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"Eu tenho um lado escuro, como todos têm. Quis sair desta concha"

Ana Bacalhau estreia-se a solo com o álbum 'Nome próprio'. E foi em nome próprio que concedeu uma entrevista ao Notícias ao Minuto Brasil, que aqui reproduzimos.

"Eu tenho um lado escuro, como todos têm. Quis sair desta concha"
Notícias ao Minuto

08:31 - 28/10/17 por Raquel Lima

Cultura Ana Bacalhau

Ana Bacalhau, vocalista dos Deolinda, lança-se, em nome próprio, batizando assim o seu primeiro álbum a solo. Com contornos de biografia musical, os 15 temas revelam alguém que se permite cantar a si própria, com medos, incertezas, conquistas.

“O que eu sentia era que as pessoas olhavam para mim e tinham uma ideia que não era completamente fiel àquilo que sou. As pessoas achavam que eu era aquele sorriso, aquela energia. Só que eu não sou só sorrisos. Eu tenho um lado lunar, um lado escuro, como todos têm. Então, quis sair desta concha”, revela em entrevista ao Notícias Ao Minuto.

Ana fez questão que a mesma exposição à qual se submeteu nas letras, estivesse nas melodias de 'Nome Próprio'. E mergulhou em ritmos tradicionais portugueses, acrescentando-lhes o leque de géneros musicais que gosta de ouvir. Um universo tão vasto que inclui "de Pearl Jam a Amália Rodrigues, Elis Regina, Janis Joplin, Miriam Makeba, enfim, muita coisa diferente”.

Uma boa amostra é o tema 'A Bacalhau'. Na canção, que explica o título do disco, a cantora usa o 'corridinho', ritmo típico da região do Algarve, como base para um rap. “A tradição portuguesa não está tão afastada da anglo-saxónica, pode haver pontos em comum”, defende. Na empreitada, escolheu compositores de diferentes géneros e lugares da música de Portugal. “Queria a impressão digital deles”, justifica.

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O resultado? Nomes como Capicua, Jorge Cruz (Diabo na Cruz), Nuno Figueiredo (Virgem Suta), Miguel Araújo, Francisca Cortesão (Minta & The Brook Trout), Carlos Guerreiro (Gaiteiros de Lisboa), António Zambujo e Márcia assinam algumas das canções. Como 'Nome Próprio' nasceu praticamente ao mesmo tempo que Luz, primeira filha da cantora com o contrabaixista  Zé Pedro Leitão,  Ana reuniu músicos em quem confia. Além de Zé Pedro, acompanharam-na Luís Peixoto (cordas), Luís Figueiredo (piano) e o brasileiro Alexandre Frazão (bateria).

Perfecionista, a cantora admite que nem “o pior crítico consegue ser tão mauzinho” quanto ela própria, mas ainda assim está feliz com o resultado da “confissão” que é “'Nome Próprio': "Fiz o que me propus: lançar um disco a solo que não pudesse ser confundido com os  Deolinda. Não queria me repetir. Era importante criar o meu mundo, e acho que consegui representar-me da forma que me vejo”. Na entrevista que se segue, a cantora aborda ainda como canta o bullying (que sofreu quando pequena, por ser gordinha).

Como conseguiu conciliar a celebração dos 10 anos dos Deolinda, a maternidade e o primeiro disco a solo?

Foi intenso. 2016 e 2017 foram anos de um crescimento enorme por tudo que está a acontecer na minha vida profissional e pessoal. Celebrei 10 anos com os Deolinda, em janeiro; engravidei, fui mãe pela primeira vez… engraçado que a Luz  já estava presente desde o primeiro ensaio, em setembro. O crescimento dela acompanhou o deste disco, ajudou a sustentar o diafragma, iluminou o canto, digamos assim. É bonito saber que parto para esta etapa que agora inauguro, deste disco a solo, com ela, que me dá motivação para fazer tudo que fiz este ano.

Como foi o processo de decidir cantar com a própria voz? 

Foi um bocadinho mesmo esta coisa do preciso. Obviamente que, desde pequena, quando descobri que tinha voz, imaginava ter um disco com o meu nome, mas a vida encaminhou-me para bandas, até aos Deolinda - que é mesmo formada por quatro partes. O que comecei a sentir, depois de dez anos muito intensos com os Deolinda, é que havia partes de mim que não estavam representadas ali e nem faziam sentido estarem representadas. Mas senti a necessidade de cantá-las. Nos Deolinda, canto o outro, não necessariamente a mim. Tive um tempo, depois do 'Outras Histórias' [quarto álbum de estúdio da banda], e senti: é agora ou nunca...

E já tinha as músicas? Três delas são suas...

A única que já tinha era 'Maria Jorge', que a Márcia compôs para um concerto especial de fado tradicional que fiz em Lisboa, em 2014. As minhas letras já existiam, mas sem música. 'Deixo-me Ir', na qual faço letra e música, tinha um rascunho, mas o álbum começou a existir mesmo quando comecei a fazer convites aos autores.

E em que é que o novo trabalho é semelhante ao dos Deolinda?

Tem a voz (claro), a energia de algumas canções, o sorriso. O que difere são todas as facetas que, de facto, não têm lugar nos universos estético e artístico da Deolinda.

Que facetas são essas... que Ana é essa?

A menina que está no quarto às escuras,  a sonhar acordada, a falar consigo própria. Aquela que está ali sou eu, não é outra pessoa, não são histórias de outros. E havia este perigo de ser um álbum tão pessoal que as pessoas não sentissem como eu. Temi que não se relacionassem com as histórias das canções, mas, na verdade, não sou diferente de qualquer outro. Toda a gente tem medos e inseguranças. Gostaria muito que as pessoas se relacionassem, de facto, com esta confissão; de alguém que está aqui e tem as mesmas dúvidas e passou por momentos melhores e piores.

Ainda tem medos, neste momento, depois de ter lançado o trabalho?

Tenho sempre. Obviamente queremos que as coisas que fazemos sejam bem recebidas. Não há aqui qualquer tipo de máscaras, estou de peito aberto, completamente sem proteção. Tenho medo que as pessoas não compreendam, não gostem... por estarem tão emocionalmente ligadas à minha imagem nos Deolinda que não consigam conectar-se à deste disco. Mas temos de saber lidar com a rejeição também, não é? Faz-nos aprender e ter mais a certeza de quem somos ou não somos. Estes medos e inseguranças estão sempre lá, o medo de não conseguir fazer justiça às canções no palco. Mesmo nisto há dez anos, tenho sempre imenso medo de não ser suficientemente boa ao ponto de fazer justiça à música -  porque, para mim, o mais importante é servir a música. E este medo ajuda-me, depois, a chegar ao palco e virar leoa, com espírito de guerreira. Liga-se alguma coisa em mim...

O quê?

Sinto-me uma árvore e as minhas raízes são o palco. Até há pouco tempo, não era assim.Tinha medo de ser devorada pelo palco. Talvez por isso virasse leoa, para devorá-lo antes… [risos]

Até quando se sentiu assim?

Até há mais ou menos uns dois anos, quando comecei a sentir-me como agora, como esta imagem de que sou uma árvore e que as minhas raízes, de madeira, são o palco.

Porquê 'Só eu mais ninguém não', como canta no tema 'Só eu'?

Era uma expressão da minha avó. Aquela coisa tão portuguesa, tão humana, ‘estas coisas só acontecem comigo’... Aquela coisa do destino, mas ao meu tempo uma resistência a isto. Tem uma resignação, mas é gritada. É um pouco a razão de ser do fado: há um destino, que está traçado, mas revolto-me contra ele, grito, grito, cá do fundo, grito, grito, grito, com a esperança de, se der, mudar o destino [risos].

'Menina Rabina' parece um recado para uma versão mais jovem de si mesma….

É uma Ana menina que, por ter o nome Bacalhau e ser gordinha, foi vítima de bullying. Isso marcou-me muito. E ajudou a construir este mundo artístico. A minha primeira forma de expressão nem foi a música, foi a escrita. Comecei a escrever muito, a criar mundos paralelos ao real, que não era tão simpático. Portanto, a Ana que está ali a sonhar encontrar a própria história num livro, ou em escrever um livro, ou que está à noite a sonhar acordada no quarto.

É para esta miúda dos 10 aos 15 anos, quando eu descobri a minha voz. Depois a miúda dos 10 aos 15 que só queria ser cantora e sonhava muito e a de quando os Deolinda começaram a resultar e os viu seus sonhos serem realizados… Sou todas estas. ‘Menina Rabina’ é totalmente autobiográfico. Ainda me sinto esta miúda hoje.

É mesmo difícil ser lúcido, como também canta no novo disco?

É super difícil porque não temos ilusões. Às vezes, viver na ilusão é melhor porque não temos de enfrentar a dura realidade. Mas eu prefiro ser lúcida e estar ciente do que pode acontecer. Costumo dizer, ‘espero o melhor e preparo-me para o pior’.

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