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"O colonialismo não terminou, mudou de figura e de forma"

Para Boaventura de Sousa Santos, ainda há um longo caminho a percorrer na "análise cuidada e serena" que é necessária relativamente ao colonialismo, um dos temas que tem sido investigado, ao longo dos anos, pelo sociólogo. Defensor da união da Esquerda no combate aos problemas das sociedades "capitalistas, colonialistas e patriarcais", considera fundamental o apoio às ciências sociais.

"O colonialismo não terminou, mudou de figura e de forma"
Notícias ao Minuto

12/04/18 por Pedro Bastos Reis

País Boaventura S. Santos

Ao longo dos anos, Boaventura de Sousa Santos tem estudado as sociedades capitalistas que, para o sociólogo, são também colonialistas (ou neocolonialistas) e patriarcais. Nesse sentido, tem-se envolvido vincademente na defesa dos direitos humanos, denunciando a cada vez menor solidariedade existente na sociedade, focada, ao invés disso, no individualismo.

Se continuarmos neste caminho, diz o diretor do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, os problemas manifestar-se-ão "não apenas na criminalidade, mas também nos distúrbios psicológicos e psiquiátricos, na educação, nos problemas nas escolas". A ideologia subjacente a estas ideias é estrutural e é por isso que o sociólogo afirma, assertivamente, que "nunca precisámos tanto de ciências sociais como neste momento". 

Boaventura de Sousa Santos, que passa grande parte do tempo no estrangeiro devido aos inúmeros projetos em que está envolvido, tem defendido a união entre as Esquerdas e, nesse sentido, congratula-se com a solução existente em Portugal, um Governo do PS apoiado pelos partidos à sua Esquerda. Além disso, o professor catedrático jubilado da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra diz que tem sido questionado relativamente à "solução portuguesa", tamanho o interesse que esta tem gerado no estrangeiro, onde, na maioria dos países, os partidos sociais-democratas estão em queda, isto ao mesmo tempo que a extrema-direita vai conquistando espaço. 

Trabalho grande parte do tempo do fora país e toda a gente me pergunta sobre a solução portuguesa

No Ocidente, temos assistido a um crescimento não só da Direita neoliberal, mas também da extrema-direita. Em que é que a Esquerda tem falhado?

A Esquerda, na Europa, tem uma marca muito grande que é a social-democracia. Estes partidos, que na maioria dos países se chama partidos socialistas, deixaram de defender as políticas de redistribuição social que na Europa assentavam nos direitos sociais e económicos universais, na educação pública, na saúde pública, no sistema de pensões público. Para lá disso, deixaram-se enamorar pelo neoliberalismo a partir do tempo, sobretudo, em que Tony Blair liderou o Partido Trabalhista em Inglaterra, a chamada Terceira Via. A partir daí, abriu-se um espaço à Direita e à Esquerda, como em Portugal, em que o Bloco de Esquerda pôde prosperar num espaço à Esquerda do Partido Socialista, ou em Espanha, como o Podemos, e na Grécia, com o Syriza. Assim como surgiram aberturas à Esquerda, também surgiram à Direita e à extrema-direita. Curiosamente, se analisar com cuidado as políticas da extrema-direita na Europa, elas têm uma política social muito semelhante à social-democracia. Só que apenas para os europeus brancos, não para os imigrantes e muito menos para os refugiados.

À exceção do Syriza, nenhum outro partido à Esquerda dos partidos socialistas conseguiu chegar ao poder. No entanto, temos o caso português, em que o Governo do Partido Socialista (PS) é apoiado pelos partidos à sua Esquerda. Portugal é um caso de exceção?

É sem dúvida uma exceção, mas é um exemplo também. Trabalho grande parte do tempo fora país e toda a gente me pergunta sobre a solução portuguesa, porque é o único caso de um governo de Esquerda moderada, governado pelo PS mas com o apoio de dois partidos à Esquerda. Hoje, é um modelo.

Sei que Pedro Sánchez, do partido socialista espanhol (PSOE), tem visitado frequentemente António Costa para perceber qual é a engenharia política por trás desta solução. Em França olha-se com muita curiosidade para o caso português, na Alemanha também. Portanto, Portugal é um país que está a oferecer, não sei por quanto tempo, uma alternativa positiva que se tem traduzido nos índices económicos e na imagem do país no estrangeiro, inclusive nos mercados financeiros, onde o capital internacional já pode fazer investimento em Portugal, uma vez que os títulos portugueses já não são lixo. De modo que é uma exceção e é um modelo, vamos ver se tem condições – eu gostaria que sim – para continuar. Estamos à beira de uma negociação para um novo ciclo político e as coisas complicam-se nessa fase.

Vivemos em sociedades capitalistas, colonialistas e patriarcaisAinda há margem para um aprofundamento desta aliança? O Bloco de Esquerda e o Partido Comunista Português (PCP) estarão dispostos a fazer parte de um governo liderado pelo PS?

O problema não é o Bloco nem o PCP. É o próprio PS. Isto é, temos de saber se o PS está disponível para continuar a aprofundar uma política de Esquerda moderada que tem dado resultados que foram negociados através de compromissos públicos. Na medida em que o PS não os assumir, põe em causa esta solução. Portanto, não me parece que o problema da solução portuguesa seja apenas dos partidos à Esquerda do PS. Se esta solução tem dado bons resultados, internacionalmente reconhecidos, por que razão não continuar a aprofundá-la e mantê-la em vez de a pôr em causa? Não sei qual o seu futuro, mas espero que continue a dar frutos, porque penso que não se esgotou, de modo nenhum, mas tem de haver boa vontade de todos os partidos.

Temos tido algum racismo que se manifesta contra comunidades e cidadãos, muitas vezes portugueses, que vivem nas periferias, como é o exemplo da Cova da MouraOs estudos sobre o colonialismo têm sido uma constante na sua investigação. Quais são os principais reflexos do colonialismo na sociedade?

Em primeiro lugar, muitas das potências coloniais não garantiram condições de independência aos países que passaram a ser independentes. Continuaram, como no caso da França ou Inglaterra, a manter uma dependência económica e militar muito clara. A primeira manifestação do colonialismo é que aquilo que nós chamamos de neocolonialismo. De alguma maneira, foi essa situação colonial que não foi bem resolvida que é a grande responsável, hoje, pela emigração massiva. Em segundo lugar, a Europa tem uma grande reemergência do racismo. Não só na Europa, mas noutros países também, como o próprio Brasil, uma sociedade onde há uma maioria negra ou parda – designação de mestiço no Brasil – com reflexos do colonialismo muito fortes, através do racismo e da xenofobia, que tem várias vertentes. Esta tem sido usada, sobretudo na Europa, na luta contra os refugiados, agora sob a forma da islamofobia, que também é uma forma de colonialismo, uma relação que assenta na inferioridade natural do outro por questões étnico-raciais. Isso, infelizmente, continua a ser dominante em muitas partes do mundo. O colonialismo não terminou, mudou de figura e de forma. Hoje, vivemos em sociedades que além de capitalistas são também colonialistas e patriarcais.

Marielle Franco, uma amiga com quem trabalhei, foi assassinada porque era contra o narcotráfico e contra a violência das milícias, porque era mulher, porque era negra e porque era lésbica As discussões em torno do racismo e do colonialismo têm vindo a ganhar espaço em Portugal, não só nos meios de comunicação social e na academia como também na sociedade civil. Já fizemos as pazes com o nosso passado colonial? O que ainda falta fazer?

Não, ainda não fizemos. É evidente que há muita coisa por fazer. É preciso passar gerações que estiveram envolvidas neste processo para fazer uma análise cuidada e serena que passa pela abertura de arquivos. Esses não são apenas arquivos da potência colonizadora, neste caso Portugal, mas também os arquivos dos movimentos de libertação que estiveram contra o colonialismo português, como em Moçambique, Angola e Guiné-Bissau. É um processo lento, doloroso, que vai tendo manifestações por vezes diversas – temos tido algum racismo que se manifesta contra comunidades e cidadãos, muitas vezes portugueses, que vivem nas periferias, como é o exemplo da Cova da Moura. Nos grandes centros de investigação de ciências sociais em Portugal, já temos estudos que começam a rever a parte final do colonialismo português e, portanto, começa-se a conhecer um pouco mais. É um processo lento mas está longe de ser saldado esse passado colonial de Portugal.

Além das críticas às sociedades capitalistas e coloniais, tem também criticado, como já referiu, o patriarcado e a violência contra as mulheres. Esta é uma luta em que têm sido conseguidas vitórias importantes nos último tempos, nomeadamente através de movimentos como o #Metoo, que conseguiram uma maior exposição mediática?

Acho que houve vitórias dos vários movimentos feministas, muito diversos internamente, ao longo dos últimos 20 anos, sobretudo. Temos, hoje, articulação de movimentos feministas a nível mundial, como a Marcha Mundial das Mulheres. Tenho estado muito envolvido no Fórum Social Mundial desde o início, e foi a partir do mesmo que se fez uma grande articulação intercontinental dos movimentos das mulheres e houve, realmente, vitórias significativas.

Vivemos num modelo de acumulação de capital que não olha muito para a solidariedade, olha para o individualismoO que é surpreendente para muita gente é que apesar dessas vitórias continua a haver muita violência contra as mulheres, que não tem abrandado. O assassinato de mulheres, que hoje chamamos de feminicídio, é constante. No meu entender, essa discriminação está muito ligada à questão do próprio capitalismo e do colonialismo. Há muito trabalho neste domínio que falta fazer, porque parte da discriminação contra as mulheres está articulada com a discriminação económica e racial. Ainda recentemente, Marielle Franco, uma amiga com quem trabalhei, foi assassinada porque era contra o narcotráfico e contra a violência das milícias, porque era mulher, porque era negra e porque era lésbica. Há muito para caminhar para atingirmos uma sociedade mais equilibrada, porque quanto mais desigualdade social houver, maior será a desigualdade racial e sexista. Neste momento, vivemos num modelo de acumulação de capital que não olha muito para a solidariedade, olha para o individualismo, para os empreendedores – hoje todos temos de ser empreendedores -, e se não tivermos êxito a culpa é nossa, se formos pobres a culpa é nossa, se somos mulheres a culpa é nossa, se somos negros a culpa é nossa. Assim não vamos longe.

O futuro  [das ciências sociais] é incerto porque o sistema de financiamento corre o risco de desaparecer enquanto sistema autónomoEnquanto diretor do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, como avalia o apoio dado à investigação, em particular às ciências sociais, em Portugal?

Estamos a enfrentar um futuro muito incerto, não só na Europa, como no mundo em geral. No dia 16 de maio vamos estar, em Coimbra, reunidos com o ministro da Ciência [Manuel Heitor], porque nesse dia vamos ter cá o secretário-geral dos centros de ciências sociais da América Latina e o secretário-geral das federações dos centros de investigação de África, e vamos discutir o futuro das ciências sociais.

Esse futuro é incerto porque o sistema de financiamento corre o risco de desaparecer enquanto sistema autónomo. Suspeita-se que depois de 2020 as ciências sociais deixem de ter financiamento autónomo e estejam atreladas a financiamentos para segurança, para a inovação industrial, etc. Isto, no meu entender, pode ser o fim do trabalho das ciências sociais tal e qual como conhecemos. É um conhecimento que procura levantar de uma forma independente e livre os fundamentos da nossa sociedade e contribuir para a sua solução. Penso que o temos feito em Portugal e demos o nosso contributo para uma sociedade mais equilibrada, mais plural e diversificada, que sabe enfrentar os seus problemas. Por isso, vejo com muita preocupação a possibilidade de esse financiamento autónomo poder acabar.

Nunca precisámos tanto de ciências sociais como neste momentoNesta sociedade neoliberal e, como ainda há pouco referiu, focada no empreendedorismo e no individualismo, ainda há espaço para as ciências sociais? Espaço para pararmos e refletirmos sobre o futuro?

Penso que há cada vez mais espaço. A questão do empreendedorismo é que todas as pessoas podem ser igualmente empreendedoras. Ora, para alguém ter êxito é preciso que o outro fracasse. E o empreendedor só existe se for uma soma zero, porque se outro tiver êxito, tenho de procurar a derrota do meu vizinho. É uma sociedade individualista que visa destruir os laços sociais e isso depois vai-se manifestar não apenas na criminalidade, mas também nos distúrbios psicológicos e psiquiátricos, na educação, nos problemas nas escolas. Nunca precisámos tanto de ciências sociais como neste momento. Talvez seja por isso que as forças que dominam o neoliberalismo global não estão muito interessadas em diagnósticos independentes em sociedades cada vez mais desiguais, em que oito indivíduos mais ricos têm tanta riqueza quanto a metade mais pobre da humanidade. É um mundo muito desigual e cada vez mais violento com as guerras que há por aí. Perante isto, as ciências sociais nunca foram tão necessárias, porque trabalham pela democracia e pela paz.

*Pode ler a primeira parte desta entrevista aqui.

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