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"Se há acordo, tem de se ter a certeza de que depois não há uma rasteira"

Francisco Louçã é o entrevistado desta quinta-feria do Vozes ao Minuto.

"Se há acordo, tem de se ter a certeza de que depois não há uma rasteira"
Notícias ao Minuto

07/12/17 por Melissa Lopes

Política Francisco Louçã

Francisco Louçã, bloquista de corpo e alma e economista de profissão, acaba de lançar o livro 'Sombras - A Desordem na Era da Globalização', uma obra escrita em conjunto com o professor de economia e política pública norte-americano Michael Ash. O livro explica a crise de 2007/2008 causada pela economia sombra: a economia que, não sendo ilegal, não é regulada. Uma economia que se move no terreno da imprudência, onde os lucros são muito maiores, mas onde os riscos também são gigantes. Inclusive para os contribuintes, 'inocentes' nesta desordem financeira.

Louçã não tem dúvidas de que enfrentaremos uma nova crise - os riscos vêm dos EUA de Trump, mas não só - , sem que se possa, contudo, prever a data em que o 'castelo de cartas' vai desmoronar e atingir outros.  "Mas o capitalismo é precisamente isso: crises sucessivas através da destruição de capital e de emprego", diz-nos nesta entrevista, mostrando preocupação com a atual relação entre o capital e o trabalho. "O trabalhador é visto como aquela pessoa que pode ser explorada no seu trabalho, produz mais do que o seu salário". Além disso, o trabalhador vê ainda uma parte dos seus impostos ser usada para assegurar empresas rentistas, que dependem de rendas do Estado.

Nesta conversa, o ex-líder do Bloco de Esquerda diz-se "satisfeito" com este Orçamento do Estado, aprovado recentemente, considerando-o um "bom progresso". Critica, por outro lado, a postura do Governo no que às rendas às energias renováveis diz respeito, após ter voltado atrás e rejeitado uma proposta bloquista. Foi um "ato de deslealdade" e isso, sublinha, é "grave". "Um acordo político baseia-se na confiança", frisa, preferindo, contudo, apontar as objetivas para o que aí vem: os próximos dois anos. "É preciso olhar para o dossier da saúde e das regras do trabalho da contratação coletiva" e "trabalhar muito rigor e preocupação", deixando de parte os assuntos de agenda política e mediática.

E Francisco Louçã como ministro das Finanças?, questionamos. A resposta vem acompanhada de risos. 

Sombras – A Desordem Financeira na Era da Globalização’ analisa os últimos dez anos e explica a crise de 2007/2008. O que é , afinal, a economia sombra e como é que ela se distingue da economia paralela?

A economia paralela é um conceito estabilizado há muito tempo que refere a economia daquelas atividades ilegais, pequenas e grandes, que não estão registadas e que não pagam imposto. Desde o vendedor de heroína e o traficante até, esse já legal, ao canalizador que não passa recibo na obra que faz na sua casa. Isso é a economia paralela. Economia sombra é outra coisa. É um conceito que foi definido há uns anos, aliás, por um grande operador da economia sombra, o presidente da Pimco, que é uma das maiores empresas mundiais nesta área, uma das maiores agências financeiras que tem algum investimento em Portugal, e que se referiu, numa reunião de banqueiros centrais e de outros banqueiros, à sopa de letras das agências financeiras, títulos e fundos e que se refere à atividade de intermediação financeira que não é regulada pelos bancos centrais.

Ou seja, não é o banco comercial normal onde tem o seu depósito e onde pede o empréstimo para a sua casa, porque esse sistema bancário tem uma forte regulação sobre o tipo de produtos que pode e não pode operar, com a contrapartida que os depósitos são garantidos, até a um certo montante – 100 mil euros. No sistema sombra não há nem garantia de depósitos nem regulação financeira. E, portanto, os bancos centrais e as operadoras dos mercados de bolsas não determinam que produtos são legais. O que quer dizer que as taxas de lucro são muito maiores, o risco é muito maior também. Mas o que é certo é que, nas vésperas da crise do subprime, no verão de 2007, o nível de intermediação financeira na economia sombra já era cerca de dois terços do PIB das economias de referência. E em alguns países era muito superior ao total do crédito concedido no setor da banca comercial.

De que forma se relacionam estas duas bancas – a comercial e a sombra?

Há uma ligação muito próxima entre a banca sombra e a banca comercial. A banca sombra são fundos financeiros, empresas, agências, veículos, criados pela banca comercial. Isso é a banca sombra. Nós no livro estendemos o conceito à economia sombra para dar a dimensão global de tudo o que representa o processo de desregulação.

Como é que se chegou até aqui, a tal nível de desregulação?

Chegou-se até aqui por um processo combinado entre o poder político e o poder financeiro. Os grandes bancos precisavam dessas margens de rentabilidade para alavancar os seus negócios e para conseguir um lucro maior. Voltou a surgir nos anos após a crise. Na verdade, hoje, a banca sombra já é maior do que a que era na crise do subprime. Foi uma corrida aos depósitos na banca sombra nos mercados financeiros, nos monetários em particular. Mas, hoje, já voltou a ser maior, porque sendo as taxas de juro baixas, o incentivo é muito grande para ir à busca de operações aventureiras e para movimentos de capital de grande risco para obter taxas maiores.

Chegou-se [aqui] por essa vantagem financeira, conjugada com uma visão política e ideológica que é a de Margaret Thatcher e de Ronald Reagan, desde 1980. Ou seja, a ideia de que o mercado financeiro não deve ser regulado, que deve ser autoregulado. Alan Greenspan, que foi presidente da Reserva Federal dos EUA durante 19 anos, até à véspera da crise do subprime, e que foi o grande promotor deste processo de desregulação e estendeu isto a todos os países da Europa e da América do Norte, dizia que ficou muito surpreendido por ter descoberto que os banqueiros não colaboravam entre si para ser prudentes, mas colaboravam entre si para serem imprudentes. E o resultado foi a crise do subprime.

Notícias ao MinutoFrancisco Louçã© Blas Manuel/Notícias ao Minuto

Tendo sido a economia sombra a responsável pela crise, não deveríamos ter aprendido que o caminho que se está a trilhar nos levará a outra crise?

Certamente. As primeiras respostas à crise do subprime foram respostas de prudência, de reforçar a regulação. Avançou o processo de Basileia III, o acordo que envolve as principais economias mundiais, e discutiu-se muito na UE uma nova forma de regulação. Houve várias hipóteses que foram sendo discutidas. O contexto era que os produtos derivados de outro tipo de títulos financeiros tinham de seguir algumas regras, ou de negociação em plataformas identificáveis ou de, tal modo que, o fluxo financeiro de operações de curto prazo fosse criada alguma inércia para que pudesse ser verificado, ou que pudesse haver, em caso de desespero, algumas formas de controlo de movimentos internacionais de capital. Até o FMI chegou a discutir esse processo. Bem, finalmente houve uma discussão sobre a reestruturação das dívidas na Assembleia Geral das Nações Unidas. E no caso de Portugal, Grécia, Espanha, e até mesmo no caso de Itália houve várias discussões a vários níveis que procuravam formas de reorganização do sistema financeiro para evitar a desordem. Esse processo, que é de 2010 a 2014, está agora em franca regressão.

E porquê?

Por causa de Donald Trump. Propôs-se acabar com a lei de Dodd Frank [lei que implementava alguma regulação]. Vamos ver o que é que fará. Mas a escolha que faz para secretário do Tesouro é uma escolha muito agressiva. É um homem que vem do Goldman Sachs, de sucessivas operações financeiras. Pode ser o porta-voz da ideia de que é preciso voltar aos tempos de ouro de desregulação, que já nos provocou a crise de 2007 e que nos provocará outra crise a seguir.

O euro é uma moeda estruturalmente construída para amplificar crises e não para as absorverÉ dos EUA que vem então o maior risco?

Não só. Dos EUA vem o risco político – Donald Trump, vem o risco económico – a subida das taxas de juro, vem o risco financeiro – a desregulação. Da Europa vem outro risco que é a crise do euro. É uma moeda estruturalmente construída para amplificar crises e não para as absorver, porque a única resposta que tem, quando há uma crise, é a austeridade. A austeridade é o corte nos rendimentos das pessoas, ou seja, mais crise e mais desemprego.

Já está visto que não funciona a austeridade.

Está visto que não funciona mas esse é um mecanismo que está embutido dentro do euro e será sempre relançado quando houver novos sinais de crise. Além disso, a Europa tem uma bolha especulativa também, em alguns casos, bolha imobiliária, mas sobretudo especulativa.

O problema vem também da China, país que tem uma enorme bolha imobiliária. O governador do banco central chinês, que terminou o mandato de 15 anos e sai agora em dezembro, fez um discurso muito surpreendente dizendo que a China, e o mundo, podia estar a aproximar-se de um momento ‘Minsky’. Minsky era um economista que detetou os grandes colapsos financeiros. Passou a chamar-se momento ‘Minsky’ ao momento de contaminação que torna tóxicos um conjunto de produtos financeiros e desaba sucessivamente todo o castelo de cartas. Portanto, o risco é na China, na Europa e é nos EUA.

Para setores financeiros, esta economia é a melhor de todas porque dá um enorme poder político na sombraEsta economia sombra, ela nunca deixará de existir?

Ela é vantajosa para os capitais que absorvem e destroem outros capitais. Para o capitalismo, no seu conjunto, é um factor de instabilidade. Mas o capitalismo é precisamente isso: crises sucessivas através da destruição de capital e de emprego. O mundo sofre sucessivas crises cíclicas em função disso, crises marcantes e destruidoras. Para setores financeiros, setores rentistas, que vivem de rendas absorvidas pelos favores do Estado ou sobre impostos futuros ou presentes, esta economia é a melhor de todas porque dá um enorme poder político na sombra. Ninguém reconhece os credores. Quando nos dizem num Orçamento que vai haver “um enorme aumento de impostos”, no governo PSD/CDS, que é preciso reduzir as pensões e aumentar as pensões. - “Quem mandou?”; - “Mandaram estes?” - “Mas porquê?” - "Porque outros mandaram".

Há uma diluição da imagem do poder de decisão que torna mais fácil aos agentes locais imporem porque foram obrigados e mais difícil à população poder controlar. Porque não vê a quem se está a dirigir. Ninguém está a ver como pode vencer, eleitoralmente, a Goldman Sachs, ou o City Group, ou a Pimco, ou outras organizações deste tipo. Porque estas empresas são como aquelas naturezas infinitas de Pascal, estão em todo o lado e não estão em lado nenhum.

De que forma é que a economia sombra está intimamente relacionada com a política? No caso de Portugal em concreto?

No livro exploramos muito essa ligação. A ‘porta giratória’, por um lado, que é a relação como governantes passam para empresas ou de empresas para o governo e depois novamente para empresas. Isso em Portugal tem um papel importantíssimo no mercado financeiro, nas Parcerias Público Privadas, no PSI20, nas privatizações. Noutros países, isso é um bocadinho diferente, porque têm estruturas políticas mais antigas do que a portuguesa. 

Estudamos também [no livro] como é que as principais universidades americanas – chamamos a isso a americanização do ensino da economia – foram formando algumas equipas no México, na Argentina, no Chile, e em alguns outros casos também (no caso português quando vemos que universidades estiveram envolvidas na preparação do programa da troika). Como é que esse processo permitiu ir selecionando o pessoal dirigente, que é pessoal político mas que são também os banqueiros centrais, e fazendo a convergência aos principais partidos, que se tornam muito próximos da visão das estruturas financeiras ao longo do tempo.

O trabalhador é visto como aquela pessoa que pode ser explorada no seu trabalho, ou seja, produz mais do que o seu salário lhe paga

Qual a dimensão da economia sombra no nosso país?

É grande. Olhe para a privatização dos CTT, olhe para o Novo Banco, a Lone Star, que é uma empresa do setor imobiliário e se lança para o setor financeiro, a EDP, a EDP Renováveis, é o capital do Estado chinês que faz esse tipo de operações. São grandes movimentos de carteira. Chamam-se investimentos mas não são investimentos porque não criam nenhum posto de trabalho, não criam nenhuma máquina nova, nenhuma alteração da estrutura produtiva. Simplesmente compram capacidade produtiva e capacidade financeira que já existia. Portugal é um país periférico, neste contexto, mas que é visto pelos capitais chineses e angolanos como uma porta de entrada na Europa e é visto por outros como meras operações rentistas que é o caso da Vinci nos aeroportos e da Lone Star no Novo Banco.

Não é errado afirmar-se que houve quem muito lucrasse com a crise e que os Estados muito para isso contribuem?

Sim. As crises são formas de redistribuição de rendimento Há uma destruição importante de capital, os bancos foram à falência. O BES faliu, o quarto banco russo acabou de ser nacionalizado porque estava a falir, o Banco Popular, que era o quarto banco de Espanha, foi vendido por um euro. Há enormes perdas de acionistas, donos de empresas, donos do setor financeiro.

Há outros que lucram muito em função da sua capacidade de acumulação, por razões políticas ou de poder económico, de fluxos futuros de rendas que sejam garantidas. E isso mudou a estrutura da economia, desse ponto de vista. E mudou também a relação entre o capital e o trabalho. O trabalhador é visto como aquela pessoa que pode ser explorada no seu trabalho, ou seja, produz mais do que o seu salário lhe paga. Mas também porque, ao receber o salário, é contribuinte e paga impostos, e uma parte desses impostos vai ser garantida para estas empresas.

Os principais prejudicados são sempre os contribuintes que nada têm a ver com essas operações de risco.

Sim, e os desempregados, e os trabalhadores precários, e os jovens que trabalham por 600/700 euros. Essa reformatação do contrato social e da vida social é muito poderoso desse ponto de vista.

É possível prever quando é que rebentará uma nova crise?

Não. Não é possível dar uma data para as crises. No caso de 2007, a crise apareceu no final do verão, mas em março já tinha dado alguns sinais. Havia uma enorme volatilidade. Hoje, dezembro de 2017, temos a Stand & Poor's 500, uma das principais empresas na bolsa americana, que está a um nível superior do que estava antes da crise de 2007, sendo que a produção é menor. Há uma inflação bolsista, há uma bolha especulativa. E se virmos o indicador ajustado dos preços e dos resultados, ao longo de todo o século passado, só em dois momentos da história esteve com níveis comparados aos que tem hoje: na crise de 29 e na crise especulativa do .com, de 2000/2001, uma crise causada pela bolha especulativa das empresas de informática. Em 120 anos, só em dois momentos este índice esteve a este nível.

E o que é que isso quer dizer?

Quer dizer que investir na bolsa é caríssimo. Comprar o direito a ter um dividendo sobre um fluxo futuro de lucros é muito caro porque a bolsa está hipervalorizada. Quer dizer que o dinheiro que está disponível das poupanças vai para a bolsa, não vai para investir, não vai criar emprego.

É o caminho para uma nova crise.

O que acontece é uma bolha especulativa e é inevitável: ela rebentará. Uma parte deste valor desaparecerá.

Havendo um acordo com o Governo que depois dá o dito por não dito, isso é um ato de deslealdade. E isso é grave

Falando agora da política nacional. O Orçamento do Estado foi aprovado, mas não sem um “arrufo” entre PS e Bloco de Esquerda, no caso das rendas das renováveis. Tem razão Mariana Mortágua ao acusar o Governo de deslealdade? O próprio Louçã previu que iria ser polémico.

Sim, com certeza, polémico seria sempre. Havendo um acordo, a polémica seria com os que perderiam parte das suas rendas. As empresas ficariam ainda com uma parte importante, mas perderiam 250 milhões e os consumidores ganhariam. Agora, havendo um acordo com o Governo que depois dá o dito por não dito, isso é um ato de deslealdade, e isso é grave, um acordo político baseia-se na confiança. Se há um acordo estabelecido, tem de se ter a certeza de que no dia seguinte não há uma rasteira, não há um recuo. Mas o que passou passou.

O importante é que o Orçamento é um bom progresso: a redução do IRS para as famílias é muito importante, o descongelamento das carreiras e o aumento de muitas pensões, é muito importante, a melhoria da perspetiva de investimento, o esforço para o médico de família, o aumento dos abonos de família para as crianças, a redução do número de alunos por turma. Enfim, muitas medidas para que Portugal continue na sua trajetória de alívio e confiança. É muito importante que este Orçamento tenha sido aprovado, e eu estou muito satisfeito por isso.

E o que é que ficou a faltar?

O caso das rendas excessivas das energéticas.

O Governo justificou a sua posição com motivos de “litigância judicial”.

Isso tinha de se ter lembrado disso antes. É evidente que quem perde pode sempre fazer uma litigância. Mas qual é a base para uma empresa dizer que no setor das energias todos pagam uma contribuição extraordinária, menos as renováveis? Que, aliás, são as mais amortizadas de todas. Numa eólica não é preciso ter lá uma pessoa a trabalhar. Ao fim de uns anos, a eólica pagou o investimento e fica sempre a render. Ou seja, é das que tem maior lucro e uma renda muito grande. Porque é que uma empresa pode dizer que a mesma cobra menos em Espanha do que cobra em Portugal, e que tem o direito a cobrar mais do que paga em Espanha, nas mesmas condições tecnológicas? Isso é muito frágil do ponto de vista jurídico.

Foram cortados os salários e as pensões, mas a parte da rendas ficou esquecida nalguma gaveta do PSD e do CDS

Mariana Mortágua disse que o Governo “recuou onde os interesses falam mais alto”.

Sim. Os interesses dessas empresas que falaram. As energéticas são empresas do Partido Comunista chinês, a China tem muito peso, marcou o seu terreno e o Governo recuou. Ou [o Governo] fez um acordo sem ter preparado as condições para o fazer, então não se percebe porquê, ou fez um acordo e voltou atrás. Mas este é um debate político que ocorre já há muito tempo na sociedade portuguesa, sobre as rendas excessivas. Até os funcionários da troika, que são certamente dos maiores defensores das rendas e do lucro, ficaram um bocado envergonhados quando chegaram a Portugal e perceberam o nível das rendas da energia. No programa da troika até estava proposto que as empresas tivessem um pouco de vergonha, um pouco de cuidado, para não abusarem tanto das rendas. Nunca foi cumprido. Foram cortados os salários e as pensões, mas a parte das rendas ficou esquecida nalguma gaveta do PSD e do CDS.

Esta questão fragilizou a Geringonça?

Acho que é um episódio negativo. O Governo agora tem de restabelecer canais e formas de trabalhar. Os partidos têm de fazer um trabalho muito sério, muito profundo. São matérias que não se discutem de um dia para o outro, é preciso levar anos, meses, semanas, trabalhar intensamente sobre o cálculo das medidas, sobre como elas se realizam. Foi isso que foi feito. Essa negociação fracassou. Espero que haja essa vontade de aprender a lição de que tem de se trabalhar com muito cuidado e com muita segurança.

 É preciso olhar para o dossier da saúde e das regras do trabalho da contratação coletiva

Que outras medidas, além desta das rendas, deveriam ter sido incluídas neste Orçamento?

Não digo neste Orçamento, mas nestes dois anos [que faltam] é preciso olhar para outros dossiers. É preciso olhar para o dossier da saúde e das regras do trabalho da contratação coletiva. Não podemos continuar a ter estas regras de contratação de salários baixa, é preciso que haja contratos coletivos que sejam ponderados, mobilizadores da competência das pessoas. E é preciso que o sistema de saúde deixe de ter este subfinanciamento crónico, que é destruidor, que ele possa recuperar a sua qualificação dos profissionais, a boa relação com os utentes, a tecnologia adequada, o financiamento preparado. E é um esforço muito grande que a sociedade deve fazer para garantir uma saúde para quem precisa. E a democracia é isso mesmo. Nestes dois pontos é preciso muito trabalho.

É preciso também recolocar o problema da reestruturação da dívida, porque os juros vão subir. Agora estamos bem porque os juros estão baixos, e as emissões, sobretudo a curto prazo, têm juros baixos, e isso beneficiou o Governo, o Estado, e a nós contribuintes também. Mas, vamos voltar atrás, os juros vão subir.

Considera que deviam ser feitos novos acordos entre o PS e os partidos que o sustentam?

O acordo está em vigor e determina as formas de evolução e o que se deve fazer, é preciso cumpri-lo.

Como é que perspetiva o final desta legislatura no que diz respeito à relação entre os vários partidos? E que papel terá o Presidente da República nesse contexto?

É muito difícil antecipar o que se vai passar daqui a dois anos. Vai haver eleições europeias, antes das legislativas. Ninguém faz a mínima ideia de como estará a Europa daqui a pouco mais de um ano e meio. Haverá orçamento europeu, não haverá? Macron conseguirá impor alguma das suas propostas? É provável que não. Quem é que será governo na Alemanha? Ninguém sabe. A incerteza é muito grande. Haverá nova crise de refugiados? Haverá desagregação de regimes? Quem vai governar Itália? Quem pode saber? Repare, há um ano Hillary Clinton ia ganhar as eleições, o Cameron ia ganhar o referendo, o Renzi ia ganhar o referendo, ia tudo correr bem, e tudo o que podia correr mal, correu mal. Fazer antecipações sobre o que se passa em dois anos… Prefiro concentrar-me noutra coisa: como é que se tem de trabalhar em dois anos.

E como é ?

Tem de se trabalhar com muito rigor, com muita preocupação, com muita atenção às contas públicas, com muita prioridade ao investimento, à criação de emprego. Com muita vontade de transformar os contratos coletivos, com muita vontade de restabelecer o serviço de saúde, e de melhorar os níveis de competência e de capacidade da economia portuguesa.

Como viu a decisão do Governo de transferir o Infarmed de Lisboa para o Porto?

Não se tomam decisões à última da hora. Não tem fundamento suficiente. É bom pensar sobre programas de descentralização, é bom perceber que o Porto tem capacidade para receber e instalar organismos de topo da Função Pública. Agora, foi tomada por uma decisão estranha, pressionada pelo PS Porto, apoiada pela Câmara do Porto.

Terá sido, como se tem dito, uma compensação pelo facto de o Porto não ter conseguido a Agência Europeia do Medicamento?

Porventura. Essa é uma interpretação possível, mas o que é facto é que não tem nenhum sentido desfazer os laboratórios que foram construídos para a capacidade do Infarmed para o colocar no Porto e pedir a quase 400 famílias que mudem a sua vida e que vão comprar uma casa no Porto e que vão vender as casas que têm em Lisboa. Não tem nenhum sentido esse tipo de operação.

As entidades patronais acomodaram-se à ideia de que podem contratar uma engenheira por 600 euros. E isso não pode ser, é destruidor de Portugal

De uma polémica para outra. O Governo assinalou dois anos com uma sessão de perguntas e respostas na Universidade de Aveiro em que os participantes, integrados num estudo de opinião, foram pagos. É justa a crítica de encenação da parte da Direita?

Não. Acho que não tem importância nenhuma essa polémica. São tiros de pólvora seca. O Governo fez uma cerimónia desse tipo há um ano. Não notaram, não houve nenhuma questão. Que se contrate uma empresa de sondagens para se fazer a seleção das pessoas, acho isso tudo normal. Se o preço é excessivo, não sei. Que o Governo faça um debate, uma sessão em que o primeiro-ministro se submete a perguntas, parece-me a coisa mais normal do mundo.

Em que situações antevê que haja maior fricção entre PS, Bloco e PCP nos próximos dois anos?

Acho que ninguém deve procurar fricções, porque o país não tem muita paciência para crises artificiais. Acho que há questões que, por si só, dão tanto trabalho, que são difíceis, que criar fricções não é muito vantajoso. A questão da contratação coletiva vai ser muito complicada. As entidades patronais acomodaram-se à ideia de que podem contratar uma engenheira por 600 euros. E, portanto, querem manter essa situação. E isso não pode ser, é destruidor de Portugal. Significa que muitas pessoas qualificadas vão emigrar, significa que não há trabalho produtivo, significa que as pessoas vivem mal, significa que o mercado interno é pequeno. Tem todos os erros possíveis. Vai haver resistências e pressões grandes. Acho que é melhor concentrarem-se em como resolver esses problemas do que em questões de agenda política e mediática.

Louçã ministro das Finanças? Isso logo se vê. Mas não há nenhuma razão para fazer, em dezembro de 2017, qualquer plano que não seja passar o Natal com a família 

Sobre si. É disparatado pensar-se que o podemos ver um dia como ministro das Finanças?

[Risos] Há eleições daqui a dois anos, quem sabe o que vai ser esse Governo. Isso logo se vê, mas, como sabe, não tenho responsabilidades políticas na direção do Bloco. É o meu partido, que gosto muito. Aprecio imenso o que a Catarina Martins, a Mariana Mortágua, Marisa Matias, e outras pessoas, têm feito. São equipas excelentes, de gente muito capaz. As substituições nas direções fazem-se assim, as pessoas fazem o seu caminho e eu darei sempre o meu melhor contributo. Mas não há nenhuma razão para fazer, em dezembro de 2017, qualquer plano que não seja passar o Natal com a família [risos].

E se fosse ministro das Finanças, pedia conselhos ao seu primo [Vítor Gaspar]?

Não, mas eu não sou ministro das Finanças.

E Presidente da República? Não lhe passa pela cabeça?

Não. O Presidente da República começou agora o seu mandato. Deixem-no continuar com a sua exuberância e alegria os outros anos de mandato [risos].

O Francisco Louçã passou pela experiência de, aos 16 anos, ser preso. Conte-me essa história.

Estava na capela do Rato onde havia uma assembleia organizada pelos católicos daquela capela em que eu estava por solidariedade – não sou católico -, tinha muitos amigos ali. Havia uma ação contra a guerra e eu achava que a luta era muito importante devido ao desastre humano que esta representava para Portugal e para as colónias. Estive ali e depois fui preso e levado para Caxias. Fomos 16 ao todo. Um tempo mais tarde saí sob fiança.

Quanto tempo mais tarde?

Foram poucos dias. Uma semana. Houve gente que ficou meses. Mas eu tinha acabado de fazer 16 anos, não tinha grande sentido. Foi uma experiência que mostrou bem como era a ditadura e o seu descontrolo nos últimos anos, isto foi em 1972. 

Já tinha uma consciência política forte nessa altura?

Sim, como muitos jovens da minha geração. Não acho sequer que tenha sido um caso isolado e excecional. Os jovens sabiam que aos 18 anos teriam de ir para o Exército e, um pouco mais tarde se fossem para a universidade que seria o meu caso, teriam de passar pela experiência da guerra. E isso é uma coisa traumatizante, brutalíssima, violentíssima. A guerra estava a ser perdida, o governo português devia ter-se desfeito muito antes do seu Império e reconhecido o direito da auto-determinação. Tudo aquilo era absurdo, assustador e miserável. Além de que uma ditadura suscita vontade de combate dos jovens, pela democracia, pela cultura, por si próprios e por todos os outros.

Notícias ao MinutoFrancisco Louçã © Blas Manuel/Notícias ao Minuto

Daí até à formação do Bloco passam-se uns valentes anos. O partido, que nasceu com o propósito de unir, de criar um projeto comum, ressentiu-se muito com a saída, sobretudo, de Daniel Oliveira e de Ana Drago?

São pessoas que seguiram o seu caminho, tenho pena. Depois fizeram uma alternativa política, foi um partido [o Livre] que teve 0,7% nas eleições. Fizeram o seu caminho, é muito legítimo o que escolheram. Acharam que era possível fazer um partido alternativo, entenderam depois que fracassou, tudo isso é muito honesto e muito normal na política. Acho que é preciso correr riscos, é preciso lutar. Acho que foi um erro, são pessoas com grandes capacidades e muito inteligentes, que fazem sempre falta à reflexão política. Mas pronto, seguiram o seu caminho.

Foi considerado, na altura, como aliás ainda o é, que estas saídas aconteceram num contexto de aproximação ao PS…

Sim, mas não vou agora castigá-los com críticas porque, com franqueza, não vale muito a pena. Têm o seu papel, espero que continuem sempre a dizer o que pensam, acho que isso é muito importante.

Por outro lado, o próprio Bloco de Esquerda está hoje mais próximo do PS com esta solução governativa.

Não. O Bloco fez um acordo para evitar que a Direita estivesse no poder.

Alguma vez imaginou uma solução governativa como a que temos?

Era muito difícil de imaginar. O PS nunca quis fazer um acordo com a Esquerda. A Esquerda também nunca se viu nesse papel. E a circunstância única do PS ter que o fazer, e da Esquerda ter que o fazer para evitar que a Direita continuasse, depois de quatro anos de desastre, ajudou a tomar decisões pragmáticas.

Mas não há uma proximidade entre o Bloco de Esquerda, o PCP e o PS. São partidos muito diferentes, têm um acordo de medidas, e ainda bem que foi explícito, detalhado, para poder prosseguir com os seus impactos na sociedade portuguesa. Acho que o Bloco fez muito bem em fazer esse acordo. Foi corajoso, foi determinado, tem provado uma grande capacidade de trabalho, uma grande seriedade e consistência. Tem provado que se pode governar de outra forma e que, em Portugal, pode haver alternativas à Esquerda que conduzam o país para uma sociedade democrática e que pode responder às suas dificuldades.

Nós não temos boas memórias do Eurogrupo

Era desejável que os três partidos fossem coligados nas próximas eleições legislativas?

Não, isso não acontecerá. Acho que nenhum dos três partidos põe sequer essa possibilidade. Uma coligação significaria uma grande aproximação política e isso não existe. Há possibilidade de fazer acordos, de trabalhar sobre acordos, mas isso é diferente de se unirem numa mesma figura política. Isso não acontecerá nas próximas eleições. Nenhum partido tem vontade que isso aconteça. As próximas eleições ditarão depois qual é a relação de forças, qual é o caminho que Portugal quer seguir, e espero que nesse contexto, os partidos saibam falar e escolher as melhores soluções.

Como é que olha para o Bloco de hoje? Vê Catarina Martins como primeira-ministra?

A Catarina Martins tem um papel extraordinário. E Mariana Mortágua, e outras pessoas. Marcaram imenso a subida do Bloco e a sua capacidade técnica, de trabalho, e de comunicação, é formidável. Mas o Bloco tem 10%, não está próximo de ser governo ou de indicar a Catarina como primeira-ministra. Isso não está em cima da mesa. O que está em cima da mesa é se consegue melhorar muito a relação de forças para ser determinante na política que ocorra a partir de agora. Acho que o pode fazer e ela tem um papel importantíssimo nisso.

Mário Centeno apresentou a candidatura a presidente do Eurogrupo [que venceu já depois desta entrevista]. De que forma ter o ministro das Finanças nesse cargo é bom para o país?

É muito arriscado saber. É uma decisão do Governo. Não é uma decisão dos seus parceiros, creio que nem foram consultados sobre isso. O Eurogrupo é basicamente um sistema disciplinar para impor austeridade. Foi assim que foi nos últimos anos. Não está muito claro o que vai ser o Eurogrupo a partir de agora. Não há governo na Alemanha, a União Europeia está pressionada pelo balanço negativo das políticas de austeridade, mas é muito forçado a retomá-las se houver uma mudança de ciclo. Que papel vai ter o Eurogrupo, se será um anti-Schauble ou se será uma nova política é uma grande incerteza. E o papel deste organismo é muito indefinido estaturiamente. Não tem estatuto legal. Aliás, tem muito poder com nenhum estatuto legal, é muito ambíguo. E teve um papel terrível na destruição da Grécia e na forma como prejudicou Portugal. Nós não temos boas memórias do Eurogrupo. E pensar que possa fazer alguma coisa sequer parecido em relação a algum país, isso é uma ameaça que já não é só para esse país mas também para Portugal.

Tendo Portugal sofrido na pele o resultado dessas medidas de austeridade poderá contribuir para uma mudança de política?

Espero que sim. Mas resta saber o que é que esta organização vai ser e o que vai querer.

Para terminar, fazem falta em Portugal mais empresários como Belmiro de Azevedo?

Faz falta emprego e capacidade de investimento. Ele investiu, fez uma escolha que é estrategicamente fácil: passar da produção para a distribuição. É evidente que é preciso grandes empresas de distribuição, mas Portugal precisa de produção, não é só de quem venda em hipermercados e centros comerciais. Precisa de produzir coisas para que não se venda só o que é importado. Precisamos de capacidade tecnológica e de saber fazer as coisas, e nisso o Belmiro de Azevedo foi um grande empresário que tomou decisões a favor de si próprio.

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