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"Incêndios são uma calamidade. À ministra não restava outra opção"

O constitucionalista Jorge Miranda é o entrevistado de hoje do Vozes ao Minuto.

"Incêndios são uma calamidade. À ministra não restava outra opção"
Notícias ao Minuto

18/10/17 por Notícias Ao Minuto

País Jorge Miranda

Reconhecido pelos pares e aplaudido pela comunidade de ciências jurídicas, Jorge Miranda é um dos mais distintos constitucionalistas portugueses.

Detentor de um conhecimento ímpar neste domínio, o jurisconsulto português é professor catedrático jubilado da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, onde continua a ministrar aulas nos cursos de mestrado e de doutoramento.

Ao longo do seu percurso profissional, teve oportunidade de assumir cargos de relevo no panorama jurídico, nomeadamente o de membro da Comissão Constitucional, um órgão precursor do atual Tribunal Constitucional.

Um dos maiores contributos de Jorge Miranda para o ordenamento jurídico português terá sido, com efeito, o facto de ter assumido um papel de destaque na elaboração da Constituição da República Portuguesa de 1976. A sua colaboração, aliás, viria mais tarde a estender-se à redação dos textos das constituições de São Tomé e Príncipe, de Moçambique, da Guiné-Bissau e de Timor-Leste.

Numa altura em que o país se vê imerso numa situação de “calamidade pública” devido aos incêndios e as figuras proeminentes do Governo advogam a necessidade de reformas, o Notícias ao Minuto falou com o constitucionalista. Uma conversa que não passou ainda à margem da análise da situação da Catalunha.

O país reviveu neste fim de semana o 'pesadelo' de Pedrógão Grande. Faltam no ordenamento jurídico medidas com vista à prevenção da calamidade? 

A situação da seca severa em que Portugal se vê imerso é uma verdadeira calamidade. Trata-se de uma catástrofe natural que está ligada a fenómenos meteorológicos e a alterações climatéricas sem comparação. No final de agosto, 60% do território nacional estava em seca extrema e não me recordo de existir uma época sem chuva como a que estamos a passar este ano.

Além da falta de precipitação, as temperaturas que rondam os 30º desde junho têm consequências terríveis na agricultura, na pecuária, nos recursos hídricos disponíveis e, de uma forma geral, na qualidade de vida da população.

Perante esta situação, que provavelmente irá repetir-se em anos próximos, deveria haver medidas governamentais e administrativas para prevenir e obviar o problema. Por exemplo, considero que uma das soluções deveria passar pela criação de centrais salinizadoras que nos permitiriam aproveitar a água do mar. Cabo Verde e os Emirados Árabes Unidos  vivem assim.

Para lá disso, faltam a Portugal medidas legislativas e do ordenamento do território para evitar o alastramento de incêndios como os que aconteceram em Pedrógão Grande e mais recentemente este fim de semana.

Há muitos anos que ouço falar de reformas em Portugal e acaba sempre por se cair na inérciaO primeiro-ministro, no seu discurso na sequência da vaga de incêndios, anunciou uma série de reformas que prevê que entrem em vigor já no próximo ano, nomeadamente na Proteção Civil…

O caminho do país passa, necessariamente, pela reforma. Mas há muitos anos que ouço falar de reformas em Portugal e acaba sempre por se cair na inércia. Surgem novos problemas e as situações repetem-se. Espero, sinceramente, que não aconteça o mesmo desta vez. Além da calamidade natural, estes incêndios são uma tragédia humana horrorosa.

E ainda mais preocupante quando o relatório sobre Pedrógrão fala numa série de erros como a tardia reação ao agravamento do incêndio, as sistemáticas falhas nas redes de comunicação e a indisponibilidade de meios complementares devido à falta de planeamento. Por isso, defendo que deve haver uma investigação científica e interdisciplinar para estudar estes fenómenos. Não sou especialista na matéria, mas percebo claramente que devem ser adotadas medidas legislativas.

Acho que era muito difícil Constança Urbano de Sousa permanecer no cargo. Não lhe restava outra opção se não a demissãoA ministra da Administração Interna, Constança Urbano de Sousa, acabou de se demitir. Era uma consequência inevitável?

Acho que era muito difícil ela permanecer no cargo, principalmente se for verdade aquilo que tenho ouvido dizer que, no início de outubro, teriam sido reduzidos os meios de prevenção de incêndios. Se isso efetivamente aconteceu, tendo sido por decisão do ministério da Administração Interna, não lhe restava outra opção se não a demissão.

Notícias ao MinutoJorge Miranda© Blas Manuel

A violação dos perímetros de segurança dos paióis nacionais de Tancos, e o consequente desaparecimento de material de guerra - que foi recuperado hoje -, tem marcado a atualidade nacional. Muito se pediu uma tomada da posição do Governo.

O que se passou em Tancos foi claramente um furto de armas, mas não vejo que nessa situação o ministro da Defesa devesse ter tido qualquer intervenção, nem positiva nem negativa. Neste caso, a responsabilidade, a ser apurada, será do exército, nomeadamente dos responsáveis locais pela guarda do armamento.

Quanto ao Governo, que tem alegado a separação de poderes para não comentar a situação, não vejo que posição é que poderia tomar. Já não foi a primeira vez que houve furto de armas em aquartelamentos militares.

Considero inadmissível que juízes, enquanto titulares de órgãos públicos, possam fazer greveOs juízes portugueses manifestaram recentemente a intenção de fazerem greve no início de outubro, que viria depois a ser desconvocada. Em causa estavam questões salariais. Esta classe profissional tem direito a greve?

Os tribunais são órgãos de soberania, a par do Presidente da República, da Assembleia da República e do Governo e compete-lhes, por isso, administrar a justiça em nome do povo. São órgãos independentes e estão apenas sujeitos à lei. Por isso, considero inadmissível que juízes, enquanto titulares de órgãos públicos, possam fazer greve. É um ato inconstitucional sem a menor sombra de dúvida.

Uma eventual greve contraria o estatuto profissional dos juízes como titulares de órgãos de soberania. Este estatuto implica quer deveres quer restrições de alguns direitos. Portanto, por mais razões que tenham, não podem fazer greve. Que me recorde, houve apenas uma greve do Governo na fase revolucionária anterior ao 25 de Novembro. Numa fase de normalidade institucional não conheço nenhum país onde tenha havido nada deste género. É inadmissível.

Uma greve dos juízes traria o risco de deslegitimar a tarefa essencial do Estado de administração da justiça e, desde logo, de deslegitimar os juízes perante a comunidade.

Claramente que uma separação da Catalunha não seria favorável a PortugalO líder separatista da Catalunha, Carles Puigdemont, tem sido o protagonista de uma série de acontecimentos em prol daquilo que defende ser “o desejo do povo catalão por independência". Enquanto constitucionalista, como avalia a situação?

Tenho muita simpatia pelo povo da Catalunha, mas não tenho simpatia pelo modo como tem sido conduzido o processo da independência, nomeadamente com algum radicalismo, fanatismo e com uma divisão muito grande da sociedade catalã. Por outro lado, também não concordo com o modo como o governo de Madrid reprimiu as manifestações no primeiro de outubro, apesar de o referendo ter sido declarado inconstitucional por colocar em causa a identidade e a unidade do Estado.

Como português prefiro o dualismo peninsular a haver vários estados na Península Ibérica. Deveria manter-se o panorama ibérico onde figuram apenas Portugal e Espanha e poderia equacionar-se que a língua catalã fosse reconhecida como idioma oficial da Espanha. Mas claramente que uma separação da Catalunha não seria favorável a Portugal.

Aliás, uma Catalunha independente, mediante uma declaração unilateral, nunca poderia ser aceite como membro da União Europeia.

Há reformas legislativas que devem ser feitas muito mais importantes do que qualquer revisão constitucional neste momentoA Constituição da República Portuguesa (CRP) tem 41 anos e já foi alvo de sete revisões. Continua a ser uma trave mestra da democracia política, económica, social e cultural?

A Constituição tem sido a base da Democracia portuguesa e pode dizer-se que hoje há um consenso essencial da Constituição. Mesmo aqueles que inicialmente eram contra a CRP hoje reconhecem que esta lei fundamental da nação, com a sua carta de direitos fundamentais, separação de poderes, justiça constitucional, autonomias regionais e municipais tem funcionado bem. Além disso, o semipresidencialismo português tem dado boas provas de funcionamento.

Não quer isto dizer que a Constituição não possa ser aperfeiçoada, mas, principalmente depois das revisões de 1982 e 1989, criou-se um grande consenso à volta da Constituição.

Não há nenhum problema que se ponha em Portugal neste momento que determine a revisão da lei fundamental do ordenamento jurídico. Há muitas reformas legislativas que devem ser feitas como as do ordenamento do território que são muito mais importantes do que qualquer revisão constitucional neste momento.

A Constituição da República de Cabo Verde assinalou 25 anos. Este é um bom exemplo do que a democracia deve ser?

Cabo Verde é um exemplo muito feliz de funcionamento da democracia, com grande estabilidade, normalidade, paz e liberdade. Este país insular tem efetivamente motivos para comemorar estes 25 anos de Constituição.

O grande problema que existe nessa Constituição é a efetivação dos direitos sociais. A Constituição é praticada no tocante às liberdades, às garantias, à alternância dos partidos no poder, às eleições livres, mas os direitos sociais precisam de ser efetivados, designadamente o direito à saúde, ao trabalho, à segurança social e à educação.

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