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"A maior parte das pessoas está mais perto da rua do que do Elon Musk"

O escritor português Afonso Cruz é o convidado desta quinta-feira do Vozes ao Minuto.

"A maior parte das pessoas está mais perto da rua do que do Elon Musk"
Notícias ao Minuto

21/12/23 por Daniela Filipe

Cultura Afonso Cruz

Volvidos 10 anos desde o lançamento da peça 'O Cultivo de Flores de Plástico' que, em 2013, teve uma tiragem exclusiva de mil exemplares, o escritor português Afonso Cruz cedeu, finalmente, aos pedidos dos leitores. É que, após um 'facelift', a tão esperada reedição da obra, que retrata a história da Senhora de Fato, de Jorge, da Lili e do Couraçado Korzhev, já se encontra nas 'prateleiras'.

'O Cultivo de Flores de Plástico' é o resultado de dois dias passados com pessoas em situação de sem-abrigo, funcionando como um espelho do problema da falta de habitação digna e de apoios sociais. Ainda que seja baseada em experiências (e pessoas) reais, a obra poderia, de igual modo, referir-se às vidas das 10.773 pessoas que viviam nas ruas em 2022, dado que, "apesar de haver diversidade e de não haver o estereótipo do sem-abrigo, existem alguns elementos que são comuns".

Quem o garantiu foi o próprio autor que, em conversa com o Notícias ao Minuto, expressou ter a crença de que "a sociedade se torne cada vez mais justa", ainda que tenha considerado que a erradicação da vida nas ruas seja "uma utopia". De facto, no primeiro semestre deste ano, os novos casos de pessoas em situação de sem-abrigo subiram 56%. Além disso, o problema não mostra sinais de abrandamento, apesar do "esforço" prometido pelo Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, que pretendia, até 2026, conseguir uma cobertura a nível nacional em termos de prevenção e de resposta a este flagelo. A verdade é que, mesmo que a sociedade o tente ignorar, "a maior parte das pessoas está mais perto da rua do que do Elon Musk [bilionário, dono da Tesla e do X]".

A questão das flores de plástico é também um sintoma ambivalente e, de certa maneira, contraditório, porque acontece especialmente nas sociedades que estão mais confortáveis e que são mais ricas, que acabam por se dedicar ao pequeno problema

Qual a inspiração por detrás desta obra?

Na verdade, foi um pedido, um desafio. A determinada altura, o Gato que Ladra, um grupo de teatro, convidou-me, na pessoa da Rute Rocha, para escrever uma peça baseada na experiência da rua e de pessoas em situação de sem-abrigo. Passámos duas noites com sem-abrigo, fizemos uma série de entrevistas, conversámos, e dessas duas noites nasceu, depois, este livro. Primeiro foi uma peça encenada por eles, e posteriormente publicado.

Foi uma edição limitada. [Na altura], houve muito receio, por ser teatro, que não chegasse ao público e, por isso, fizemos uma edição especial, numa tentativa de tornar o livro mais aliciante. O que aconteceu foi exatamente o aposto; acabou por haver muitos pedidos e a edição esgotou num instante. Durante este tempo, havia muita gente que queria o livro e não estava disponível. Também tínhamos algum pudor em republicá-lo, uma vez que o outro era uma edição limitada. Mas, alterando um pouco o design e o modo como é apresentado, considerámos outra edição e, nesse caso, achámos por bem republicá-lo. Havia tanta gente a pedir, por isso achei mais do que justo.

A reedição surge 10 anos depois do lançamento mas, infelizmente, continua bastante atual. Aliás, talvez fosse possível acrescentar uma personagem que trabalha, mas que não tem capacidade para pagar uma renda. Se tivesse de escrever a peça hoje, mudaria alguma coisa?

É possível, claro. Apesar de haver diversidade e de não haver o estereótipo do sem-abrigo, existem alguns elementos que são comuns, nomeadamente uma falta de rede social e de apoio. Ou seja, muitas vezes têm problemas familiares, não têm amigos, e cria-se uma espécie de solidão que os leva para a rua. Mas é todo um problema que, depois, se vai manifestar de diferentes maneiras, que têm a ver com o contexto social, com a época. Hoje em dia, temos este problema gravíssimo da habitação, que não era presente na altura, mas a essência do problema mantém-se, independentemente das suas manifestações.

Aliás, compus as quatro personagens deste livro baseando-me em experiências reais. Altero esses acidentes, essas aparências ou manifestações, mas mantenho a substância, como é o caso, por exemplo, da Senhora de Fato, que foi baseada num sem-abrigo que conheci, que tinha ido parar à rua muito recentemente, e que tinha uma vida relativamente boa e confortável. Era sushiman e foi ele que me explicou também esse primeiro mecanismo de ir para o aeroporto, que é um pouco o que acontece a essa Senhora de Fato. Há um paralelismo que tem a ver com a essência, mas não com a sua manifestação.

O episódio com o cão é muito marcante e, apesar de entender a mensagem que quis passar, não posso deixar de lhe perguntar quanto aos motivos pelos quais decidiu incluir uma cena tão gráfica e evidente da crueldade humana, ao invés de outra solução igualmente pungente.

Essa passagem tem a ver com vários aspetos e não nasce de uma causa única. Aliás, quase nenhuma ideia ou nenhum livro. A determinada altura, há muitos anos, estava a ler 'A Ponte sobre o Drina', do Ivo Andrić, que tem uma descrição de um empalamento humano. Estava num avião, sentado, e senti-me a desmaiar com a descrição. Foi a primeira vez. Já tinha chorado inúmeras vezes, já tinha rido inúmeras vezes com livros, mas nunca tinha desmaiado a ler uma descrição. E também não desmaiei, mas senti-me tão mal, que tive de baixar a cabeça.

Essa descrição é muito mais pungente, vivida e pormenorizada do que aquela que fiz, mas foi uma tentativa de criar uma narrativa semelhante àquela, que afetasse o leitor da mesma maneira que me afetou a mim, mas muito mais leve, curiosamente. Não é com seres humanos, é com cães. A dor que sentimos e, de certa maneira, o asco que sentimos por uma atitude desse tipo em relação a um animal não é muito diferente daquela que sentimos com seres humanos o que, já por si como experiência, é algo muito interessante, por um lado.

Por outro, em termos religiosos, há uma parte da teologia que tem a ver com essa redenção ou uma redenção possível, apesar de se ter feito coisas extremamente negativas. Mesmo no sentido secular e laico, temos essa noção quando, por exemplo, rejeitamos – ou alguns países rejeitam – a prisão perpétua. Por mais grave que seja o crime, por mais horroroso que seja o crime, existe uma hipótese de redenção; não somos condenados pela vida, e muito menos se acreditarmos na vida depois da morte.

Existe uma parábola na Igreja Ortodoxa Etíope muito particular, que tem a ver com uma ideia que têm de Nossa Senhora, em que levam a ideia do filho pródigo até às últimas consequências. Imaginaram e adaptaram-na a partir de um episódio do Antigo Testamento, em que há alguém que comete crimes horrorosos. Se calhar, aquele que nos afeta mais emocionalmente é o canibalismo. Aquela personagem vai comer uma série de gente, incluindo familiares. À medida que vamos seguindo a vida dele parece não haver redenção possível, mas o que querem mostrar é que existe, mesmo cometendo a coisa mais horrorosa. A minha ideia era essa; criar algo que fosse tão repelente e que, mesmo assim, gerasse um santo depois.

Um livro tão pequeno consegue abordar temas como a solidão, a saúde mental, o estigma associado às pessoas em situação de sem-abrigo, o misticismo, a religião, a bondade, a crueldade do ser humano, e até mesmo a desumanização. Uma das frases que melhor resume os dias de hoje é, talvez, a constatação de que estamos a regar flores e vidas de plástico. Acha que pode haver solução para estas 'doenças' da sociedade?

Seria uma utopia. Ainda assim, sou otimista, ou relativamente otimista; não otimista tonto, do género 'vai tudo correr bem'. Aliás, até acho – ou espero – o pior e, exatamente por esperar o pior, preparo-me para corrigir ou tentar ultrapassar os obstáculos que, inevitavelmente, terei no futuro. O que quero dizer é que, quando sou otimista, não acho que o mundo vá ficar pior. Temos de nos preparar para o pior, mas temos de dar o nosso melhor para que as coisas corram bem, e temos de acreditar que podem correr bem. Se não acreditarmos que podem correr bem, não fazemos nada, porque já sabemos que vai correr mal, ou temos essa convicção. Esse tipo de pessimismo leva a um certo laxismo e à ideia de desistência, de que já não se pode fazer nada.

Há que ter esta preocupação em olhar para o outro com algum cuidado e pensar politicamente no que se pode fazer para melhorar a vida das pessoas cujos desejos não podem ser ainda 'gostava de passar férias nas Bahamas'

Acredito que vamos fazendo com que a sociedade se torne cada vez mais justa, que haja cada vez menos fome. Os números vão corroborando estas ideias, ainda que existam flutuações, como esta que vivemos agora com a guerra entre Israel e o Hamas, ou com a Ucrânia e a Rússia. Mas, se olharmos para uma janela temporal mais dilatada, percebemos que o mundo tem vindo a ser mais ou menos indulgente connosco, ou que temos melhorado algumas das faces mais indignas da nossa vida enquanto seres humanos. Uma delas, por exemplo, é a fome. Passado tanto tempo, a distribuição da riqueza continua a ser muito injusta e é uma indignidade que existam ainda pessoas a morrer de fome, ou que exista trabalho escravo, etc.

Ou pessoas sem casa.

Ou pessoas sem casa. A questão das flores de plástico é também um sintoma ambivalente e, de certa maneira, contraditório, porque acontece especialmente nas sociedades que estão mais confortáveis e que são mais ricas, que acabam por se dedicar ao pequeno problema, que muitas vezes é um problema de plástico, é um problema inexistente ou, pelo menos, irrelevante relativamente a outro tipo de problemas e a outro tipo de sociedades. Muitas vezes, os próprios desejos são muito diferentes. É muito diferente querermos salvar as nossas vidas, é muito diferente queremos sair da miséria. Este tipo de desejo é completamente diferente de gostarmos ir passar férias nas Bahamas.

Há aqui uma distinção a ser feita, ainda que possa ser algo positivo, porque quer dizer que essa pessoa não tem mais problemas na vida e os seus desejos podem partir para outro tipo de coisa. Ainda assim, há que ter esta preocupação em olhar para o outro com algum cuidado e pensar politicamente no que se pode fazer para melhorar a vida das pessoas cujos desejos não podem ser ainda 'gostava de passar férias nas Bahamas'.

Há um conto de um escritor judeu, I. L. Peretz, que fala de um homem muito pobre, muito humilde, que sofre inúmeras coisas na vida. A determinada altura morre e vai para o Céu. Todos os anos há uma efusão no Céu para receber aquele homem tão bondoso, tão humilde e que sofreu tanto. Mas ele não percebe porque raio é que isso está a acontecer, acha que é um equívoco, e quando se apercebe de que de facto vai para o Céu, Deus pergunta-lhe o que é que ele deseja mais. Ele pede pão com manteiga. Ou seja, nunca teve a ideia de, por exemplo, passar férias nas Bahamas; precisava do essencial, e é isso que pede. Isto é o oposto da flor de plástico. Mas, por outro lado, como dizia, a flor de plástico também é um símbolo de uma sociedade mais rica, em que as pessoas vivem mais confortavelmente, têm mais liberdade, têm mais mobilidade, têm tudo mais.

Muitas vezes nem reparamos nesses gestos importantíssimos e jamais faríamos um filme sobre eles, por um lado. Por outro, há esta noção de altruísmo em que obliteramos a autoria. Quando o fazemos, não estamos, de facto, à espera de recompensa, portanto esse é o gesto mais generoso que consigo imaginar

Tudo isso que mencionou fez-me lembrar da personagem do Jorge, que fazia coisas bondosas só por fazer. Não queria nada em troca, apenas o tal pão com manteiga. Há essa dualidade; a pessoa pode estar no pior momento da sua vida, mas acaba por querer trazer bondade aos outros e mostrar que, apesar de tudo, ainda existe bondade.

Sim. No caso dessa personagem, há uma frase que tenho usado em alguns textos e a que chamo de 'princípio de Musil', que se encontra num dos livros deste escritor. Ele diz que as pequenas bondades, os pequenos gestos, quando somados, têm um impacto muito maior na humanidade do que um feito épico.

Há um filósofo cuja imagem cito muito, que é a ideia de dois capitães transatlânticos: um que nunca vai contra um icebergue, faz a viagem de um lado ao outro, e outro que vai contra um icebergue e é o último a sair do barco, [uma ação] envolta em algum heroísmo. Ele pergunta-se, 'vamos fazer um filme sobre que capitão, aquele que foi contra um icebergue ou aquele que nunca foi contra um icebergue?' E fazemos o filme do capitão que foi contra o icebergue, que até poderia ter tido uma prestação heroica no episódio, mas é o mau capitão. É o capitão que foi contra um obstáculo, não viu esse obstáculo, não o imaginou, não tomou as medidas necessárias para o fazer, enquanto o outro é o capitão eficiente, que leva o barco até ao porto em segurança. Não valorizamos isso, porque essas são as coisas invisíveis na sociedade, são as coisas boas que vão acontecendo e que nem sequer reparamos.

A pessoa que para no sinal vermelho em vez de passar, podendo matar alguém, por exemplo. Claro que, depois, condenamos a pessoa que atropela alguém, mas ninguém vai dar um prémio a uma pessoa por parar no vermelho. Esse é o pequeno gesto que permite que todos vivamos em segurança e é importantíssimo para as nossas vidas. Muitas vezes nem reparamos nesses gestos importantíssimos e jamais faríamos um filme sobre eles, por um lado. Por outro, há esta noção de altruísmo em que obliteramos a autoria. Quando o fazemos, não estamos, de facto, à espera de recompensa, portanto esse é o gesto mais generoso que consigo imaginar. Este caso é um exemplo desses; não há um interesse ulterior, não há um benefício em fazer o bem se não o bem em si mesmo.

É evidente que mesmo que as pessoas achem que a caridade não resolve e, de facto, não resolve o problema, não quer dizer que não haja aqui um problema. Em situações de emergência, a caridade tem de funcionar e suprir aquilo que o Estado não consegue fazer. Se vir uma pessoa a afogar-se, não é a minha função salvá-la, mas vou fazê-lo, porque é uma emergência

Outra ideia transmitida é o facto de a maioria da população estar mais perto de viver na rua do que imagina. Porque é que acha que essa possibilidade é ignorada pela sociedade – tal como os sem-abrigo são ignorados?

Costuma dizer-se que a maior parte das pessoas está mais perto da rua do que do Elon Musk. A possibilidade de irmos parar à rua não é assim tão remota e é por isso mesmo que, olhando para o espetro social dos sem-abrigo, percebemos que existe de todo o tipo. Podemos encontrar um ex-político, da mesma maneira em que podemos encontrar um toxicodependente. Há pessoas muito diferentes e causas muito diferentes, ainda que todas dependam dessa falta de rede familiar ou de amigos. Quando as dificuldades surgem, não há pessoas à volta que possam ajudar, que sejam capazes de ajudar, ou laços que a própria pessoa não tenha quebrado. A maior parte não [é uma pessoa em situação de sem-abrigo] por escolha, ainda que em alguns sem-abrigo encontremos isso.

Por exemplo, a literatura de Albert Cossery está cheia desse tipo de pessoas que escolhem viver fora da sociedade e que são extremamente críticas em relação ao mundo, – com toda a razão –, especialmente em relação a esta ideia de trabalho. Parece-nos que o fazemos em liberdade, mas só o faríamos em liberdade se alguns direitos estivessem garantidos, isto é, se tivéssemos comida e teto sem precisar de trabalhar. Só [trabalharia] para aquilo que não é essencial para a minha vida. Quando sou obrigado a trabalhar para ter aquilo que é essencial, continua a ser uma espécie de escravidão, muito mais suave, mas continua a ser uma compulsão. Ou seja, se não trabalhar, não tenho o que comer ou onde dormir. A partir do momento em que sou obrigado a alguma coisa, não é um ato livre. O trabalho não se faz em liberdade na maior parte das sociedades, a menos que tenham garantido esse lado essencial do ser humano, que é ter, à partida, uma vida digna – não luxuosa.

Depois há esta questão, que é quase um escândalo, mas que é comum e é transversal a inúmeras sociedades e geografias, que é a vergonha do pobre, um certo nojo da pobreza, e uma aversão à classe social. Isto cria muitas formas de xenofobia e de racismo porque, muitas vezes, são pessoas que não tiveram as mesmas oportunidades porque são imigrantes, ou vieram de outro lugar para tentar melhorar a sua vida. O que acaba por acontecer é que ficam associadas à pobreza, a um tipo de vida. Tendemos a olhar para o lado, há uma segundidade associada, há uma série de coisas que são repelentes para a maior parte das pessoas. Curiosamente, há algumas sociedades que conseguem ter uma relação natural com as pessoas em situação de sem-abrigo e falam com elas sem paternalismo, mas é raríssimo.

Pedir ajuda é, às vezes, das coisas mais difíceis que fazemos na vida. É difícil de aceitar essa alteração da nossa condição, e o saber não é o mesmo que aceitar. Há um período em que custa muitíssimo acreditar que realmente se está a viver nas ruas, até porque, se uma pessoa for empurrada para a rua, os primeiros meses são passados com alguma esperança, com muita tristeza

É engraçado porque mencionei há pouco o Albert Cossery e, num dos livros, ele mostra como a forma de tratar determinadas pessoas é importante. Neste caso é um mendigo que todos os dias vai bater à porta de uma pessoa rica e essa pessoa dá-lhe algum dinheiro, algo para comer, conversam. Isto já tem aqui algo de especial, que é haver uma conversa. Há um dia em que essa personagem rica sugere a esse mendigo dar-lhe um salário uma vez por mês, em vez de ele ir lá todos os dias pedir dinheiro e comida. Ele fica chocadíssimo e indignado, porque vai ali todos os dias para conversar um pouco. Se receber um salário, deixa de ter isso; deixa de ser um ser humano para ser um objeto. Esta imagem parece-me bastante eloquente em relação à nossa posição face aos sem-abrigo, face à pobreza. Não lidamos com ela de uma maneira normal, viramos a cara, temos dificuldade em fazer caridade, que também deve ser encarado como um gesto de emergência.

O que se deveria fazer é ter uma sociedade e uma segurança social capaz de lidar com o flagelo da vida sem-abrigo. É evidente que mesmo que as pessoas achem que a caridade não resolve e, de facto, não resolve o problema, não quer dizer que não haja aqui um problema. Em situações de emergência, a caridade tem de funcionar e suprir aquilo que o Estado não consegue fazer. Se vir uma pessoa a afogar-se, não é a minha função salvá-la, mas vou fazê-lo, porque é uma emergência.

A questão da exclusão social está assinalada até dentro do próprio grupo de personagens, quando ficam a saber do rumor de que a Senhora de Fato poderá ser uma jornalista em reportagem. A não aceitação e a consequente rejeição da rua acaba por ter um fim trágico e, segundo Jorge, como ela “há aos montes”. Como é que se lida com quem, por vergonha, não pede ajuda?

Pedir ajuda é, às vezes, das coisas mais difíceis que fazemos na vida. É difícil de aceitar essa alteração da nossa condição, e o saber não é o mesmo que aceitar. Há um período em que custa muitíssimo acreditar que realmente se está a viver nas ruas, até porque, se uma pessoa for empurrada para a rua, os primeiros meses são passados com alguma esperança, com muita tristeza. Conheci uma pessoa que foi parar à rua com a morte da mãe; deixou de conseguir pagar a casa e viveu cerca de 10 dias na rua. Mas ele detestava a palavra rua, não gostava de a ouvir. Isso é o que acontece quando se está pouco tempo. Não quero generalizar mas, normalmente, a rua é um lugar repelente quando somos obrigados a viver nela. 

Mas, por exemplo, conheci uma pessoa que estava há muitos anos na rua e que tinha entrado nesse universo e, de certa maneira, incorporado. Fazia parte dele, foi-se apercebendo de que gostava de viver assim. Não sei se ele gostava verdadeiramente, ou se tinha passado a ser o hábito e esse hábito é uma espécie de conforto. Sentia-se livre, não tinha obrigações sociais, não tinha de se levantar para ir trabalhar e, curiosamente, tinha família e visitava a família, mas vivia na rua, porque queria. Normalmente, isso só acontece passado algum tempo.

Depois há outros que arranjam desculpas; aliás, uma das personagens do livro foi baseada numa outra pessoa que dizia que não tinha ainda saído da rua porque precisava de fazer uma operação, porque tinha um problema numa perna. Obviamente que era uma desculpa para ele próprio, que não poderia voltar a casa com a perna naquelas condições. Percebemos que é uma desculpa, porque está há dezenas de anos assim e não melhoraria de qualquer maneira; é apenas a sua forma de justificar o lugar onde está, que também não é bem visto pela sociedade.

Que outros projetos tem em mãos neste momento? Podemos esperar um novo livro em 2024?

Estou a escrever um folhetim para o Público, porque fui desafiado a fazê-lo. Comecei no 25 de Abril deste ano e, em princípio, terminarei no 25 de Abril do próximo, quando a revolução fizer 50 anos. É um trabalho diário. Escrevo todos os dias, exceto aos fins de semana e, portanto, preenche-me bastante o tempo. Além disso, tenho escrito crónicas para um programa da Maria Rueff e continuo a escrever para o Jornal de Letras. Mas tenho alguns livros prontos, ou quase prontos, que espero publicar para o ano. Um romance meio autoficção, que passa por uma experiência real, e a parte da ficção é apenas literária, e mais um ou dois livros de não ficção.

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