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"Ser-se contra a pílula do dia seguinte é promover o recurso ao aborto"

O Infarmed autorizou, há precisamente dez anos, a comercialização da pílula abortiva. O que mudou na última década? Há mitos que persistem? Para responder a estas perguntas entrevistámos António Filhó, presidente da Associação para o Planeamento da Família.

"Ser-se contra a pílula do dia seguinte é promover o recurso ao aborto"
Notícias ao Minuto

03/07/17 por Patrícia Martins Carvalho

País António Filhó

Numa década muita coisa muda. Desde há dez anos que as mulheres portugueses podem recorrer, de forma lícita, à pílula abortiva, que, sublinhe-se, não é a mesma coisa do que a pílula do dia seguinte.

Aliás, é precisamente sobre a contraceção de emergência que centrámos esta entrevista.

As pessoas, garante António Filhó, estão mais informadas sobre o tema da sexualidade o que as torna mais responsáveis. Aliás, frisa, irresponsabilidade é “não se pedir ajuda após uma relação sexual desprotegida” e acabar por engravidar.

Pese embora o acesso à informação que hoje em dia a larga franja da população portuguesa tem, a verdade é que ainda existem mitos relacionados com a contraceção de emergência que assombram a sociedade e provocam comportamentos preconceituosos.

Houve um trabalho de consciencialização das pessoas para aquilo que é a contraceção de emergência?

Houve e continua a haver, porque há mitos que ainda sobrevivem. Nós [associação] continuamos a desenvolver esse trabalho, tal como a DGS. As pessoas também se foram informando e nesse sentido as coisas melhoraram. Os próprios utentes, ao recorrerem à contraceção de emergência, obrigam os profissionais a adaptarem-se e a estudarem o assunto.

O que é que a contraceção de emergência veio alterar?

Veio ajudar a reduzir o número de gravidezes indesejadas e ao reduzir o número de gravidezes indesejadas reduz, indiretamente, o recurso à interrupção voluntária da gravidez. E isto é curioso porque as mesmas pessoas que são contra o recurso à contraceção de emergência se calhar podem não ter pensado nisto, mas ao fazê-lo estão a contribuir para a promoção do recurso ao aborto. E veio também adequar o discurso e as práticas dos médicos, enfermeiros e técnicos de farmácia.

Ser irresponsável é pensar 'isto não vai dar em nada' e engravidarA comercialização da contraceção de emergência veio consciencializar mais as pessoas?

Em certa forma o recurso à contraceção de emergência pode motivar as mulheres a iniciarem o uso de contraceção regular, seja a pílula diária ou outro método. Quando uma mulher recorre à contraceção de emergência é encaminhada – ou deveria ser – para consultas de planeamento familiar onde é aconselhada a iniciar uma contraceção regular.

Deveria ser encaminhada”. Ainda há preconceito quando uma mulher vai à farmácia pedir contraceção de emergência?

Neste momento tenho a perceção empírica que estamos muitíssimo melhor, pois não tenho tido notícias de pessoas que vão a farmácias e que lhes é recusada a venda. Mas antigamente não era assim.

As farmácias recusavam-se a vender a contraceção de emergência?

Sim, tenho conhecimento de vários casos antigos. Há oito anos desenvolvi um estudo que envolveu todas as farmácias que existiam no Algarve – eram 103. Destas, só uma é que fez aquilo que todas deveriam ter feito, isto é, o técnico explicou como é que se tomava a pílula do dia seguinte, aconselhou o planeamento familiar e os métodos contracetivos regulares e informou sobre os efeitos secundários. Só uma. Em 30% das farmácias foi vendida a pílula com prescrição médica obrigatória, o que era ilegal porque a rapariga que estava a realizar o estudo não apresentou qualquer prescrição médica e em 11% das farmácias os técnicos recusaram-se a vender a pílula.

Sob que justificação?

A justificação são valores morais, são mitos… É a pessoa achar que é abortivo e ser contra o aborto e portanto acha que não deve vender, é achar que é uma irresponsabilidade das pessoas pedirem contraceção de emergência…

E é uma irresponsabilidade?

Procurar ajuda é um ato de responsabilidade, não de irresponsabilidade. Uma adolescente que vai à farmácia é muitas vezes olhada por algumas pessoas como estando a ter um comportamento irresponsável. O que é irresponsável é uma jovem ter uma relação sexual desprotegida por algum motivo e não recorrer à contraceção de emergência e pensar ‘isto não vai dar em nada’. Isto é que é ser irresponsável.

Há um uso abusivo deste método de contraceção por parte dos jovens?

Não, isso é um mito, até porque sabemos que o uso da contraceção hormonal regular tem vindo a aumentar nos últimos dez anos. Por isso não há qualquer abuso.

O recurso à contraceção de emergência não tem aumentado nos últimos tempos, muito pelo contrárioO uso da contraceção de emergência tem aumentado ou diminuído?

Quando começou a ser vendida houve, de facto, um boom de pedidos de contraceção de emergência, mais do que seria expectável. Mas desde aí tem vindo sempre a decrescer. O recurso à contraceção de emergência não tem aumentado nos últimos tempos, muito pelo contrário.

Este decréscimo está relacionado, de alguma forma, com a legalização da pílula abortiva?

Não, de maneira nenhuma.

Então como se justifica este decréscimo?

Creio que se justifica com o encaminhamento das mulheres para as consultas de planeamento familiar onde são aconselhadas a usar um método contracetivo de forma regular, fazendo com que depois não se repita o uso da contraceção de emergência.

Estas consultas de planeamento familiar são eficazes?

A acessibilidade às consultas está definida por lei, mas se num determinado centro de saúde esta acessibilidade é mais rápida ou não, se os técnicos ultrapassam internamente alguns mitos e conceções erradas que existem sobre a contraceção de emergência… isto influencia a eficácia das consultas. Infelizmente, na área da contraceção de emergência existem muitos mitos e ideias erradas que resultam de valores e preconceitos que muitos resultam até de mensagens erradas que são transmitidas nas próprias licenciaturas dos cursos de Saúde. Coisas que cientificamente estão claramente comprovadas como falsas.

Que mitos são esses?

Por exemplo, o mito de que a pílula do dia seguinte é abortiva. Não é. O mito de que é uma bomba hormonal. Não é. O mito de que há uma utilização banalizada por parte dos jovens. Não há. O mito de que a sua utilização frequente faz mal à saúde. Não faz, todas as indicações médicas apontam para a ausência de contraindicações médicas relevantes. O mito de que substitui a contraceção regular. Não substitui. O mito dos efeitos secundários. Não tem efeitos relevantes.

O que podemos entender por ausência de efeitos secundários relevantes?

Em menos de 20% dos casos a pílula do dia seguinte causa náuseas. Em menos de 5% causa vómitos e este é o mais importante de todos porque se a pessoa vomita até duas, três horas depois da toma da pílula tem que a repetir. Em alguns casos há uma perda de sangue nos dias seguintes, uma pequeníssima percentagem sente tensão mamária, tonturas, dores de cabeça, dor abdominal e fadiga. A informação científica existente diz que todos estes efeitos secundários passam em um ou dois dias sem necessidade de intervenção médica ou medicamentosa para os colmatar. Não há informação de alguém que tenha tido problemas graves de saúde por causa da contraceção de emergência, não há casos de morte, não há casos de problemas de infertilidade...

A partir do momento em que o óvulo fecundado se fixou – a partir daqui é que se considera que uma mulher está grávida – a contraceção de emergência não funciona

E relativamente ao facto de se pensar que é uma pílula abortiva?

É preciso que se saiba, e não se sabe, que a pílula do dia seguinte não é uma pílula abortiva. A contraceção de emergência atua a três níveis, é uma espécie de paraquedas com três cordas para puxar. Em primeiro lugar impede a ovulação se ela não tiver ocorrido. Em segundo lugar, se já tiver ocorrido a ovulação, dificulta o processo de fecundação e, em terceiro lugar, se isso já tiver ocorrido atua impedindo a fixação do óvulo fecundado no útero. A partir do momento em que o óvulo fecundado se fixou – a partir daqui é que se considera que uma mulher está grávida – a contraceção de emergência não funciona.

Mas se a contraceção de emergência não acarreta riscos de maior gravidade, o que faz com que não seja uma substituta da pílula regular?

A contraceção de emergência não é profilática (preventiva) e a contraceção hormonal ou outro método contracetivo é profilático. Essa é a primeira razão. A razão mais importante de todas é a eficácia, porque na contraceção hormonal regular a taxa de eficácia é ao ano e na contraceção de emergência é à toma, logo não é tão eficaz.

A contraceção de emergência veio ajudar a evoluir o conceito de planeamento familiar em Portugal?

Creio que sim. Se os profissionais de saúde que atendem as mulheres, quer nos serviços clínicos, quer nas farmácias, tiverem o comportamento que está regulamentado e protocolado, explicando às pessoas o que a contraceção de emergência é, como funciona, a sua eficácia e encaminhando a mulher para a consulta de planeamento familiar, então aí a existência da contraceção de emergência ajuda mais mulheres a entrarem no circuito de uma contraceção mais pensada, mais planeada, mais adequada a cada situação.

A pílula do dia seguinte é um paraquedas com três cordasO planeamento familiar já não é apenas para controlo de nascimentos?

Não. Integra dimensões da saúde reprodutiva, da saúde sexual. Ajuda a prevenir gravidezes indesejadas, mas também trabalha ao nível do bem-estar sexual, da qualidade da relação, dos problemas sexuais que as pessoas têm. É preciso não esquecer que, desde meados do século XX, passámos de um modelo reprodutivo para um modelo erótico da sexualidade.

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