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"Enquanto tiver mais sonhos do que memórias não sou velho"

Cantor, compositor, produtor, editor, entre tantos outros talentos. Tozé Brito é verdadeiramente o 'homem dos sete ofícios'. Mais do que conquistas, as suas obras são o seu legado. Algo que perdurará entre as gerações futuras, até porque como já cantava Vítor Espadinha, numa música escrita por Tozé, 'recordar é viver'.

"Enquanto tiver mais sonhos do que memórias não sou velho"
Notícias ao Minuto

09:00 - 13/03/18 por Mariline Direito Rodrigues

Fama Tozé Brito

Aos 66 anos, Tozé Brito parece que já tem uma carreira de um século de tão vasta e rica que é. Escreveu canções que ainda hoje ficam no ouvido de várias gerações, como é o caso de 'Amanhã de Manhã', das Doce, o 'Papel Principal', de Adelaide Ferreira ou 'Recordar é Viver', de Vítor Espadinha. Descobriu a música, ainda na infância, em casa com a família e no liceu começou a fazer parte de bandas amadoras.

Com um 'convite de ouro' de José Cid para integrar o grupo musical Quarteto 1111, deu de caras com a fama e com todas as consequências, positivas e negativas, que dela advêm. Conhece Tessa, a mulher com quem está há 45 anos e sem a qual a sua vida não seria completa. 

Uma das suas conquistas mais recentes deu-se quando os produtores de Jay-Z descobriram a música ‘Todo o Mundo e Ninguém’, que gravou quando fazia parte dos Quarteto, ainda nos anos 1970. A mesma foi integrada numa das músicas do álbum - '4:44' - do marido de Beyoncé, denominada 'Marcy Me'. 

Mas Tozé Brito não se cinge apenas a estes relatos biográficos. A sua vida é muito mais extensa, de tal forma que seria impossível incluir todos os detalhes numa simples entrevista. Contudo, segue-se uma perspetiva sincera dos acontecimentos.

Não sentiu pressão ao pertencer ao júri de algo tão importante como o Festival da Canção?

Já senti noutros tempos, mas agora estou calejado. Nunca é agradável estares a julgar os teus pares. Não é fácil estar ali a comparar um festival de canções com uma corrida de cavalos, para ver quem chega primeiro. O gosto musical é muito subjetivo: eu posso gostar de uma coisa e tu podes gostar de outra. Isto tudo é um pouco ingrato. Mas com o tempo, obviamente, fui-me habituando à ideia de que as regras do jogo são as que são, não há nada a fazer e temos de votar naquilo de que gostamos. Se estivesse sozinho não sei se aceitava, sinceramente, mas sendo nove pessoas a responsabilidade é distribuída.

Uma pessoa que se enerva numa semifinal num estúdio, não pode ir à Eurovisão representar Portugal

Como é que costuma avaliar as músicas?

Divido as coisas em dois campos, o que nem toda a gente faz: 50% é a canção, 50% é interpretação. Não concebo que uma canção possa ser boa e depois tenha um intérprete tão mau, ou tão fraco, ou abaixo do nível da canção, que a vá comprometer na Eurovisão. A Eurovisão é uma coisa muito séria, porque independentemente das canções serem más ou não, há uma coisa que não se vê, que são maus intérpretes. Eles têm um grau muito alto de performance. E nós tivemos exemplos neste festival perfeitamente contrários, ou seja, muito boas canções interpretadas por intérpretes fracos. Inclusivamente, alguns com os nervos, o que é perfeitamente natural, não crucifico ninguém, chegam ali, sabem que estão a cantar para uns milhões de pessoas e abanam. E chegam a desafinar quando nos ensaios não o fizeram. Mas uma pessoa que se enerva numa semifinal num estúdio, não pode ir à Eurovisão representar Portugal.

Notícias ao MinutoA entrevista decorreu na Sociedade Portuguesa de Autores, na qual ocupa o cargo de administrador © Blas Manuel / Notícias Ao Minuto

Acha que as participações deste ano seguiram muito a linha do Salvador Sobral?

A Eurovisão não é o Salvador. Já ouvi canções dos outros países e ninguém está a ir pelo lado do Salvador, só os portugueses é que ficaram influenciados. Vai ser curioso perceber o contraste entre a canção portuguesa e mais duas ou três que sei que seguiram a linha do Salvador, com outras que continuaram com o foco habitual daquilo que é a Eurovisão. Ali tens uma característica que é absolutamente fundamental: três minutos para apanhar as pessoas, não há mais tempo. As pessoas estão em casa, ouvem as canções, pegam no telefone e votam. Em três minutos tens de ter uma eficácia absoluta. Vamos perceber se isso vai acontecer ou não.

Acredita na ‘dobradinha’?

Não… acho muito difícil Portugal voltar a ganhar a Eurovisão. Pode acontecer, mas em anos consecutivos é muito difícil. Se acontecesse era fantástico, era ouro sobre azul.

Aos oito anos estava a aprender piano, aos 10 viola, aos 14 tive o meu primeiro grupo e aos 16 estava a gravar o meu primeiro discoEste gosto que tem pela música foi-lhe incutido na infância ou já nasceu com o Tozé?

Cresci a ouvir o meu pai a tocar viola e a cantar. Desde que sou criança lembro-me de que havia muita música lá em casa. Tocava-se muito aos fins de semana, juntava-se a família toda. Aos oito anos estava a aprender piano, aos 10 viola, aos 14 tive o meu primeiro grupo e aos 16 estava a gravar o meu primeiro disco.

Isso não influenciou a sua prestação na escola?

O meu pai sempre foi muito duro nisso. Ele dizia: “Se tirares más notas não vais tocar ao fim de semana”. E eu com o pânico de deixar o grupo pendurado, estudava. Nunca fui um aluno brilhante, mas fui passando sempre com 11 e 12.

Os anos de 1960/1970 foram de uma criatividade que não se repeteE a música sempre foi marcando o seu crescimento, correto?

Sempre. Não só a nível familiar, porque tinha gente que tocava em casa. Comecei a ouvir Beatles quando fui para o liceu com 11 anos. No ano a seguir já ouvia Elvis Presley, mas não ligava muito. Depois, os Rolling Stones, Bob Dylan e por aí fora. Aqueles anos de 1960/1970 foram de uma criatividade que não se repete.

Viveu tudo de forma intensa ou sente que o tempo passou demasiado depressa?

Não notei que o tempo me estivesse a fugir, antes pelo contrário. Cada dia foi um dia, fui vivendo a minha vida e sempre com a certeza de que o que queria era fazer música. Estava determinado a ser músico.

E os seus pais viam com bons olhos essa ambição?

A partir dos 18 anos não tiveram outro remédio. Quando fui para o Quarteto 1111 e disse ao meu pai "olha, a partir de agora gostava de fazer música", percebeu que já não valia a pena fazer mais nada. Disse que era a minha vida e para fazer o que quisesse. Acho que na realidade disse isso um bocado à espera que corresse mal. Depois acabou por se convencer, inclusivamente, era um dos meus maiores fãs.

Ele chegou a ver muitos concertos?

Sim, claro, muitos. Tinha um orgulho muito grande naquilo que eu fazia.

Hoje em dia não é preciso sair do Porto para coisa nenhuma. Naquela altura eram seis horas de viagem, se não corresse nada mal Podemos dizer que o José Cid lhe abriu uma 'porta de ouro' ao convidá-lo para fazer parte do Quarteto 1111?

Sem dúvida, se não fosse o convite dele de repente não seria músico hoje. Vivia no Porto, que é uma cidade com imensas qualidades, mas que em termos de arte nos anos 1960 era muito difícil. Não havia rádios, televisões... Se queria ser reconhecido à escala nacional tinha de estar em Lisboa, não há dúvida. Hoje em dia não é preciso sair do Porto para coisa nenhuma, até porque há autoestradas. Naquela altura eram seis horas de viagem, se não corresse nada mal.

E foi fácil a sua adaptação pela capital?

Quando se é músico de um grupo como o Quarteto 1111 não há estigmas. Cheguei e fui para Cascais, onde vivo desde que vim para cá.

Nessa altura também teve de lidar com uma nova realidade que foi o sucesso da banda…

Isso veio por tabela. Como músico do Quarteto 1111, as pessoas olhavam para mim como músico

Ganhava 7.500 escudos, que em 1969 era muito dinheiro. Lembro-me que pagava 1.500 escudos de renda, por exemploO que é que fez com o seu primeiro ordenado?

Estoirei-o todo em parvoíces. Tinha aquelas despesas básicas que era pagar a renda da casa, as contas e comer, mas sobrava muito. Lembro-me que fiz um contrato, porque tinha muito medo. O grupo ganhava muito dinheiro no verão, depois havia aqueles meses mortos em que não se faziam espetáculos. Tive muito medo e mesmo com 18 anos não era completamente estúpido. Então fiz um acordo com eles: na altura ganhava 7.500 escudos [independentemente da época do ano], sendo que em 1969 era muito dinheiro. Lembro-me que pagava 1.500 escudos de renda, por exemplo. Depois gastava muito dinheiro a viajar e todas essas coisas. Mas diverti-me muito e isso é o que importa. Quando olho para trás não me arrependo um segundo do que vivi, foi ótimo.

E não era fácil um jovem perder-se assim nesse mundo?

Teria sido se eu tivesse essa personalidade.

Vi músicos e amigos meus a morrerem, alguns com 20 e poucos anos e isso é muito duro de verMas viu pessoas a perderem-se?

Muitas e algumas porque entraram no mundo das drogas. Vi músicos e amigos meus a morrerem, alguns com 20 e poucos anos e isso é muito duro de ver. Nesse aspeto sempre tive juízo, mesmo tendo feito todas as experiências que tinha para fazer. Foram anos muito intensos e depois percebi que se continuasse assim ficava desgraçado. Além disso tinha bons exemplos dentro do Quarteto, porque havia gente que não alinhava nesses esquemas, pela saúde física e mental.

 Portugal era um país anacrónico, completamente atrasado 20 ou 30 anos no tempoQuando é que aconteceu a ida para Londres?

Foi uma opção de vida, porque ia fazer o serviço militar e não queria. Era contra o regime, tinha escrito não sei quantas canções censuradas. Portugal era um país anacrónico, completamente atrasado 20 ou 30 anos no tempo. Quando vinha de Londres ou de Paris parecia que estava a chegar à parvónia, não tinha nada a ver com o resto da Europa. Havia famílias que tinham este país completamente na mão, depois havia milhões de pessoas em que mais de metade era analfabeta. Passavam fome e emigravam – porque a emigração foi maciça nos anos 1960 – e não tinham dinheiro para viver. Não era insensível a essas coisas. Era um miúdo com 20 anos, mas não era nenhuma criança. Olhava à volta e sabia o que se estava a passar. Fui para Inglaterra, casei e tive filhas.

Notícias ao MinutoNa juventude, Tozé Brito era contra o Estado Novo e chegou a ver músicas censuradas© Blas Manuel / Notícias Ao Minuto

Portanto nessa altura já conhecia a sua mulher?

Conhecia mas não era casado. Casámos e tivemos filhos depois.

Como é que se conheceram?

Em Cascais a passar férias. Ela veio com uma amiga, que ainda hoje é a melhor amiga dela, para casa de um amigo dos pais dela, que era um sul-africano. Um dia ele entra pelo estúdio do Quarteto 1111. Escrevia umas canções, eram básicas, não tinha qualquer pretensão de ser músico, mas gostava de ter aquelas canções gravadas para recordação. Quando ele foi ao estúdio pedir para gravarmos as canções, trouxe a minha mulher e a Jane, que era a amiga dela. Conheci-a como amiga, ficamos assim durante meses, sem se passar nada. Depois, aos poucos, fomos aproximando-nos até que as coisas aconteceram. Até hoje. São 45 anos.

Ela é uma mulher especial, aliás se não fosse já não estávamos juntos há muito tempoE ela sempre entendeu a sua rotina agitada como músico?

Ela é uma mulher especial, aliás se não fosse já não estávamos juntos há muito tempo. Como passava muitos meses fora de casa era complicado. Foi mãe, foi pai, teve duas filhas. A vida não foi fácil para ela, mas sempre teve calma e sabedoria. Depois é tudo uma questão de bom senso e de sermos abertos e discutirmos aquilo que há para discutir. Acho que o segredo destas coisas é as pessoas saberem perdoar. Quem não sabe perdoar, não sabe amar.

Como é que se perdoa?

Perdoa-se compreendendo. Acho que sem compreender é muito difícil, embora que não seja impossível. Claro que se pode dizer "eu não compreendo, mas perdoo", mas isso já é quase santo. Se tu perceberes que as circunstâncias que levam uma pessoa a fazer algo poderiam ser as tuas circunstâncias é muito mais simples. Tu és tu, mas quando sais daqui e vais para Londres ou para os Estados Unidos passas a ser outra pessoa, porque as circunstâncias são diferentes. A partir daí é fácil perdoar no sentido em que as pessoas compreendem aquilo que está por trás de uma ação. Não quer dizer esquecer, porque às vezes essas coisas são boas lições de vida. Muitas vezes aconteceu isso comigo, em situações que não achava normais.

 Naquela altura o que me aconteceu chocou-me evidentemente, porque tinha 10 anos e era uma criançaConseguiu perdoar a empregada que o abusou sexualmente?

Claro que sim e escrevi uma canção sobre isso. Chama-se ‘Maria Criada, Maria Senhora’, foi cantada pelo Carlos do Carmo em 1976 no Festival da Canção. Ficou em último lugar... o tema era tão complicado que as pessoas não quiseram ouvir. No fundo é uma história de uma rapariga que vem da província trabalhar como empregada doméstica para casa de uma família e envolve-se com alguém da família. As coisas não correm bem e ela dali dá o salto para a prostituição. A última frase da canção é “veste-se de seda e já não é criada”. Naquela altura o termo até era depreciativo, chamavam-se criadas. Elas vinham da província, de Trás-os-Montes, das Beiras, e caíam em casa de uma família, sozinhas, sem ninguém. O que me aconteceu chocou-me evidentemente, porque tinha 10 anos e era uma criança, mas depois com o tempo comecei a fazer esse exercício e coloquei-me no lugar dela. É simples, basta ter boa vontade.

Sente que pode ser uma inspiração para outros homens que passaram por situações do género?

Já expus a minha história em apresentações em que fui dizer o que sinto. Não façam disto um drama, não vale a pena. Claro, há pessoas que ficam traumatizadas para a vida toda, mas calma. É uma questão de perceber as circunstâncias em que as coisas acontecem e depois aceitá-las. Há momentos mais felizes e menos felizes nesta vida, nem tudo é bom.

Qual foi o momento mais feliz da sua carreira?

A minha carreira foi constante. As coisas que mais gozo me deram fazer foi escrever canções que ficaram, perduraram no tempo e ainda hoje são cantadas por toda a gente. Depois as outras coisas… recebi duas medalhas de mérito cultural, uma com o Quarteto 1111, na Câmara Municipal de Coimbra, outra em Cascais, a título individual. É evidente que é simpático, mas não é isso que me põe em bico de pés. Ter ido à Eurovisão também foi giro. São momentos especiais porque saem da rotina. É uma linha contínua, um trabalho que se vai desenvolvendo.

O que me realiza na vida é ter amigos e o respeito das pessoas

E ser reconhecido por um artista como o Jay-Z?

Tem de ter humildade. Como é que o Jay-Z descobriu isto dos anos 1970? Foram os produtores dele. Foi uma questão de sorte, não sei como foram lá dar com aquilo. É mérito porque quando ouviu gostou, mas para chegar lá havia milhares de canções com certeza com características boas. Fiquei muito honrado, feliz e vou ficar ainda mais quando receber os meus direitos de autor [risos]. Mas agora, sinceramente, não é por isso que me vou sentir melhor ou pior músico.

O que me realiza na vida é ter amigos e o respeito das pessoas. Uma das coisas mais gratificantes que há é perceber que as pessoas me respeitam e olham para mim com algum carinho e ternura. Este homem tem 50 anos de música que foram ótimos e lhe trouxeram muitos amigos.

Ainda lhe falta fazer alguma coisa?

Falta. Falta-me escrever muita coisa, que tenho tanto na cabeça, ainda não tive tempo. Falta-me continuar a viver, a passear, que são coisas das quais não abdico.

Enquanto tiver mais sonhos do que memórias não sou velhoNão tem medo de ficar velho?

Tenho uma maneira de olhar para a vida que me diz que enquanto tiver mais sonhos do que memórias não sou velho. E continuo a ter mais sonhos, apesar de ter muitas memórias. Não sei quanto tempo vou durar, mas enquanto me sentir assim podem contar comigo.

Notícias ao Minuto"Continuo a ter mais sonhos, apesar de ter muitas memórias", garantiu Tozé com um sorriso no rosto© Blas Manuel / Notícias Ao Minuto

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