados das legislativas de maio, em que o maior grupo parlamentar, liderado pelo movimento xiita libanês pró-iraniano Hezbollah, perdeu a maioria no parlamento, mostraram apenas uma vontade de mudança, sobretudo entre o eleitorado mais jovem, embora tudo continue politicamente paralisado.
"Poderia ter sido melhor, poderia ter havido números melhores, mas isto já demonstra aqui a necessidade que o povo sente de mudança", frisou a luso-guineo-libanesa, salientando que a crise económica, agora agravada com a invasão russa da Ucrânia, está a criar um maior desespero e a motivar a emigração em massa, sobretudo entre os mais jovens.
"Se já tínhamos aqui uma situação económica complicada, ela agravou-se ainda mais com a invasão russa da Ucrânia, porque houve uma nova subida exorbitante nos preços dos combustíveis e nos bens alimentares. [...] Estamos com uma hiperinflação [332% anual em junho de 2022, segundo dados do Banco Mundial]. Sobreviver está cada vez mais complicado", acrescentou.
De acordo com Rita Dieb, também os medicamentos estão com preços proibitivos, "quando os há", os hospitais públicos "estão a abarrotar" e os privados "têm preços exorbitantes" e a eletricidade é paga em dose dupla.
Por um lado, "caríssima e com mais tempo de utilização", para o combustível para abastecer os geradores e, por outro lado, para os cofres do Estado, através da rede pública, havendo dias em que nem há um minuto de luz, segundo relatou a advogada.
"Tudo isto tem levado a um êxodo do povo libanês, a uma emigração em massa, porque as pessoas não conseguem sobreviver nestas circunstâncias, situação que afeta sobretudo a camada mais jovem, a que mais necessita de começar a vida. Só resta a possibilidade de emigrar. Vamos ver até quando isso vai acontecer", lamentou Rita Dieb.
Desde 2019, o Líbano tem estado mergulhado numa crise socioeconómica classificada pelo Banco Mundial como a pior do mundo desde 1850 e causada por décadas de má gestão e corrupção de uma classe dirigente que se tem mantido praticamente inalterada.
Em mais de dois anos, a moeda nacional, a lira libanesa, perdeu já mais de 90% do seu valor e a taxa de desemprego quase triplicou.
Quase 80% da população do país vive agora abaixo do limiar da pobreza, de acordo com a ONU.
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