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Outro (e mais duro) lado do Dakar: "Das 17h00 às 4h30 a arranjar a moto"

Bruno Pires participou pela 3.ª vez no Rally Dakar e falou em exclusivo ao Auto ao Minuto. O agente da PSP de Bragança é também mecânico e esteve na assistência a António Maio, piloto português que terminou na 21.ª posição nesta edição de 2022.

Outro (e mais duro) lado do Dakar: "Das 17h00 às 4h30 a arranjar a moto"
Notícias ao Minuto

08:35 - 01/02/22 por Ruben Valente

Auto Bruno Pires

O Dakar tem uma magia especial quando existem histórias como as de Bruno Pires que, aos 36 anos, fez mais uma vez as malas e arrancou para aquela que foi a sua 3.ª participação no Dakar. Um 'hobbie' que, como se pode ver pelo número de participações, já deixou de o ser há algum tempo. 

"Como costumo dizer sou polícia, não sou mecânico". São palavras do próprio que, ao lado de António Maio, ajudou o piloto alentejano a somar mais uma excelente participação no Dakar, ao ficar no top20 desta edição.

Agente da PSP a tempo inteiro, mecânico de competição nas horas vagas, tudo parece simples, mas é desgastante. Bruno Pires tem essa mesma noção, mas conforme contou em exclusivo ao Auto ao Minuto, a paixão e o desafio falam mais alto.

No Perú, o António caiu e desfez a moto por completo. Partiu a escora… Chegou à zona de trabalho onde nós estávamos por volta das 17h00 e tive desde essa hora até às 4h30 da manhã a trabalhar na motoComo surgiu a oportunidade/convite de ires fazer o Dakar?

Tudo começou quando conheci o António [Maio]. Nós temos praticamente a mesma idade, ele é um ano mais novo do que eu, e na altura ele estava na Academia Militar e eu estava na área militar ligado ao exército. Começámos a falar, a dar-nos mais e comecei por dar-lhe alguma assistência em corridas nacionais. À medida que o António foi crescendo na área internacional, tive oportunidade de o acompanhar, e foi assim que tudo começou. Ele começou a crescer como piloto a nível internacional e eu fui acompanhando-o na parte mecânica. Quando demos conta já estávamos no Dakar.

É uma aventura que já vai em três edições…

Sim, começámos num primeiro ano no Perú, e este foi o nosso segundo ano na Arábia Saudita.

Quando se diz que este é o rali mais duro do mundo, isso também se aplica aos mecânicos e a todos os elementos da equipa?

O Dakar é um rali difícil e explico-te porquê. A dificuldade também é igualmente elevada para toda a equipa. Quanto mais condições tem a equipa, mais fácil se torna. Existem equipas que têm elementos que tratam de toda a parte logística, mas no nosso caso o piloto conduz e o mecânico tem de conduzir entre etapas e fazer todo o percurso praticamente idêntico ao do piloto, levar todas as nossas peças, todos os nossos pertences, as tendas, chegar ao bivouac e montar a tenda, e quando o piloto chega tem que se trabalhar na moto. Nos troços de ligação que nós, como veículo de assistência, temos de fazer, também temos limites de velocidade, por exemplo, tal como os pilotos. Como mecânico, claro, não faço a parte cronometrada das etapas, mas tenho de fazer todas as ligações.

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Resumindo, vocês percorrem quase tantos quilómetros como os pilotos.

Só não fazemos a etapa cronometrada, sim. Para ter a noção do cansaço que é, transportando isto para um país pequeno como o nosso, é imaginar: Em Bragança está o bivouac número 1 e a ligação é em Faro, que são cerca de uns 700 km. Aí, o piloto dá início à especial que pode ser por exemplo Faro-Coimbra. Depois ainda pode ter outra ligação de Coimbra ao Porto. E eu tenho de fazer esses quilómetros também. Só não faço a parte cronometrada, por isso normalmente o pessoal da assistência faz sempre menos quilómetros que os pilotos. Não deixa de ser duro porque temos sempre que preparar tudo, montar tudo…

Como o António é um piloto que anda sempre nos lugares da frente, o que é que acontece? Imagina que ele tinha uma etapa de ligação de 500 quilómetros e sai por volta das 5h da manhã. Mal ele arranca, desmonto a tenda, meto tudo na carrinha e vou fazer a deslocação do primeiro bivouac para o segundo. Quando chego o António ainda não está lá, e eu tenho que montar a estrutura, preparar as coisas para quando ele chegar começar a trabalhar na moto. Se ele chegar por volta das 14h00, depois tenho até às 2h00 ou 3h00 da manhã para deixar a moto pronta para o dia seguinte. Isto durante quase duas semanas. Uma equipa que tenha uma estrutura grande, os mecânicos só tratam mesmo da parte mecânica, tudo da parte logística está montada. É mais cansativo para nós!

Antes de partir há muita manutenção que é necessária fazer. É preciso ver o sistema do roadbook, a embraiagem também precisa de ser ‘checkada’, a bomba de óleo também…Já tiveste que trabalhar horas a fio para que o António pudesse ter a moto pronta para a etapa do dia seguinte?

Este ano, por acaso, o António não teve nenhuma queda significativa em que tivesse que estar várias horas a trabalhar na moto. Nos outros dois anos, eu fazia até a mecânica de dois pilotos. Só este ano é que trabalhei apenas com o António. No Perú, ele caiu e desfez a moto por completo. Partiu a escora… Chegou à zona de trabalho onde nós estávamos por volta das 17h00 e tive desde essa hora até às 4h30 da manhã. Ele levantou-se nesse dia e enquanto estava a tomar o pequeno-almoço, eu ainda estava a acabar a moto.

Qual é aquela peça/arranjo que um mecânico olha e pensa: “Pronto, estou tramado”?

Há dois tipos de situações que podem acontecer. É aquela avaria que consegues logo identificar, como por exemplo uma fuga hidráulica. Por outro lado se há algum problema numa parte da moto em que tu não podes tocar… É pior, porque não vai aparecer hoje, mas aparece amanhã o problema e se for durante a etapa, essa etapa acaba por ir para o lixo. Na nossa moto, dando este exemplo, eu sabia que havia certos retentores no sistema hidráulico que tinham de ser substituídos. Se eu olhar para lá, aquilo não estiver a verter e me der a preguiça, posso garantir-te que na próxima reparação, aquele retentor não vai estar no estado em que deve estar.

Falando em reparações mais assustadoras que tu vês logo, é por exemplo uma torre partida, que é onde estão todos os instrumentos de navegação que a moto tem. Há muita manutenção antes de partir que é necessária fazer. É preciso ver o sistema do roadbook, a embraiagem também precisa de ser ‘checkada’, a bomba de óleo… Todos os componentes precisam de ser verificados. Não é preciso trocar, mas é preciso sempre fazer uma verificação.

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O que se passou em 2019 para a retirada do António? Que problemas “irreparáveis” existiram?

Nós trocámos o piston numa das etapas e passadas três etapas gripou a biela. Isso foi irreparável. Na altura ainda não dava para continuar em prova, mesmo não fazendo praticamente parte da classificação geral, e também não tínhamos outro motor disponível. Foi isso que ditou o abandono.

O Dakar é uma prova conhecida pela grande solidariedade entre pilotos. Também acontece o mesmo entre equipas e, neste caso, mecânicos?

Sim, sim. Qualquer problema que tenhas, seja mecânico ou logístico, há sempre ajuda. Qualquer equipa que tenhas por perto pode ajudar-te. Seja numa puxada de luz, seja por não ter o berbequim ou a broca certa para fazer um furo. O Dakar é muito isto… Mesmo quando chegas a Portugal podes pensar: ‘Epa como é que me meti nisto?’. Só que tomas banho, descansas e sentes logo aquela vontade. ‘Quero lá estar outra vez!’

Por melhor que levemos a moto preparada de Portugal, chegamos à Arábia Saudita e lá a gasolina é diferente, é mais suja. Isso vai logo ter consequências no desempenhoJá disseste que acabou por ser mais tranquilo, mas qual foi para ti o maior desafio desta edição do Dakar?

Foi ter a moto em pista, sempre da forma em que esteve, sem problemas. É sempre muito exigente a nível mecânico e muita coisa tem de ser verificada para que as avarias sejam evitadas. O ponto para qualquer mecânico é saber que o trabalho que nós fazemos vai encaixar no trabalho do piloto, que faz uma prova limpa, sem quedas, sem avarias. Isso refletiu-se, neste caso, no resultado que tivemos. Há sempre alguns aspetos que não dependem de nós. Por melhor que levemos a moto preparada aqui de Portugal, chegamos à Arábia Saudita e lá a gasolina é diferente, é mais suja, e isso vai logo ter consequências no desempenho da moto. É preciso ver vários componentes todos os dias para que corra tudo bem.

Tiveste algum curso mecânico ou foste aprendendo aos poucos todos os componentes e arranjos de uma moto?

Sempre mexi em motos, apesar dessa nunca ser a minha atividade profissional. À medida que o António foi evoluindo, eu também senti a necessidade de crescer e evoluir na parte mecânica. Há uma pessoa que é uma referência para mim, que é o Pedro Almeida, da estrutura oficial da Yamaha e que desenvolveu a moto que atualmente utilizamos. Foi com ele que aprendi alguns truques. Sempre tive muita vontade de aprender, e agradeço-lhe a ele o tempo e a boa vontade em querer ensinar-me. Porque uma moto de rali não é apenas a mecânica. Há também a eletrónica que está oculta naqueles fios todos. É uma mecânica mais requintada, digamos.

Nós somos amadores e confesso que até me dá algum gozo quando de manhã partimos para uma especial e vemos toda a gente à nossa frente em equipas com grande estrutura. Eu no dia a seguir ao Dakar já estava fardado para entrar aqui ao serviço, e o António igual. Sabemos que estamos a fazer algo bem, quando sem a estrutura de outras equipas, estamos ali junto deles naqueles lugares da frente.

Convite de uma equipa de fábrica? A minha prioridade é a Polícia de Segurança Pública, mas sou uma pessoa de desafiosO que fazes na PSP de Bragança?

Eu sou agente principal da Polícia de Segurança Pública e estou ligado à parte de formação, não só aos meus colegas da PSP, mas também ligado à área civil, através do uso e porte de arma e da sua renovação. Acumulo funções também de uma esquadra de investigação e intervenção policial. Digamos que é a parte mais musculada aqui do Comando Metropolitano de Bragança.

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Como foi conciliar a realização do Dakar com a tua profissão?

Acima de tudo é preciso ser transparente com os nossos comandantes, sem mentiras. Só assim é que eles te conseguem ajudar, porque o Dakar são 12 dias, mas tu queimas 20. Depois é preciso muito bom senso da parte da PSP porque há regras para as férias serem gozadas e é sempre preciso a compreensão dos nossos superiores, e colegas, para esta situação excecional. Compreensão essa que também é preciso ter em casa. Não tenho férias há anos com a minha esposa. Todas as minhas férias são utilizadas para o Dakar e para outras corridas do Campeonato do Mundo. Só temos aqueles 22 dias de férias, não há mais. Por isso é que eu digo que é difícil. Se perguntares se podíamos fazer melhor? Pode-se sempre fazer melhor, mas esse ‘pulinho’ para fazer melhor é muito difícil porque as condições não são as mesmas em comparação com uma equipa oficial.

Acredito que gostes muito do que fazes, mas e se surgisse alguma oportunidade numa equipa de fábrica? Como é que vias a possibilidade de ficares ligado a tempo inteiro ao mundo dos ralis?

Sou uma pessoa que gosto muito de desafios e só com isto estou a responder à tua pergunta. Se me fossem dadas as condições que acho que fossem justas para mim, para a minha família, e para uma situação profissional que melhorasse a minha vida estava aberto a propostas. No entanto, a minha prioridade é a Polícia de Segurança Pública, sempre foi, porque é graças a ela que eu consigo ter a qualidade de vida que tenho. Agora… Quem é que não gosta de um desafio? Era um grande desafio porque como eu costumo dizer, eu não sou mecânico, sou polícia.

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