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"Dos inimigos da ciência destaco vendilhões, como terapias alternativas"

O cientista David Marçal é o entrevistado de hoje do Vozes ao Minuto.

"Dos inimigos da ciência destaco vendilhões, como terapias alternativas"
Notícias ao Minuto

20/04/18 por Fábio Nunes

País David Marçal

Na era das 'fake news', das redes sociais e com cada vez mais pessoas a terem um smartphone e livre acesso à internet e a toda a informação que desejam pesquisar, torna-se fácil tentar contrariar ou convencer alguém de que factos comprovados, históricos, científicos, sejam falsos. 

'A Ciência e os Seus Inimigos', um livro escrito por David Marçal e Carlos Fiolhais, e publicado no ano passado pela Gradiva, faz a defesa dos factos científicos e enumera alguns dos detratores da ciência. 

O Notícias ao Minuto entrevistou David Marçal que destacou a importância de promover a ciência na sociedade portuguesa e refutar os argumentos de quem a tenta distorcer.

O cientista aborda a popularidade dos produtos naturais junto dos portugueses, realça o progresso registado na área da investigação científica depois de décadas de atraso e, claro, deixa um alerta sobre as alterações climáticas. 

A ciência e a liberdade são duas faces da mesma moeda

O David e o Carlos Fiolhais escreveram em conjunto o livro ‘A Ciência e os Seus Inimigos’. Quais as razões que os levaram a focaram-se neste ângulo?

É um livro que parte da ideia de que a ciência de facto tem inimigos. O Carl Sagan escreveu no seu último livro que nós vivemos num mundo fortemente dominado pela ciência e pela tecnologia, mas em que quase ninguém sabe alguma coisa de ciência e tecnologia e que essa é uma mistura explosiva, que um dia nos vai explodir na cara. As últimas décadas têm confirmado esta previsão, infelizmente, pouco animadora de Carl Sagan. A ciência trouxe-nos coisas extraordinárias, conhecimento científico. Nós vivemos mais e melhor. Conseguimos fazer coisas que não seria possível fazer sem a ciência, conseguimos viajar à volta do mundo. Conseguimos comunicar instantaneamente. Conseguimos conhecer extraordinariamente o universo e nós próprios através da ciência. No entanto, e apesar disso e paradoxalmente, a ciência tem bastantes inimigos.

No nosso livro falamos dos ditadores, que são inimigos da ciência porque a ciência e a liberdade são duas faces da mesma moeda. Portanto, a ciência precisa da liberdade para existir. Precisa de liberdade de pensamento, de liberdade de expressar opiniões, de expressar hipóteses. Também a liberdade precisa da ciência. As sociedades mais livres e mais democráticas, que são as que se têm dado melhor com a ciência, têm subsistido e prosperado graças à ciência. Desde há cinco séculos, é o conhecimento que determina a hegemonia das nações no mundo.

Falamos também dos ignorantes, e nesse capítulo focamo-nos bastante no Donald Trump. Ele é um inimigo da ciência. Ele desvaloriza o conhecimento científico em prol dos seus interesses egoístas e dos seus interesses setoriais, como é o caso das alterações climáticas. A administração Trump é a administração dos factos alternativos. Abordamos ainda os fundamentalistas e a ligação entre a ciência e a religião, argumentando que a ciência e a religião não são necessariamente inimigos. Isso só acontece se partirmos de posições extremistas. Falamos dos vendilhões, aqueles que procuram distorcer o conhecimento científico para venderem banha da cobra. E finalmente, falamos dos cientistas tresmalhados, que são os cientistas que acabam por se perder e que cometem fraudes científicas.

Dos inimigos da ciência destacaria os vendilhões, e nos vendilhões incluiria as terapias alternativasHá algum destes inimigos que tenha maior preponderância, atualmente?

Os que estão mais presentes nas nossas vidas são os vendilhões. São aqueles produtos que nos são oferecidos utilizando argumentação que procura dar a entender que há um fundamento científico para isso, ou seja pseudo-ciência. Isso está em todo o lado. Desde as prateleiras dos supermercados, com iogurtes com bactérias especiais daquelas que até têm direito a nome artístico no rótulo e que supostamente têm efeitos clínicos, de medicina preventiva, quer seja na prevenção de episódios de prisão de ventre ou no reforço do sistema imunitário. Ou também nas próprias terapias alternativas. Apesar de muitas delas partirem de uma base não-científica, até partem de uma base filosófica tradicional muito antiga, absolutamente pré-científica, acabam por contar uma história que é ‘ok, nós tínhamos este conhecimento tradicional, mas por acaso a ciência até confirmou que tínhamos razão’. Mas isso não é verdade. Eu diria que destes inimigos da ciência destacaria os vendilhões, e nos vendilhões incluiria as terapias alternativas.

A ideia de separação entre produto natural e produto químico é absurda. Os produtos naturais são também produtos químicosNo caso dos produtos naturais, parece haver uma aceitação grande por parte dos portugueses. É possível contrariar isso?

São um grande mercado. E partem de uma grande ilusão que é uma bondade intrínseca nos produtos naturais e uma maldade intrínseca nos produtos químicos. Só que isso é mentira. A ideia de produto natural e de produto químico, se pensarmos bem nisso, nem é um conceito muito realista. Posso dar um exemplo. É possível modificar bactérias para produzir insulina humana. Essa insulina é indistinguível da insulina produzida pelo pâncreas humano. Essa insulina é um produto natural ou não?

Outro caso. O milho como nós o conhecemos não existe na natureza. O milho como o conhecemos, mesmo que seja uma maçaroca de agricultura biológica, é o resultado de um trabalho feito pelos agricultores ao longo de gerações e gerações. A espécie selvagem que dá origem ao milho que nós usamos na agricultura e para consumo humano é muitíssimo diferente do milho que o consumimos. Por isso pergunto: o milho de agricultura biológica é um produto natural? E há outra ilusão que é a ideia de que os produtos naturais são intrinsecamente seguros por serem naturais. Basta pensarmos numa série de exemplos. A cocaína, que é um produto natural é completamente seguro? A cicuta? O veneno do peixe-balão? O que interessa não é se o produto é natural ou não. Há produtos não naturais, sintetizados pelo homem, que nos salvam a vida.

A ideia de separação entre produto natural e produto químico é absurda. Os produtos naturais são também produtos químicos. Não há uma definição científica de produto natural, é algo que não existe. Nós, homem, fazemos parte da natureza. Aquilo que nós fazemos não fará também?

Isto está de facto muito interiorizado. O que é que podemos fazer? Continuar a contrariar porque temos de promover a cultura científica. Porque a sociedade é melhor se as pessoas souberem melhor o que é a ciência, e vivem melhor e tomam decisões melhores.

Há toda uma série de linguajar delirante que é utilizado para vender banha da cobra como se fosse ciênciaÉ fácil promover a ciência na sociedade portuguesa? Em Portugal parece não haver grande espaço para a ciência. É fácil para as pessoas terem acesso à informação científica?

Eu não acho que Portugal seja uma exceção em termos de cultura científica. Não há nenhuma indicação de que Portugal seja um caso particularmente bom ou particularmente mau, suscetível a movimentos de pseudo-ciência. Não creio que seja. A educação em Portugal tem problemas mas também consegue gerar pessoas e profissionais educados em ciência, nomeadamente em engenharia e tecnologia como outros países bastante mais desenvolvidos. E as pessoas formadas em Portugal são reconhecidas.

As pessoas em geral reconhecem a importância da ciência e por reconhecerem é que há a pseudo-ciência. É por a ciência ter credibilidade, que há alguém que procura mascarar a sua banha da cobra de ciência. Este é um primeiro passo. Depois há um segundo passo que não é tão bom. Apesar de a maioria das pessoas reconhecer a importância da ciência, não sabe bem o que é a ciência. Pensa que é o que os cientistas dizem ou o que é descrito com muitas palavras complicadas, como quântica ou campos, energias. Toda uma série de linguajar delirante que é utilizado para vender banha da cobra como se fosse ciência. Mas a ciência não se baseia em nada disso. Baseia-se em provas. Se na educação nós conseguíssemos reforçar a importância do ensino experimental das ciências e que as pessoas na escola compreendessem que a ciência não depende da palavra de pessoas importantes, depende sim das provas que se conseguem obter através de fazer observações ou experiências na natureza, isso seria importante e nisso podemos melhorar. A Ciência Viva tem uma rede de 20 centros espalhados pelo país inteiro, há mais de 20 anos e procura, entre outras coisas, promover o ensino experimental das ciências em Portugal e nesse aspeto penso que estamos bem. A rede de centros Ciência Viva é única no mundo.

Temos ainda de falar num terceiro nível, que é a acessibilidade da ciência às pessoas, e por exemplo, falar da presença da ciência na comunicação social. E temos de dizer que na grande generalidade dos órgãos de comunicação social, com particular ênfase para as televisões e para as rádios, a presença da ciência é insipiente, principalmente em horas de grande audiência.

A ciência é uma afronta intrínseca à autoridade porque para a ciência não tem razão quem está acima na hierarquia, tem razão quem apresenta provas. A ciência é intrinsecamente subversivaUm dos inimigos referidos no livro são os ditadores. Em Portugal tivemos uma ditadura que foi das mais longas na Europa e não só. Como é que isso atrasou a evolução da ciência em Portugal? Ainda estamos a recuperar desse atraso?

A ditadura atrasou tudo, em particular atrasou a educação. Nós também já chegámos atrasados ao século XX, por uma série de outros motivos também compreensíveis. Mas é preciso dizer que chegámos ao século XX com uma taxa de analfabetismo enorme, salvo erro, com uma taxa de analfabetismo de 78%. Enquanto que noutros países como Inglaterra essa taxa é de 3%. Durante grande parte do século XX não recuperámos esse atraso. Para o Estado Novo, não foi uma prioridade que as maioria das pessoas atingissem níveis muito elevados de educação. E não é possível ter ciência sem educação.

Os poucos investigadores que havia e que tinham um pensamento livre acabavam por ser perseguidos e foram obrigados ao exílio ou simplesmente afastados da Função Pública. Esta perseguição aos cientistas é típica das ditaduras. A ciência é uma afronta intrínseca à autoridade porque para a ciência não tem razão quem está acima na hierarquia, tem razão quem apresenta provas. A ciência é intrinsecamente subversiva. As ditaduras dão-se muito mal com a ciência.

Se os EUA desvalorizam a ciência podem pôr em risco a sua hegemonia militar. Trump parece estar convencido de que a sua segurança depende de muros, mas desde que há canhões os muros não resultam assim tantoA presidência de Donald Trump poderá afetar os Estados Unidos em termos de investigação científica?

Pode afetar através da asfixia financeira, através da desvalorização dos contributos da ciência para a decisão política. No fundo pode ajudar a enfraquecer a ciência dos Estados Unidos. E isso é mau. É mau para o mundo porque os Estados Unidos continuam a ser a maior potência científica mundial e a ciência é boa para todos, já que é um conhecimento partilhado, embora não de maneira igual. Os Estados Unidos podem perder a sua vanguarda mundial, perder a sua primazia mundial. Se os Estados Unidos desvalorizam a ciência podem pôr em risco a sua hegemonia militar. Donald Trump parece estar convencido de que a sua segurança depende de muros, mas desde que há canhões os muros não resultam assim tanto. Neste momento a segurança das sociedades mais desenvolvidas depende de coisas muito mais sofisticadas do que isso e depende fortemente do conhecimento.

De que forma a posição de Trump face às alterações climáticas pode prejudicar-nos?

Há duas questões. A primeira, é se o presidente dos Estados Unidos consegue retirar o país do Acordo de Paris. Trump, obviamente, que tem um poder tremendo. Talvez seja a pessoa à face da Terra que mais poder tem, mas os Estados Unidos têm outros centros de decisão. Há muitos outros políticos e decisores, nomeadamente governadores de certos Estados, que mantêm o seu compromisso com as metas e os objetivos com a redução de gases efeito estufa no sentido de mitigar as alterações climáticas. Mas a posição de Trump é significativa e negativa, os Estados Unidos são o país que individualmente mais contribui para a emissão de gases de efeito estufa e se de facto há uma falta de vontade política ao mais alto nível de não cumprir com esses objetivos, isso implica um atraso grande.

É preciso dizer que os Estados Unidos historicamente são relutantes a adaptar medidas para travar e combater as alterações climáticas. Foi a administração Obama que introduziu essa mudança e que de alguma forma trouxe os Estados Unidos para o centro da colaboração global para mitigar as alterações climáticas. Mas tradicionalmente é um país que tem uma posição política grande de não reconhecer a existência das alterações climáticas. Num segundo plano, de não reconhecer que a responsabilidade é do homem e num terceiro plano, de não reconhecer que há algo a fazer e que deve ser feito. E tudo isto assenta na pseudo-ciência, falsa ciência climática, alimentada por décadas através de estratégias de contrainformação para criar no público a ilusão de que havia uma controvérsia científica sobre esta questão.

O que aconteceu no último verão em Portugal só é uma surpresa para quem esteve a dormir. Os impactos das alterações climáticas em Portugal já são estudados há 20 anosO que é a ciência pode fazer para adiar um pouco mais o impacto das alterações climáticas?

O que aconteceu no último verão em Portugal só é uma surpresa para quem esteve a dormir. Os impactos das alterações climáticas em Portugal já são estudados há 20 anos. O aumento do risco de incêndios no verão, o risco de haver maiores períodos de seca são impactos que estão previstos há muito. Agora com o verão que tivemos, os incêndios, talvez as pessoas tenham ficado mais alerta. Mas é muito curioso que ainda se continuem a falar de condições meteorológicas excecionais, como se ainda pudesse haver alguma reversão e pudéssemos voltar a uma condições meteorológicas ditas normais, com menos ondas de calor, com menos períodos de seca.

Aquilo que mostram os estudos sobre as alterações climáticas em Portugal, e na generalidade dos países do sul da Europa, é que cada vez teremos mais ondas de calor no verão e períodos de seca mais prolongados, o que agrava o risco de incêndios. Estas são as novas condições normais. Por isso, nós temos de ter dispositivos de combate a incêndios e políticas de prevenção compatíveis e adequadas às novas condições normais. O antigo excecional é o novo normal.

Estamos preparados para nos adaptarmos às alterações climáticas e para fazermos as mudanças necessárias no nosso dia a dia?

Cada vez mais as pessoas estão preparadas. Cada vez mais as crianças na escola são sensibilizadas para as questões das alterações climáticas, como para outras questões ambientais. E desde a mais tenra idade. Os adultos daqui a 20 anos estarão bastante mais sensibilizados e conscientes de que as alterações climáticas farão parte da sua vida. Os adultos de agora ainda estão um pouco em negação. Muitos terão uma postura de concordância com a necessidade de adaptação e de mitigação das emissões, mas terão muita dificuldade em transpor isso para a sua própria vida. Muitos não terão condições de na prática abdicarem de andar de carro ou trocarem de carro por um menos poluente. Um carro elétrico, por exemplo.

Poderá haver uma certa discrepância entre uma boa intenção geral e aquilo que de facto cada um de nós é capaz de fazer ou estará disponível para fazer no seu plano individual. Mas é preciso dizer que isso também pode melhorar. No entanto, convém realçar que embora as decisões individuais das pessoas sejam importantes nem que seja votando em partidos e em propostas políticas mais conscientes do problema, é ilusório pensar que basta o poder dos consumidores ou um ativismo individual para promover essa mudança em larga escala. É preciso vontade política e ações legislativas também para alterar o paradigma da nossa economia que é baseado essencialmente no petróleo.

Não apostar na ciência é condenar-nos à subalternidade. Nós podemos ser a Florida da Europa. Podemos ser um paraíso para reformados. E a investigação científica, a economia, a modernidade estarão noutros polosEm que ponto está Portugal no que toca ao investimento na investigação científica?

Chegámos até 1974 no século XIX no que diz respeito à ciência. Tínhamos uma comunidade pequena, virada para ela própria e até mais virada para o estrangeiro do que para o país. Ocasionalmente com alguns expoentes de qualidade. Egas Moniz ganhou o Prémio Nobel em 1949, em pleno Estado Novo. Mas essa elite não tinha massa crítica e não tinha capacidade para intervir no país, de ter significado.

Isso começou a mudar a partir do 25 de Abril, nomeadamente com o acesso à educação, as pessoas começaram a ter graus de educação mais elevados. E mudou ainda mais a partir de meados dos anos 90 quando Mariano Gago assume a pasta da Ciência e, também aproveitando fundos europeus, há de facto uma aposta significativa na ciência.

A nossa ciência internacionalizou-se. Aumentou muito as suas relações com grupos de investigação no estrangeiro e nós hoje fazemos parte da comunidade científica de pleno direito. Houve um progresso tremendo. A par deste progresso na investigação científica, houve um grande progresso na divulgação científica, principalmente através da Ciência Viva.

Apesar deste grande progresso, nós estávamos muito atrasados e ainda continuamos com um atraso significativo em relação a sistemas científicos mais desenvolvidos. Continuamos a ter grandes desafios pela frente. Temos de continuar a apostar na ciência, nomeadamente as empresas privadas. Portugal destaca-se pela falta de ligação da ciência às empresas. As empresas portuguesas parecem não ter grande interesse na ciência e em investir na investigação científica, o que é um problema do sistema científico português. Grande parte do investimento no sistema científico português é público.

Noutros países o investimento privado costuma ser uma fatia significativa, certo?

É. As empresas portuguesas ainda não vêem o conhecimento e a investigação como uma mais valia e como um fator de competitividade, e é esse o único fator que pode fazer com que Portugal aumente os níveis de produtividade para que de facto passe para o pelotão da frente. Não apostar na ciência é condenar-nos à subalternidade. Nós podemos ser a Florida da Europa. Podemos ser um paraíso para reformados. E a investigação científica, a economia, a modernidade estarão noutros polos.

Nesta altura temos aqui uma mudança de paradigma, que é a alteração no sistema que assenta muito na figura do bolseiro de investigação científica, que na prática é uma forma ultra-precária de contratação. Essa mudança está em curso, por iniciativa do atual Governo. É bom que haja essa intenção, essa mudança de paradigma.

Stephen Hawking? Perdeu-se provavelmente a maior estrela mundial da ciência, a seguir a EinsteinEsse acaba por ser um dos fatores que leva muitos investigadores a optarem por sair do país, e muitas vezes a destacarem-se lá fora pelo sucesso dos seus trabalhos.

É preciso referir que a carreira de investigação tem inerente uma grande mobilidade. Sempre que um cientista muda de sítio, isso representa uma transferência de conhecimento e de tecnologia. E as carreiras científicas são tendencialmente internacionais. A mobilidade é boa para os investigadores que se valorizam e ganham novos potenciais através dos sítios onde estão. Mas dito isto, é óbvio que a mobilidade não deve ser forçada pela falta de oportunidades e de não conseguirem pagar as contas por uma questão de precariedade.

E também sou coordenador de uma rede de investigadores portugueses globais chamada GPS – Global Portuguese Scientists, cujo objetivo é não só conhecer os percursos da diáspora científica portuguesa, mas também dar conhecimento e visibilidade à diáspora científica em Portugal.

Stephen Hawking morreu há cerca de um mês. Que impacto é que teve na sua vida uma figura como Hawking?

O Stephen Hawking é um dos raros ícones globais da ciência. Será, injustamente, mais conhecido pela sua condição física. Será isso que o torna mais famoso, mas isso é injusto. Ele foi um cientista brilhante. Um cosmólogo, um físico que se dedicou a compreender a origem do Universo e as grandes questões. A ciência perde o ícone, uma referência e um modelo extraordinário. Ele deixa-nos também uma inspiração que transcende a ciência. Uma lição de vida de nunca desistir. Ele perdeu quase todas as suas capacidades físicas e mesmo assim nunca deixou de ter uma intervenção, nunca desistiu de dar aulas. Foi auxiliado pela tecnologia para o fazer. Perde-se e não se perde porque no imaginário popular, na cultura popular nunca irá desaparecer. Não há muitos cientistas que tenham a estatura mundial de Stephen Hawking.

O livro ‘A Breve História do Tempo’ que o catapulta para o estrelato mundial, é um livro de divulgação científica em certa medida surpreendente. Surpreende o seu sucesso. Não é um livro nada fácil, apesar de só ter uma equação porque parece que o editor lhe disse que por cada equação que ele pusesse no livro, o número de leitores caía para metade. Ele mesmo assim pôs lá uma, portanto se tivesse abdicado talvez tivesse tido o dobro dos leitores. Mas mesmo assim foi um bestseller mundial. Foi um livro que ele escreveu também por razões económicas porque o seu estado de saúde exigia cuidados que eram muito caros e também para conseguir apoiar a sua família. Mas não é dos livros mais acessíveis e é surpreendente o êxito mundial que teve. Pôs-nos a falar de coisas um bocadinho esotéricas como buracos negros, que acabaram por trazer uma área extremamente complexa da ciência, que é cosmologia, ao imaginário popular. Perdeu-se provavelmente a maior estrela mundial da ciência, a seguir a Einstein.

Que avanços científicos recentes o estão a entusiasmar mais?

Posso destacar um dos campos que está mais próximo da minha área, que é o da genética. A genética agora está no fundo a cumprir as promessas dos últimos 50 anos. A estrutura do ADN foi descoberta em 1953 por Watson e Crick. A partir daí criou-se um grande entusiasmo acerca do potencial desse conhecimento para a ciência médica. No entanto, as coisas demoraram muito tempo. Foi só no final do século XX que se concluiu a sequenciação do genoma humano e a partir daí a genética, nomeadamente através de desenvolvimentos tecnológicos que permitem sequenciações muito rápidas de ADN, tem tido um desenvolvimento tremendo.

No campo da edição genética, nós hoje em dia podemos fazer copy-paste de genes. Mesmo de organismos adultos. Um de nós, conceptualmente, há alguns obstáculos técnicos, poderia ter o seu ADN alterado por um mecanismo de corte e cola, igual ao que podemos usar num processador de texto. É um mecanismo complexo que permite-nos antever coisas incríveis, como por exemplo corrigir um gene defeituoso que nos causa uma doença genética. Não é uma fantasia, já há de factos formas de fazer estas alterações em órgãos específicos, em tecidos específicos do corpo humano. Podemos até alterar aquilo que distingue uma pessoa que tem uma esperança de vida mais ou menos normal de um supracentenário, uma pessoa que passa os 100 anos.

Não é só o estilo de vida que nos faz ultrapassar os 100 anos, são os genes. Podemos substituir genes normais por genes que nos façam ter uma longevidade maior ou perceber que modificações genéticas seriam necessárias para termos menos propensão para termos determinados cancros. Se nós percebermos geneticamente a base destas vantagens, podemos eventualmente através da edição genética aumentar a nossa saúde.

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