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"No dia em que acontecer uma tragédia talvez se mude de mentalidade"

Um ano após o lançamento do seu último livro, Rentes de Carvalho foi premiado pela escrita, ao mesmo tempo que condenado pela cor política. A confissão de que votaria na extrema-Direita gerou controvérsia, mas isso não o incomoda. O escritor mais transmontano da Holanda é o entrevistado de hoje do Vozes ao Minuto.

"No dia em que acontecer uma tragédia talvez se mude de mentalidade"
Notícias ao Minuto

05/04/17 por Carolina Rico

País Rentes de Carvalho

São tragédias ficcionais que inspiram os livros de José Rentes de Carvalho, mas é o que diz ser uma tragédia anunciada na Europa que ensombra o seu pensamento político.

O autor, de 87 anos, esteve à conversa com o Notícias ao Minuto sobre o seu voto na extrema-direita holandesa, as palavras de Dijsselbloem e, como não podia deixar de ser, sobre literatura.

Acaba de receber o prémio da Sociedade Portuguesa de Autores para o Melhor Livro de Ficção Narrativa com 'O Meças'. O que significa para si vencer este prémio?

É uma alegria, uma pequena alegria. Uma espécie de recompensa pelo trabalho feito.

'O Meças' foi o seu último romance. Já tem outro em mãos?

Não, e se tivesse não dizia. É bruxedo, sabe. Eu sou um bocadinho supersticioso e estou convencido de que não é bom estar a falar do futuro. Dá azar. É melhor falarmos do passado ou do presente. 

Apesar de não ter tantos livros vendidos em Portugal como na Holanda, onde é best seller, sente que continua a ser um autor aclamado no país?

Acho que sim. Não sei qual é o nível que uma pessoa precisa de atingir para a satisfação, mas sinto-me muito satisfeito. Antigamente não fazia coisa nenhuma em Portugal, agora há gente que me lê, é muito bom.

Malgrado eu estar fora de Portugal há 60 e tal anos, sinto-me extremamente portuguêsContinua a sentir-se um escritor português a viver na Holanda em vez de um escritor holandês de origem portuguesa?

Sempre o fui. Nunca escrevi em holandês, apenas na nossa língua e é isso que me satisfaz. É o meu país, a minha alma. Malgrado eu estar fora de Portugal há 60 e tal anos, sinto-me extremamente português. Não sei se é amor à terra. É uma coisa mais profunda, uma herança genética, não sei. Portugal e a Língua Portuguesa são muito importantes para mim.

Com cenário em Portugal, é geralmente sobre realidades duras que escreve. Ainda assim o amor está lá?

Eu escrevo sobre tragédias, realidades dolorosas, mas isso faz parte da vida. E a vida em Portugal tem uma componente trágica muito forte. Os portugueses são capazes de se sentir muito felizes no geral, mas na realidade individual somos um povo infeliz, tristonho. Andamos sempre à procura do sonho, de uma coisa que nunca chega. Temos uma tendência para a tragédia, para o desastre, para a tristeza. Mas isso é a nossa maneira de ser, não é boa nem má. É nossa.

A literatura alimenta-se melhor da tragédia do que da felicidade?

À exceção de um livro, nunca escrevi nada sobre o país onde vivo. Embora na Holanda haja crimes, paixões e dramas, não tem aquela componente trágica que nós temos, tristonha e violenta. São países mais sóbrios no pensamento. Para um escritor é muito melhor ser português do que holandês.

O homem foi infeliz na frase, mas ao fim ao cabo, estava a dizer em voz alta aquilo que pensa e aquilo que se pensaNão é o único na Holanda a ver tragédia nos portugueses. Concorda com o que disse Jeroen Dijsselbloem sobre os países do sul da Europa?

O homem foi infeliz na frase, mas ao fim ao cabo, estava a dizer em voz alta aquilo que pensa e aquilo que se pensa em geral na Holanda e na Alemanha sobre Portugal ou sobre a Grécia. É uma espécie de piscar de olho malicioso - ‘a gente manda para aí dinheiro e vocês em vez de fazer coisas boas são de festa’.

Votar na extrema-direita foi um desabafo

Foi também muito falado em Portugal o seu voto nas eleições legislativas na Holanda, para o candidato de extrema-Direita Geert Wilders.

Fui votar no Wilders pela primeira vez na minha vida e não sei se será a última. Não tenho problema com isso, não me incomodo com coisa nenhuma nem com as ideias de ninguém. Cada um é livre de pensar e votar como quer e não tem de dar satisfação de coisa nenhuma a ninguém. Podem não gostar, mas que me importa a a mim. Não é problema meu, é deles.

O que o levou a votar na extrema-direita?

Foi um desabafo. Tenho visto a evolução da vida política na Holanda e em geral foi tudo promessas e poucas realizações. Foi a minha maneira de demonstrar o meu desconsolo, o meu desgosto, contra as constantes promessas nunca satisfeitas.

Wilders não venceu, mas foi o segundo partido mais votado. Ficou satisfeito com este resultado?

Não. Também não ficava satisfeito se o partido de Wilders tivesse vencido. O único sinal que as eleições deram foi o partido trabalhista, que caiu como uma pedra. Não foi satisfatório ainda. Mais tarde será. Por enquanto os problemas são muitos e ninguém tem coragem para os encarar de frente. Nem ninguém pode tomar as medidas que seriam necessárias para resolver tantos problemas. No dia em que acontecer qualquer coisa de grave, uma tragédia, então talvez as pessoas mudem de mentalidade.

Talvez estejam à espera, não de um atentado mas de uma coisa mais violentaA Europa está a caminhar para a tragédia?

Não sei. Mas se um dia acontecer uma tragédia de verdade pode ser que a Europa acorde e que as pessoas tenham mais consciência da sociedade. Há dezenas de milhares de refugiados que passeiam na Europa à procura do país que paga mais para eles se irem embora. As autoridades parecem não ter ou não quererem ter noção do que está a acontecer. Talvez estejam à espera, não de um atentado mas de uma coisa mais violenta. É melhor resolver os problemas antes que eles se tornem maiores.

A solução é fechar fronteiras, impedindo a entrada tanto de pessoas mal-intencionadas como de quem apenas está a fugir da guerra?

Não há possibilidade nenhuma de fechar fronteiras. Veja o caso dos mexicanos: quando não podem atravessar a fronteira fazem um túnel. Há milhares de maneiras de atravessar uma fronteira, se a pessoa quiser atravessar, atravessa. Terá de haver outras maneiras de evitar uma desgraça.

Qual seria a opção viável?

Se fosse bruxo dizia-lhe, mas não sou. Não há. Temos de esperar pelo que vai acontecer e depois faremos o melhor possível, se for possível. Mas prever o futuro não.

Então não é possível, como disse, “resolver os problemas antes que eles se tornem maiores”.

Eu sei lá. Não faço ideia, Não vejo maneira de solucionar. A maneira será a do costume até que alguma coisa aconteça. Depois podemos pensar que teríamos feito de outra maneira, mas será tarde demais.

Quando estou na Holanda quero estar em Portugal e quando estou cá quero voltar para Holanda. Sinto-me melhor no lugar onde não estouEstá em Portugal para passar mais uma temporada em Trás-os-Montes. É uma âncora que o continua a puxar de volta a casa?

É uma romaria que fazemos há 20 anos, quatro vezes por ano. Quando estou na Holanda quero estar em Portugal e quando estou cá quero voltar para Holanda. Sinto-me melhor no lugar onde não estou.

O que costuma fazer quando está em Trás-os-Montes?

Nada. [risos] Palavra. Em Portugal não escrevo, só escrevo na Holanda. Acho que preciso da distância, do afastamento, para sentir Portugal. Quando estou aqui tenho uma vida muito portuguesa: almoço, jantar, amigos e descanso. Tomo notas, mas não escrevo. O almoço é um desastre para mim – uma pessoa não escreve de manhã porque está à espera do almoço nem escreve à tarde porque está a fazer a digestão.

A escrita é indigesta?

É mais ou menos isso. Na Holanda o sistema alimentar é diferente, com o estômago livre a digestão não está a pesar no cérebro.

De certeza que não nos pode revelar o que está na sua secretária na Holanda?

[Risos] Geralmente está um computador com o ecrã em branco - que já não há folhas em branco - até ao dia em que aconteça alguma coisa.

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