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Vozes ao Minuto: "O índio no Brasil é visto como um pobre que é tolerado, não chateia"

Vozes ao Minuto: O realizador brasileiro Sérgio Tréfaut é o entrevistado de hoje do Vozes ao Minuto, numa conversa que incidiu sobre o seu mais recente filme 'Paraíso', no impacto da pandemia no Brasil sob a liderança de Jair Bolsonaro e no futuro do país com as eleições do próximo ano.

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© Global Imagens

Fábio Nunes
06/12/2021 08:36 ‧ 06/12/2021 por Fábio Nunes

Cultura

Sérgio Tréfaut

Sérgio Tréfaut tem feito um percurso como realizador de cinema que tem flutuado entre os documentários e os filmes de ficção. O seu trabalho mais recente foi o documentário ‘Paraíso’, como o qual Tréfaut se propôs a refletir sobre a identidade brasileira e que serviu de mote à entrevista concedida ao Notícias ao Minuto.

A partir de ‘Paraíso’ a conversa fluiu para outro projeto que está a preparar e que também visa refletir sobre a identidade brasileira, mas também para o impacto do coronavírus e a gestão sanitária que o governo liderado por Jair Bolsonaro tem feito da pandemia, e que merece duras críticas por parte do realizador.

“É todo um discurso extremamente anticientífico, de desrespeito pelo saber, desumano, e que Bolsonaro vai levando numa 'escola Steve Bannon' que ainda existe”, apontou Sérgio Tréfaut.

Durante esta conversa explorou problemas do passado do Brasil e que, em certos casos, estão plasmados no presente. Mas também olhou para o futuro próximo, marcado pelas eleições do próximo ano no Brasil, algo que considera ser “muito imprevisível”.

Tem alternado entre os documentários e os filmes de ficção na sua carreira. De que forma esses dois géneros o preenchem enquanto realizador?

A palavra carreira é uma palavra com a qual não me identifico muito. Foram acontecendo na minha vida várias coisas, entre as quais fazer filmes. E é muito difícil reduzir-se uma pessoa a uma parte do que ela faz. Eu também organizei festivais, também escrevi em jornais, estudei filosofia. Quando eu faço documentários ou quando faço ficção não me sinto uma pessoa diferente, não sinto que faço uma coisa cuja minha participação é diferente. São modos de produção muito diferentes. 

Eu não funciono de forma muito diferente de um caso para o outro. Quando comecei a fazer filmes eu escrevia projetos que eram muito sonhadores. Eram projetos como uma adaptação do ‘O Banquete’ de Platão, uma adaptação da ‘Manon Lescaut’ em África, coisas meio megalómanas, muito mais do universo do Méliès, quase animação de tão megalómano e fora da realidade que eram. Depois, comecei a fazer documentários, que foram num primeiro caso um ‘talking heads’ completo, ou seja um filme de entrevistas e arquivos, o ‘Outro País’, que é o auge do jornalístico. O meu último filme, ‘Paraíso’, é um filme tão observacional, mas tão cuidadoso na sua observação que parece ser um documento em vez de ser um documentário. Existe uma escolha entre deixar espaço para as pessoas e não fazer uma montagem intrusiva, não fazer uma filmagem em que a câmara e o autor estão a dizer ‘Eu estou aqui’ em detrimento de uma personagem que se queira deixar na sua sua grandeza sem a intervenção de quem está fora. 

Isto para dizer que flutuo entre isso e um documentário que já é completamente construído, como o ‘Treblinka’, que é construído de ponta a ponta, e depois a ficção que se constrói com materiais variados. Cada um tem a sua maneira de trabalhar, a minha permeia essas duas coisas. A ficção que vou lançar no próximo ano, chamada ‘A Noiva’, é uma ficção em que consigo trabalhar as oportunidades que me são dadas ao filmar no Iraque, num lugar onde estão os campos de refugiados - que passam a ser campos de prisioneiros - com milhares de tendas, milhares de pessoas. As presas do Daesh são refugiadas sírias. São pessoas que, linguisticamente, fisicamente, conseguem casar-se umas com as outras de uma forma muito forte. As crianças são crianças de campos de refugiados. Portanto, documentário e ficção são uma busca que pretende levar algo ao espectador. 

Num momento em que o Brasil tenta tanto apagar a memória e fazer de conta que não existe passado, era importante valorizar esse passado e mostrar como estas pessoas amavam uma tradição

‘Paraíso’ foca-se numa comunidade de pessoas com idades entre os 80 e os 100 anos que se juntam para cantar música popular brasileira. O que o levou a decidir centrar-se nesta comunidade para refletir sobre a identidade brasileira?

Não foi um projeto de início. Eu tinha uma necessidade pessoal de voltar a ligar-me ao Brasil, do qual estive afastado de forma bastante forte durante 40 anos. Saí do Brasil tinha 10 ou 11 anos e voltei com cerca de 50 anos. Queria reconectar-me. Para mim a questão musical era fundamental porque faz parte da identidade brasileira. Antes de chegar lá fui lendo vários livros que me impressionaram sobre a identidade brasileira, desde o Stefan Zweig e o ‘Olhar Estrangeiro’ aos livres fundadores dessa questão no Brasil, como o célebre ‘Raízes do Brasil’ ou o ‘Casa Grande e Senzala’. Mas para mim a questão musical ultrapassava tudo.

Os brasileiros têm mil maneiras de comemorar a questão musical e vivê-la no dia-a-dia. Se morar no Rio de Janeiro, a conversa a dada altura vai ser sobre o que faz aquele cantor, se gosta mais de um ou de outro. É o pão nosso de cada dia. E eu vivi isso. Na minha ausência nestes 40 anos - e principalmente nestes 10 primeiros anos da minha adolescência em Portugal - era assim que me conectava, através da música que ouvia num programa de rádio do José Nuno Martins, que se chamava ‘Os Cantores da Rádio’. Quando cheguei ao Brasil, e querendo fazer este filme, tinha consciência de que não queria fazer um filme de denúncia. Tudo o que se faz é contra isto e contra aquilo, porque no Brasil há muito por fazer e denunciar é o mais fácil. Mas eu queria fazer um filme com um lado positivo. Tal como eu tive a experiência com o ‘Alentejo, Alentejo’ de fazer um filme que para uma certa região, para um certo grupo, é uma espécie de bandeira, é motivo de orgulho, eu queria encontrar uma forma no Brasil de passar por isso.

Tive vários caminhos. E um deles era para um projeto no Rio de Janeiro - desde o momento em que sol de põe até ao momento em que o sol nasce, tudo o que a noite tem para oferecer no Rio de Janeiro, desde as 18 horas até às 6 horas, e isso incluía uma diversidade de lugares, de experiências, de hospitais, de lixeiros, de muita música, de templos religiosos. Era um filme muito ambicioso na sua produção, muito difícil e exigente, também devido à insegurança. Chegámos a ser assaltados, uma vez, ao voltar dos bailes de charme de Madureira, às 3 horas da madrugada. Mas acabei por não levar esse projeto adiante após 10 dias de filmagens, porque percebi que era muito ambicioso, muito grande, e que não teria dinheiro nem tempo para o terminar. E resolvi concentrar-me num lugar no qual me comovi muito, por um lado, e por outro me identifiquei: algo que é muito bonito, que é uma memória de um país, que contrastava com o país no dia-a-dia. Chama-se ‘Paraíso’, mas é como uma ilha, um lugar à parte dos conflitos contemporâneos, onde as pessoas se reencontram com uma memória identitária. Escolhi este microcosmos, um pouco como a aldeia de Astérix, que diz muito sobre o mundo, e naquele lugar com muitos contrastes, com ricos, pobres, brancos, negros, músicas diversificadas, gostos diversificados, uma idade avançada, eu encontrava muito desse Brasil. Claro que ficaram excluídas, involuntariamente, algumas gerações mais novas, que entram pouco no filme. Mas num momento em que o Brasil tenta tanto apagar a memória e fazer de conta que não existe passado, era importante valorizar esse passado e mostrar como estas pessoas amavam uma tradição.

O filme foi interrompido pela pandemia. O plano inicial talvez fosse um pouco mais amplo, ou seja eu teria filmado mais coisas que destacariam o contraste entre a vida dessa ‘ilha’ e o que está à volta dela. Como houve a pandemia, como as pessoas tiveram de deixar de frequentar aquele lugar e se fecharam nas suas casas - algumas morreram rapidamente de Covid, à porta dos hospitais -, o filme foi interrompido. Eu tive de montar um filme em homenagem às pessoas que filmei com o material que tinha. Creio que ficou o essencial.

É muito triste a forma como no caso brasileiro a política foi tão indiferente ao cuidado

Como filmou antes da pandemia chegar ao Brasil, pode dizer-se que o filme captou um momento anterior à viragem na história do Brasil?

É um ponto de viragem na história do mundo, não é do Brasil. Há uma geração que desaparece. Todos nós vamos desaparecer, todos vamos morrer. A natureza faz com que as pessoas mais velhas tendam a morrer mais cedo do que as mais novas, mas houve uma aceleração, uma espécie de ceifada. E é muito triste a forma como no caso brasileiro a política foi tão indiferente ao cuidado. O presidente minimizou o que foi avaliado a nível internacional como uma pandemia, com efeitos gravíssimos e mortes em grande número. O presidente do Brasil avaliou como uma gripezinha, em que pessoas fortes como ele nunca teriam nada e a realidade não é essa, tanto os fortes como fracos podem ter a doença. De qualquer das maneiras, dizer que os fracos têm de morrer, que é o que está subentendido no discurso do presidente da República do Brasil, é um discurso de niilismo total e de eliminação das pessoas que podem ser mais vulneráveis, não as defendendo e até empurrando-as para a morte, que foi o que aconteceu no Brasil, com a tentativa governamental permanente de limitar o confinamento. O Brasil que elegeu este presidente a dado momento dividiu-se, porque até os governadores dos estados que o tinham apoiado disseram ‘Nós não queremos matar as pessoas’ e decretaram confinamentos contra a vontade do governo central.

Mas a política brasileira é uma coisa muito complexa e difícil de se falar, de se fazer futurologia, é oportunista, é um grau difícil de se compreender. E o crime do presidente relativamente à pandemia foi crescendo com uma posição muito pronunciada antivacina, dizendo que quem se vacinasse arriscava tornar-se um jacaré, coisas assim. Em reuniões internacionais, como a da ONU, ele é o único presidente não vacinado e faz gala [tem orgulho] nisso. Quem sabe se é verdade? Mas ele faz gala nisso. É todo um discurso extremamente anticientífico, de desrespeito pelo saber, desumano e que ele vai levando numa 'escola Steve Bannon' que ainda existe, que os Estados Unidos viveram durante a última presidência, mas que aqui vive-se de uma forma mais grave, muito mais forte, porque as instituições não têm tanta facilidade para se escudarem disso.

O Brasil é muito diferente. Se se comparar o Brasil e os Estados Unidos há coisas que do ponto de vista da sociedade e do pensamento são diferentes. O pensamento antivacina nos Estados Unidos é mais forte do que no Brasil, onde as pessoas pró-Bolsonaro também se foram vacinar. Da perspetiva política, é uma certeza que Bolsonaro nunca ganhará na segunda volta das eleições do próximo ano. Isso também é diferente dos Estados Unidos, onde o número de eleitores do Trump foi maior nas eleições do ano passado do que nas eleições de 2016. Isso nunca aconteceria no Brasil. Mas este obscurantismo militante na forma de lutar contra a ciência, que nos Estados Unidos é forte em questões ambientais, no Brasil foi semelhante com o discurso do Bolsonaro sobre a Amazónia.

Toda a capacidade eleitoral brasileira, nas últimas eleições e desde então, passa por um bombardeamento de máquinas de desinformação. Esse bombardeamento é feito por WhatsApp, através da Internet, mas também através das igrejas. O poder das igrejas evangélicas é muito forte, com um discurso de impostura com questões que não têm nada a ver com a religião, puramente político, puramente mercenário. Nesta altura do campeonato há duas televisões que são bastante bolsonaristas, que são a Record TV e a SBT, porque ganharam milhares de milhões graças ao Bolsonaro. A grande imprensa brasileira, do ponto de vista de números e do ponto de vista de dinheiro, que é o Estadão, a Folha de São Paulo, O Globo e a [estação televisiva] Globo são os grandes órgãos que limparam a história do Moro, que está a caminho de ser criminalizado, para o transformarem num futuro candidato. Por exemplo, com a digressão internacional do Lula, que foi recebido pelo Macron, pelo Olaf Scholz, que esteve em Espanha com o Sánchez, que é capa do El País, essa imprensa recusa noticiar isso. O facto de que o ex-presidente do Brasil durante dois mandatos, o presidente que foi mais popular até hoje, fez uma volta ao mundo e mostrou que é reconhecido internacionalmente como válido e honesto, é algo que a imprensa do ‘establishment’ e do dinheiro brasileiro silencia totalmente. Quer dizer, fazem praticamente uma nota de rodapé. É exatamente isso que se vive no Brasil, uma forma de desinformação por parte dos grandes poderes financeiros.

Já tinha reparado que a cobertura de meios internacionais sobre Lula é por vezes superior à dos meios brasileiros, o que pode parecer estranho.

Se o candidato da Folha, do Estadão e da Globo fizer uma digressão mundial, ninguém lhe dá importância nenhuma.

Notícias ao MinutoSérgio Tréfaut já tem mais dois projetos no horizonte: o filme de ficção 'A Noiva' e o documentário 'Incêndio'© Pedro Rocha/Global Imagens  

Regressando à pandemia. Ela veio demonstrar, ainda mais, o esquecimento a que são votadas as populações mais idosas, tantas vezes. Sentiu isso ao acompanhar aquela comunidade que se juntava no Palácio do Catete? 

A questão sobre como é vista e tratada uma faixa etária numa sociedade ou noutra é uma coisa que é amplamente estudada por quem entende do assunto, que não sou eu. Se falar de Portugal, fala-se da diferença entre o campo e a cidade, quando as pessoas vão para os lares ou não vão, há vários modelos. O que acontece no universo em que estava a filmar, é o universo de pessoas que encontravam forma de descobrir a felicidade num momento em que dificilmente é esperado que a descubram. Algumas curaram depressões ao encontrarem-se ali. Eu filmei o lugar onde pessoas que tendencialmente poderiam quase não se sentir vivas encontravam vida. Essa questão de as pessoas se sentirem vivas, reconhecidas, envolvidas, etc., é muito importante. Houve grupos de idosos em Lisboa que foram ao Nimas ver o ‘Paraíso’ e eles falam disso, de como seria importante encontrarem um espaço de convívio e de felicidade. No jardim do Catete, essas pessoas esperavam o dia inteiro para ir cantar, elas sonhavam com aquilo. Não é como cantar num coro. Ser um solista é diferente, é um pouco como aquela frase do Andy Warhol de que a televisão era o momento de celebridade das pessoas. Ali não há televisão nenhuma, mas o facto de estarem a cantar para outros, de terem pessoas a tocar instrumentos ao lado, aquilo é como serem a Maria Callas, o Pavarotti daquele sítio. 

Eu escolhi o tema da música para refletir sobre a identidade brasileira, porque no Brasil o facto de a música ser tão importante para as pessoas, e o facto de as músicas que cantam neste filme serem um património, serem algo palpável para ficarem alegres e felizes é muito importante. E se as pessoas são colocadas à parte, se não lutarem pela sua felicidade ninguém vai lutar. É muito simpático ter filhos e netos que ajudem, mas nós próprios temos de andar sempre à procura do que nos faz mais felizes. 

O incêndio do Museu Nacional foi como se em Portugal ardessem em simultâneo a Biblioteca Nacional, a Torre do Tombo, o Palácio da Ajuda e o Museu Nacional de Arte Antiga

Tem em vista outro projeto que visa refletir sobre a identidade brasileira, intitulado ‘Incêndio’, que parte do incêndio no Museu Nacional do Rio de Janeiro e que vai abordar a forma como tem sido tratado o património histórico no Brasil. O que pode adiantar sobre este futuro projeto?

O incêndio no Museu Nacional, que ocorreu em 2018, é uma coisa imputada à história do Brasil e aos vários poderes que tutelaram as instituições. O incêndio do Museu Nacional foi como se em Portugal ardessem em simultâneo a Biblioteca Nacional, a Torre do Tombo, o Palácio da Ajuda e o Museu Nacional de Arte Antiga. Isso devido a uma palavra que é muito utilizada no Brasil que é o descaso dos poderes, a indiferença, por se deixar tudo para o amanhã à espera que o milagre aconteça, mas não acontece. Em contrapartida, há milhões que são investidos em outras coisas. Por exemplo, durante os Jogos Olímpico do Rio de Janeiro, em 2016, foi inaugurado um museu que se chama Museu do Amanhã, que é um grande edifício desenhado pelo Calatrava, que está vazio. É um exibicionismo em torno de um nada que é o amanhã. Custou milhões que teriam resolvido todos os problemas do Museu Nacional.

O que aconteceu com o Museu Nacional aconteceu com o incêndio da Cinemateca, que foi o sexto ou sétimo incêndio deste género nos últimos anos. Há muita coisa no Brasil que é destruída ou deixada ao acaso. Refletindo sobre isso, eu comecei a estudar a relação do Brasil com o património. Será um filme de reflexão, um filme ensaio, nada a ver com o ‘Paraíso’, onde há outro episódio que não se fecha num ano, mas que acontece logo a seguir à implantação da república, que foi o que se chamou de Operação Bota-Abaixo no Rio de Janeiro, e que consistiu na destruição tábua rasa do centro histórico português na cidade para construir o que seria a cidade nova, a cidade do futuro. Este pensamento de destruir é algo que foi fazendo parte da história do Rio de Janeiro.

Um terceiro capítulo sobre a desvalorização do passado em detrimento de um futuro que também é incerto é o mito da criação de Brasília - que é muito real, não tem nada de mítico. Mas há um mito fundador, que vem do século XIX, em que a identidade do Brasil vai ser feita numa cidade nova. Só que esta nova cidade, que é Brasília, foi construída como uma operação eleitoral. Juscelino Kubitschek fez a coisa mais eleitoralista do mundo ao decidir que o mandato dele seria para construir uma nova capital, o que não se faz em poucos anos. Esta nova capital que veio representar a identidade do Brasil era uma cidade sem passado, construída em quatro anos, construída para os automóveis em primeiro lugar, porque o ideal de modernidade na altura era o automóvel, e hoje Brasília é, curiosamente, uma cidade completamente ultrapassada. Uma cidade que envelheceu muito depressa, do ponto de vista conceptual, que excluiu o passado. Kubitschek fez promessas de construir uma cidade mais democrática, mas isso não aconteceu. Brasília é uma cidade muito mais caracterizada pela desigualdade social dentro do espaço, mais do que em qualquer outra cidade os pobres estão longe e hermeticamente excluídos da cidade. As pessoas a quem foi prometido lugar na cidade do futuro por parte de Juscelino Kubitschek foram depois colocadas onde o diabo perdeu as calças. Sem saber porquê, pessoas que construíram a cidade e que tinham uma casinha foram transportadas em camiões sem saber qual o destino. Foram enviadas para o meio do mato e disseram-lhes que as suas casas seriam ali, sem água potável e sem eletricidade. 

Acho execrável a história de Brasília, acho que uma cidade na qual nem há espaço para andar é execrável, acho que um arquiteto que se dizia de pensamento social, pseudo-comunista, não se preocupou com o sítio onde iam morar as pessoas que fizeram a cidade. Para mim Brasília é um parque temático de um arquiteto e o sonho eleitoralista de um megalómano. A rede Globo e o império da informação veiculam esta ideologia segundo a qual a identidade do Brasil vem do futuro. 

Mas o mais grave disto tudo não foi o que eu já contei, mas é o lado do património natural e humano. Isto está a levar acima de tudo a algo inevitável que é a extinção dos povos autóctones, brasileiros, que é para amanhã. Há uma política de desenvolvimento brasileiro que transformou o índio em pobre. Em vez do índio ser uma identidade própria que merece ser respeitado enquanto outro, ele foi colocado dentro do saco do país e são apenas uns pobres que estão ali e que são tolerados, na medida em que não chateiam.

O país já é independente há muito tempo e os maiores crimes contra os índios têm sido cometidos nesse período

Quais são as suas expectativas para as eleições do próximo ano no Brasil?

Não é uma questão de acabar com o governo de Bolsonaro, acho que isso é uma unanimidade. Eu não quero que hajam só pessoas com preocupação social, quero que hajam pessoas que tenham a preocupação de olhar para a preservação deste país como algo natural. A natureza está a ser totalmente destruída, nas cidades as partes antigas são devoradas e são feitos horrores. O mesmo acontece com as populações indígenas. Há um discurso europeu e anticolonialista muito fácil e vamos parar rapidamente à escravatura, à destruição dos índios e, no entanto, o país já é independente há muito tempo e os maiores crimes contra os índios têm sido cometidos nesse período. 

Mas tendo em conta que o Brasil aparenta estar num momento de bipolarização, como, por exemplo, os Estados Unidos, consegue imaginar um Brasil pós-Bolsonaro? 

O Brasil não é um país bipolarizado no mesmo sentido dos Estados Unidos. O sistema norte-americano é bipartidário, entre dois partidos conservadores, há um Bernie Sanders ali no meio mas ele é mais decorativo do que outra coisa. As grandes guerras e invasões americanas são feitas em períodos democráticos tanto como em períodos republicanos.

Aqui não, aqui é muito mais confuso. De um ponto de vista histórico, há pessoas que ainda apoiam a ditadura e que chegam a representar 15 a 20% dos eleitores, embora muitos possam flutuar. Depois, há o conjunto de partidos aparentemente conservadores, denominados no Brasil de ‘partidos fisiológicos’. Ou seja, por oposição aos partidos ideológicos como o PT, o PSOL, e alguns partidos mais pequenos onde os princípios e os valores guiam a política. Há ainda os partidos onde o caciquismo impera. O Bolsonaro, por exemplo, foi eleito por um partido que durante várias legislaturas teve um, dois deputados. Quando ele entrou o partido passou a ter 50 e tal deputados, e tornou-se o segundo maior partido a seguir ao PT, e que nas próximas eleições vai semi-desaparecer. Antes disso, Bolsonaro teve em sete partidos e agora está noutro. Todos os políticos são deste, vão para aquele. Não há praticamente vocação ideológica, há um lado de ‘quem é que me pode oferecer mais’. 

O que vai acontecer no Brasil vai depender do desejo norte-americano de desestabilizar ou não

É muito difícil falar em dois. O grande poder da imprensa está a criar novamente o Moro, porque quer um candidato. Já se percebeu que não terá um Bolsonaro e tenta limpar a ficha criminal e todas as questões do Moro para ser um candidato presidencial. Se se colocar a hipótese de Lula ser candidato, de ganhar a outro candidato, será que a conjuntura internacional aceita? As pessoas acham que isso é conversa que não é séria, mas é verdadeira. Todos sabem que o golpe de Pinochet foi orquestrado em Washington, ninguém nega. As pessoas tendem a não acreditar que o que aconteceu no Brasil - com a prisão do Lula e o impedimento de ser candidato eleitoral e a grande estrela Moro - foi formado nos Estados Unidos. Mas tem tudo a ver. O que vai acontecer no Brasil vai depender do desejo norte-americano de desestabilizar ou não. 

Depois, há a questão muito complicada na política brasileira, pois o sistema político e os partidos que existem exigem casamentos contranatura. O vice da Dilma era o Temer, foi ele que deu o empurrão para ela cair. Agora as pessoas pensam em quem será o vice do Lula nas próximas eleições. Isso não é pensado em termos de um casamento ideológico. É um sistema perverso de casamentos contranatura. 

Agora, o Bolsonaro e os seus filhos sabem perfeitamente que uma mudança política a sério vai levá-los à prisão. É uma coisa evidente. O que eles vão fazer ou não para evitar isso, que acordos o Moro fará para receber votos do Bolsonaro numa segunda volta das eleições, o Lula que tem grande capacidade negocial. É tudo muito imprevisível no futuro. 

Há algo que Marcelo Rebelo de Sousa me disse com alguma pertinência, que é o preconceito fácil de se estabelecer contra o antigo colonizador

Foi um dos promotores da petição ‘Pela Democracia e contra o Genocídio no Brasil’, que apela ao Estado português para defender o povo brasileiro e denunciar as políticas do governo de Jair Bolsonaro. Essa petição já tem mais de um ano. Como encara o silêncio do Governo português e do Presidente da República?

A política é política, é mais ou menos essa a situação. Eu não pertenço a esse universo. Eu saí do Brasil há um ano e meio em plena pandemia a achar que era perigoso estar lá, e vim para a Europa à espera de um sistema de saúde que funcionasse. Estava de tal maneira revoltado com aquele primeiro momento de dois ou três meses do Bolsonaro a descredibilizar a Covid-19 e as suas consequências que estava fora de mim. Vim para Portugal esperançado que pudesse haver um posicionamento internacional que partisse de Portugal. Sonhei com isso. Abri os olhos para a realidade, escrevi um artigo que era uma carta aberta para o Marcelo Rebelo de Sousa, ele telefonou-me e falámos durante meia hora. Ele não o dizia assim, mas o tom era mais ou menos ‘Ó rapaz’.

É óbvio que há uma consciência de todos os líderes mundiais da demência e dos crimes do Bolsonaro. Isso têm. Mas existe uma grande diferença entre terem essa consciência e considerarem que os crimes em questão são crimes que justifiquem um posicionamento internacional. Os grupos parlamentares podem dizer isso, mas os governos evitam. Há uma grande proximidade entre o Brasil e Portugal, mas eu não ponho as minhas mãos no fogo pela hipótese de o Governo português, ou até qualquer outro, contestar o que aconteceu no Brasil de forma muito veemente. O Governo português gosta ficar com os louros de Portugal ser um dos países mais vacinados do mundo, isso ajuda a esquecer os erros cometidos no final do ano passado e que provocaram as mortes de janeiro e fevereiro, mas envolver-se na questão brasileira, nas consequências para o comércio entre Portugal e Brasil… Eles têm demasiadas coisas com que se preocupar do que enfrentarem esta questão.

Depois, há algo que Marcelo Rebelo de Sousa me disse com alguma pertinência, que é o preconceito fácil de se estabelecer contra o antigo colonizador. O discurso do Bolsonaro relativamente à Merkel e a Amazónia é um discurso que é partilhado pela esquerda e pela direita no Brasil.

Eu tive aquela iniciativa e quase a esqueci depois, porque a vida segue em frente e temos de fazer milhões de coisas. Assinei outras petições, mas nós sabemos que não é por isso que o mundo se transforma. Infelizmente, nós somos bastante impotentes relativamente a tudo isto.

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