"Discussão da eutanásia é ampla, espero que filme leve assunto às mesas"

'Sonhar com Leões' é a nova longa-metragem de Paolo Marinou-Blanco, que chegou aos cinemas no dia 8 de maio. O Notícias ao Minuto entrevistou a protagonista, a atriz brasileira Denise Fraga, e a mesma comentou que este "é um filme que fala sobre a eutanásia e que dá muita vontade de viver".

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© Sonhar com Leões/PROMENADE

Marina Gonçalves
15/05/2025 10:31 ‧ há 6 horas por Marina Gonçalves

Cultura

Denise Fraga

Paolo Marinou-Blanco trouxe aos cinemas portugueses uma comédia negra sobre uma mulher com uma doença terminal, Gilda, interpretada por Denise Fraga. Esta, após várias tentativas de suicídio, inscreve-se num programa de uma empresa clandestina, a Joy Transition International, que promete ensinar a morrer sem dor. Por lá conhece Amadeu, papel do português João Nunes Monteiro, que trabalha numa funerária e vive com uma depressão desde a morte dos pais, em criança, sofrendo de insónia crónica. 

 

No decorrer do filme, Gilda e Amadeu acabam por procurar uma alternativa para a eutanásia em Palma de Maiorca. Aliás, esta longa-metragem de Paolo Marinou-Blanco - descrita como "uma tragicomédia sombria que aborda a eutanásia com um olhar ousado e poético" - foi rodada em Portugal e em Espanha. O elenco inclui ainda nomes como Joana Ribeiro, Victória Guerra, Roberto Bomtempo, Sandra Faleiro e Alexandre Tuji Nam. 

O Notícias ao Minuto entrevistou Denise Fraga, mas não deixou de conversar também com o português João Nunes Monteiro, que além de ter destacado que este filme traz-nos "um assunto que lhe é caro", afirmou ainda que "é bastante importante a legalização da eutanásia"

Por sua vez, Denise Fraga diz que "essa discussão é muito ampla" e espera que 'Sonhar com Leões' "dê muito assunto às mesas". "Quando falamos do direito de morrer, se evoluirmos nessa conversa, vamos questionar 'o que é realmente estar vivo, o que é uma pessoa viver dignamente?'", comenta. Isto sem deixar de notar também que "se ainda há desejo, prazer, ainda há vida". 

Questionada sobre o processo de criação da personagem - tendo em conta o tema de grande peso que o filme carrega, e não só falando da eutanásia e do suicídio assistido como também o cancro terminal maligno na medula espinal de que Gilda sofre -, a atriz conta que tem sempre o hábito de conversar com o realizador, tendo perguntado a Paolo Marinou-Blanco se tinha "referências que achasse que deveria ver e ler". E "inteirou-se do que significava tal tumor". 

"Esta personagem é uma pessoa que gosta da vida, que tem uma clareza muito grande sobre o que é viver, sobre o que é aproveitar a vida. Teve vários casamentos… Gosto de uma fala dela quando o Amadeu pergunta - quando estão a fazer um questionário da [empresa] Joy Transition - quem que é que a Gilda gostava que visitasse o seu túmulo. E ela diz: 'Qualquer pessoa desde que me trouxesse um copo de vinho e um cigarro'. É uma pessoa que gostava de aproveitar a vida e não quer viver dessa outra maneira [a fase terminal da doença]", destaca. 

E não deixou de realçar também o argumento de Paolo Marinou-Blanco. "Um guião único, muito original, uma forma de lidar com este assunto tão espinhoso de uma forma muito esperta, inteligente, mas ao mesmo tempo sensível", afirmou, falando também do "humor". 

"A Gilda tem um humor parecido com o que o Paolo construiu o guião. Ele até põe uma pergunta muito boa na boca do Amadeu para ela. 'És do tipo de pessoa que faz graça para se defender das dores da vida?'. E ela olha para ele com uma cara - até me lembro do [que o] Paolo [me pediu], ele é muito bom diretor de atores, sabe muito bem o que quer", lembrou. 

"O cinema é a arte do detalhe. Muitas vezes um detalhe já diz tudo. E o Paolo sabe muito bem lidar com isso, ele sabe pedir isso ao ator. E nessa cena específica em que o Amadeu faz aquela pergunta, lembro-me que o Paolo pediu-me que [a minha reação] fosse alguma coisa enigmática. E adoro isso no filme, até faço uma cara que nunca vi minha", recordou ainda. "Adorei trabalhar com ele", frisou. 

Quando filmei em Portugal, a minha mãe já estava num processo de decadência física e falava desse desejo [da eutanásia]. Eram temas sensíveis a nós. Aqui no Brasil esse tema nem é falado

O filme traz, sem dúvida, o tema da eutanásia à discussão com alguma leveza e sensibilidade - mesmo na questão do suicídio - com um toque de humor. Aliás, destaco uma frase da Gilda, que diz: "Cometer suicídio não é tão fácil como pensamos". A comédia pode ter o poder de abordar de uma forma eficaz temas tão sensíveis como este? 

Sim. E toda aquela questão de 'mas por que não se atira de um prédio que é uma coisa sem erro?'. Lembro-me que isso foi uma discussão que fizemos juntos e originou aquele monólogo em que estou no alto de um prédio, e digo para a câmara: "Você se atiraria?" Não é fácil, nós não temos ideia. 

A eutanásia é um tema muito debatido em Portugal e acredito que no Brasil seja um tema igualmente sensível… 

O filme é um manifesto pela eutanásia. O Paolo pensou sobre isso, eu pensei sobre isso… Quando filmei em Portugal, a minha mãe já estava num processo de decadência física e falava desse desejo [da eutanásia]. Eram temas sensíveis a nós. Aqui no Brasil esse tema nem é falado. Perdi a minha mãe agora no último janeiro e tive contacto com coisas que não sabia que existiam, que foram as prerrogativas – quem quiser, no Brasil, pode deixar um pedido junto de um advogado a dizer que não quer que a vida seja estendida, ficar ligado a aparelhos… Ser mantido vivo artificialmente. Isso podes, mas a eutanásia é um tema que nem se discute.

O médico disse-lhe que mesmo que ela morasse na Suíça, não iria fazer isso com ela porque achava a eutanásia um crime. É uma grande discussão, e não podemos ser levianos com essa discussão porque ela é muito complexa. O que sinto é que queremos ter o direito de viver até ao fim da nossa vida dignamente. Não acho que estejamos a falar do direito de morrer, é o direito de ter um fim de vida digno

A sua mãe queria, portanto, recorrer ao direito da eutanásia? 

A minha mãe queria e falava disso. Há três anos que a saúde da minha mãe se vinha a deteriorar-se. A imobilidade física, foi para uma cadeira de rodas carregando um corpo que tinha virado uma prisão para tanta vida… Era uma pessoa que sempre aproveitou muito a vida e, de um momento para o outro, esse corpo virou uma prisão para ela. Ela sempre gostou muito de passear, de sair, mas ia na cadeira de rodas todas as semanas ao teatro… Sempre gostou muito de teatro, do espetáculo. E ela nem podia pensar na vida dela em parar de sair, e saiu até onde deu - mesmo sendo carregada e colocada na cadeira de rodas... Mas falava de querer morrer, de ter o direito de morrer. Acho que se tivesse tido a oportunidade, teria feito essa cerimónia.  E no caso dela seria uma festa porque era uma pessoa sempre muito festiva, gostava de ter gente em casa.

Quando ela estava agora no fim, em dezembro, chegou a falar disso com um médico. Perguntou-lhe se ele não podia fazer nada, se não tinha nenhum comprimidinho. O médico disse-lhe que a eutanásia no Brasil é crime, e disse-lhe "aqui não é a Suíça". Ela respondeu: "Que pena eu não morar na Suíça". E o médico disse que mesmo que ela morasse na Suíça, não iria fazer isso com ela porque ele achava a eutanásia um crime. É uma grande discussão, e não podemos ser levianos com essa discussão porque ela é muito complexa. Na verdade, o que sinto é que queremos ter o direito de viver até ao fim da nossa vida dignamente. Não acho que estejamos a falar do direito de morrer, é o direito de ter um fim de vida digno.

O que é estar vivo? Essa discussão é muito ampla, e espero que o 'Sonhar com Leões' dê muito assunto para as mesas depois dos jantares ou em encontros para beber uma imperial. Dá muito assunto porque, na verdade, não estamos a falar da morte, estamos a falar da vida. Quando falamos do direito de morrer, se evoluirmos nessa conversa, vamos questionar 'o que é realmente estar vivo, o que é uma pessoa viver dignamente?'. Ainda que com dificuldades físicas, se ainda tiveres prazer… Era o que dizia à minha mãe, perguntava-lhe se ela não queria, por exemplo, ir ver um espetáculo da Alcione - uma cantora que ela adorava. Porque nós conseguíamos levá-la numa cadeira de rodas… Se ainda há desejo, prazer, ainda há vida. Como se fosse um medidor do que é estar vivo. Acho que essa é a maior questão. Mas nós somos muito egoísta. No fundo, o problema é nosso que é perder as pessoas queridas. 

Quando estamos numa sociedade em que há suicídios infantis, dá vontade de tocar uma sineta e parar tudo. Alguma coisa está muito errado, as crianças não estão a querer ficar. Como sociedade, precisamos de ter essa capacidade de avaliação

Mantendo este tema em aberto, destaco algumas palavras do realizador que numa entrevista disse que "viver deveria ser uma escolha e não uma obrigação, que não deveria ser uma prisão". Este filme acaba por trazer uma outra perspetiva em relação à vida e à morte…?

Esta conversa tem muitas questões. O Paolo fala disso quando cria um personagem que quer morrer porque é depressivo, e outro que quer morrer porque ama a vida e não quer viver daquela maneira - não quer ter aquela dor, não quer perder os movimentos. Tanto que a Gilda dá quase uma lição de vida ao Amadeu com o seu próprio amor pela vida. Acho muito lindo quando eles vão para Maiorca e, de repente, a vida se apresenta cheia de faíscas e brilho. Ao mesmo tempo, ela tem uma consciência muito grande do seu estado, da escolha dela.

Essa frase do Paolo, eu, particularmente, penso cair lá porque também, isto aqui, foi-nos dada a oportunidade de estar nesta jornada. E com o pavio curto que todos andamos ultimamente nesta sociedade complexa, que estamos a levar agora um nó com a aceleração da vida digital, a inteligência artificial… Estamos a testemunhar um momento crucial da história da humanidade, uma grande modificação do comportamento humano, uma evolução digital. A inteligência artificial é uma novidade que vai mudar a história da humanidade, e sinto que deve ter muita gente a querer sair. Tanto que os índices de suicídio, até suicídios adolescentes, são assustadores, suicídios infantis… Quando estamos numa sociedade em que há suicídios infantis, dá vontade de tocar uma sineta e parar tudo. Alguma coisa está muito errado, as crianças não estão a querer ficar.

Como sociedade, precisamos de ter essa capacidade de avaliação. Se dermos o direito a todo o mundo de a vida ser uma escolha, vai haver muita gente a escolher o não. E o próprio Paolo que disse essa frase, ele mesmo fez um filme onde ele coloca essa questão de uma forma complexa e prismática. Ele é muito interessante.

Acho que é na hora que o telefone da Gilda toca, que ela diz 'no dia x e no endereço x', aí gela. É muito complexo, não é uma decisão fácil

Pegando agora um pouco pela parte final do filme, temos, talvez, uma parte mais 'crua' dessa decisão da Gilda que apesar de querer recorrer à eutanásia, quando chega mesmo à hora de executar o seu desejo, percebe-se o quão difícil é - apesar de tudo isto vir também com alguma leveza, de certa forma...

É muito difícil. Tentei fazer isso da forma mais impactante que conseguisse, porque me lembro que dizia "não é fácil". Aconteceu uma coisa muito curiosa comigo. Filmei em 2023 e em 2024 a nossa cadela, que amávamos com 13 anos, ficou doente e teríamos de [recorrer à eutanásia]. Fomos a uma clínica veterinária e o veterinário disse que achava melhor [recorrer à eutanásia] porque ela ia sofrer. Olhei para o meu filho, Pedro, com aquela dor - já tinha feito o filme - e lembrei-me de uma fala do filme. "Quando os nossos cães e os nossos gatos ficam doentes e vão sofrer, nós [recorremos à eutanásia] e não temos essa compaixão com os humanos". Então decidi que devíamos [abatê-la], e tomamos essa decisão. 

O veterinário disse que nós é que decidíamos quando é que isso iria acontecer, definir a hora e a data. E quando chegou esse momento de tomar essa decisão, comecei a chorar, deu-me um frio na espinha. Pedi ao Pedro para ser ele a decidir. E acho que é na hora que o telefone da Gilda toca, que ela diz 'no dia x e no endereço x', aí gela. É muito complexo, não é uma decisão fácil, mas acho que pode ser uma cerimónia linda. Há beleza nisso.

Ainda que na dor e na tristeza dessa hora, há muita beleza. E se pensa muito na vida, e é capaz até de se viver melhor quando se passa por isso

E isso também acaba por ser transmitido, de certa forma, através da paisagem de Palma de Maiorca que o realizador escolheu para o fim…

Agora com toda a história da minha mãe, li um livro aqui no Brasil de uma mulher que trabalha na área da geriatria e especializou-se em cuidados paliativos. Ela acabou por ser uma filósofa desse fim, dessa trajetória do fim, dos últimos dias de vida de uma pessoa. Esse livro foi muito importante para mim, deveria ter lido antes do filme. Chama-se 'A morte é um dia que vale a pena viver'. Ela fala dessa iluminação que as pessoas ficam na proximidade da morte. Desse lugar onde as pessoas amam mais, vêem mais, são capazes de pedir perdão…

É impressionante como é esse lugar que tem muita dor, mas que hoje aconselho as pessoas que têm a oportunidade de lidar com esse fim ou de uma pessoa querida, ou até o seu próprio. Não se privem da intensidade que isso possa ter. Vivam isso plenamente porque há beleza. Ainda que na dor e na tristeza dessa hora, há muita beleza. E se pensa muito na vida, e é capaz até de se viver melhor quando se passa por isso.

Viver a Gilda foi um trabalho inesquecível e fico a torcer para que alguma coisa me leve de volta [a Portugal]. Muita saudade do tempo que passei aí

Como foi voltar a filmar em Portugal? (Até porque tem raízes portuguesas)

[Lembro-me] da casa onde ficávamos, a minha bisavó era de Matosinhos, o meu tio era de Trás-os-Montes, o meu avô que era de Vila Nova de Gaia… Fui criada nessa casa cheia de sotaques. O primeiro filme que fiz em Portugal foi o 'Índia', do Telmo Churro. Amei filmar com o Telmo, foi incrível. Quando veio o convite do Paolo, achava que eles tinham falado, mas não. Eles não se conheciam e até fui eu que os apresentei depois.

'Sonhar com Leões' trouxe-me uma personagem que é das mais incríveis que já fiz, e muito diferente de mim, diferente de coisas que já percorri. As personagens amadurecem-nos e trazem-nos vivências. Viver a Gilda foi um trabalho inesquecível e fico a torcer para que alguma coisa me leve de volta [a Portugal]. Muita saudade do tempo que passei aí.

O João Nunes Monteiro é um ator genial. É impressionante como o João diz tanto com tão pouco

E filmar com o João Nunes Monteiro (de quem faz alguma diferença de idades)?

É um ator maravilhoso, não o conhecia. Fui pesquisar sobre ele e vi o 'Mosquito'… Quando o Paolo disse que ia contracenar com o João, pensei - dentro do meu preconceito como todos temos - que ele era muito jovem. Acho muito bonito que o Paolo tenha feito esse casal como protagonista do filme e isso não é o tema. Em nenhum momento falámos da diferença de idade ou de amor… O que acho muito bonito é que vais vendo essas pessoas a criar uma cumplicidade, uma afinidade, uma cumplicidade e isso vai virando uma intimidade, uma paixão… É muito bonito. Fazemos de uma maneira que fosse até surpreendente. Quando eles se beijam e aquilo é meio inusitado...

O João virou um amigo querido. Ele foi muito importante para mim no filme, ficámos com uma cumplicidade muito grande pelo que estávamos a viver. Tenho um amigo - além dos amigos todos que fiz nessas duas produções que fiz aí. E o João é um ator genial. É impressionante como o João diz tanto com tão pouco. É um leque de nuances de olhar que ele tem… É muito sofisticado como ator.

Dá assunto para muita conversa, uma conversa necessária, que vai começar sobre a morte e acabar sobre a vida. Uma conversa que as pessoas precisam ter. A vida é uma jornada. Todos sabemos que temos um começo, meio e fim. Ficámos a negar, e não é nem falar sobre a morte, é falar sobre aproveitar a vida

Sente, então, que este filme acabou por ser transformador tanto a nível pessoal como profissional?

Muito! Foi um trabalho muito importante para mim. Apetecia-me pegar as pessoas pela mão e levá-las ao cinema. Queria muito que o máximo de pessoas vissem este filme, não só pelo significado pessoal para mim, é um dos papéis mais incríveis que já fiz. Dá assunto para muita conversa, uma conversa necessária, que vai começar sobre a morte e acabar sobre a vida. Uma conversa que as pessoas precisam ter. A vida é uma jornada. Todos sabemos que temos um começo, meio e fim. Ficámos a negar, e não é nem falar sobre a morte, é falar sobre aproveitar a vida.

É um filme que fala sobre a eutanásia e que dá muita vontade de viver. Digo sempre que não preciso de um final feliz, não preciso de ter um final cor de rosa. Aliás, sou contra esse final adocicado, cor de rosa, porque a vida não é bela. A vida é dura, cheia de adversidades, vivemos muitas injustiças… A vida não é bela, mas é rica em diversidade, oportunidades. 

Leia Também: "É um assunto que me é caro, é importante a legalização da eutanásia"

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