Após mais de uma década de carreira na música, Márcia decidiu dar asas a dois amores antigos. A escrita e a ilustração. O sonho, que tinha desde miúda de editar um livro com os seus poemas, ganhou forma durante o confinamento, na primeira vaga da pandemia da Covid-19, enquanto tentava criar harmonia entre o dever de estar em casa, com dois filhos pequenos, e a necessidade de criar.
Às paisagens que imagina quando escreve aliou as canções já criadas e cantadas por ela e sussurrou-nos, por meio de letras, reflexões intimistas, tal como já nos habituou com os seus álbuns. Claro está, sem nunca esquecer os verbos 'Ir' e 'Ser', que tanto gosta de conjugar na sua vida profissional e pessoal. O resultado é o livro 'As Estradas são para ir', apresentado ao público no dia 27 de outubro.
Além do livro, durante esta conversa que aconteceu por telefone, mas transpôs as barreiras da distância dominam atualmente na nossa vida, Márcia revelou ao Notícias ao Minuto a sua veia ativista. Falámos de sustentabilidade, de economia circular, de desperdício. Falámos ainda de fake news e especulação e até de como a sociedade e o Governo veem o setor da Cultura.
Sempre com uma visão otimista de que 'As Estradas são para ir', ficamos com a sensação de que Márcia já fez um pouco de tudo e com o coração aberto. Apenas lhe falta agora plantar uma árvore.
Lançou recentemente o livro ‘As Estradas são para ir’. Depois de se apaixonar pelas Belas Artes, pelo Cinema, pela Música, surgiu agora uma paixão pela Literatura ou este era um amor antigo?
Já era um amor antigo, uma ideia antiga de lançar uns poemas. Aliás, foi a minha primeira forma artística. Sempre desenhei e sempre escrevi também poemas e depois tinha muita vontade de os editar. Naturalmente não os que escrevi em criança, mas os que escrevi de há três anos para cá queria editá-los e pensava sempre numa maneira que pudesse aliar os desenhos, as paisagens que imagino quando escrevo. No início, imaginava desenhos mais simples...depois comecei a entusiasmar-me durante o confinamento. Comecei a desenhar cada vez mais e acabou por sair assim este livro muito grande cheio de paisagens, de pinturas e de vários tipos de texto.
Escrevia poemas quando era criança?
Sim, relato isso mesmo no livro. Uma das crónicas acabei por escrever porque me senti na dúvida. Por que é que eu escrevo? Desde quando é que eu escrevo? Desde miúda que gostava das aulas de português e de escrever composições, que era aquilo que fazíamos como exercício na escola. Depois comecei a escrever também poemas e a contar sílabas métricas e assim é que fui para a música, porque as sílabas mostravam-me que a musicalidade das palavras podia ser cantada. Então depois comecei a fazer poemas cantados, que são as canções, e mantive essa vontade de fazer poemas não cantados. Aqui no livro distingo os poemas cantados, que estão mesmo gravados, na sua sua maioria e que estão em itálico - podem ir pesquisar ao Spotify, YouTube ou num disco - , dos poemas que não têm voz, nem de homem, nem de mulher.
À medida que o leitor for avançando, vai percebendo que há vários caminhos. Alguns deles mais emocionais que outros, que nos vão apresentando algumas pedras no caminho. Pedras onde nós tropeçamosE de onde vem o título ‘As Estradas São Para Ir’?
O título ‘As Estradas São Para Ir’ faz parte de uma canção que está no meu último disco, ‘Vai e Vem’, onde eu desenvolvo um bocadinho essa minha obsessão de ‘Ir’. Aliás, ir e ser, para mim, são dois verbos imperativos. Nunca disse isto em nenhuma entrevista, mas eu pensei, a dada altura, em chamar ao disco ‘For’, aonde ser e ir se encontravam, só que era um nome um bocado esquisito para um disco, mas isto para dizer que ‘As Estradas São Para Ir’ faz parte da última canção do meu mais recente disco, que é a ‘Ao Chegar’: “Lembra-te ao chegar / que as estradas são para ir / vemos sempre mais ao longe”. Este “vemos sempre mais” é ter a noção que a estrada é em frente, que a esperança é o que nos dá sentido, é o caminho. Nos momentos difíceis, que todos nós temos, há sempre uma maneira de ter esperança e arranjar caminhos que nos levem mais longe, que façam mais por nós, que nos permita fazer o nosso caminho.
E depois relata um bocado os caminhos por onde eu andei e as canções são citadas aqui no livro porque fazem sentido com todo o sentido desta estrada que eu percorri e que estou a tentar fazer chegar aos outros, através da minha verdade, mas também fazer com que as pessoas que lerem este livro se revejam. Acho que sou bastante confessional neste livro, para que as pessoas também consigam sentir aquilo que sentem e sentirem-se acompanhadas naquilo que sentem.
No livro, encontramos ilustrações e canções, mas também reflexões, crónicas e pensamentos seus sobre os quais, até agora, sabíamos pouco. Como surgiu a ideia de escrever um livro com essas anotações mais pessoais e intimistas?
Juntei os poemas e depois achei que fazia falta fazer alguns desenhos. Mas então porque não também incluir os textos das canções, já que eles falam também deste mesmo tema? Então juntei os textos das canções. Então e porque não explicar o tema? Porque a pessoa que está a ler não está a ouvir os meus pensamentos, então optei fazer crónicas que são como uma espécie de explicação e que acabam por servir de separador do livro. São umas 10 ou 9 e explicam o sentido das coisas. Ao ler, a pessoa logo se revê ou não naquele poema. Os poemas e as canções são coisas muito mais líricas, mais abertas à própria interpretação. E as crónicas acabam por dar um sentido mais pessoal, mais a ver com a minha intimidade.
Esse é o meu grande otimismo. É como se eu não tivesse opção. Eu sou otimista, mesmo profundamente otimista, na evolução. Não acho que andamos para trásNeste livro, tal como nas suas canções, a boa energia e a positividade estão bastante marcadas. Mas há estradas que nem sempre são fáceis de ir, como é que consegue manter esta postura tão otimista?
Aqui este livro começa logo com um pequeno texto, uma nota de autor, sobre um problema que eu tive na voz. Depois, à medida que o leitor for avançando, vai percebendo que há vários caminhos. Alguns deles mais emocionais que outros, que nos vão apresentando algumas pedras no caminho. Pedras onde nós tropeçamos. Às vezes são problemas de saúde, outras são coisas que nós não contávamos que acontecessem. Todos temos percalços desses na vida e temos de aprender a lidar com eles. É que não há outro caminho. Temos de saber adaptar-nos, mas não há outro caminho sem ser ir em frente. E esse é o meu grande otimismo. É como se eu não tivesse opção. Eu sou otimista, mesmo profundamente otimista, na evolução. Não acho que andamos para trás. Mesmo quando as coisas estão conturbadas há sempre uma maneira de evoluir, mas está também nas nossas mãos construir essa maneira. Enfrentar o desafio, como é este momento que estamos a viver.
O medo entrou pelas casas das pessoas e aí não é possível criar. Aí só só sobrevive. E a Cultura é a vida, é o lado de cá, dos vivos E falando em desafios, como está a ser lançar um livro e dar concertos em tempos de Covid?
Tem sido mesmo um desafio porque são alturas muito mais complicadas para os teatros, para as salas, para as equipas, mesmo para o próprio público. Eu também sou público, também vou a espetáculos. É muito mais cansativo, exige muito mais resiliência. Tudo o que fazemos agora… epá… estamos mesmo a lutar contra uma maré que é chata. Tudo isto das proformas que estamos a viver são impeditivas às vezes, mas aquilo que recebemos em palco, aquilo que eu recebi nos concertos depois do desconfinamento - e fiz bastantes -, é ainda mais gratificante depois de termos percebido o quão valioso é cantarmos ao vivo porque passamos aquelas semanas de confinamento, meses horrorosos, e o público também sente isso. Há uma comunhão muito grande. Acho que o universo acaba por nos compensar em termos de emoção e isso com o público é essencial. Quando tocamos num live de Instagram é uma coisa que colmata um bocado aquela falta, mas nada substituiu o espetáculo ao vivo. É uma coisa tão grande que vivemos ali todos juntos que eu acho que nada substitui.
Acho que é um grande desafio construir em alturas de crise, criar em alturas de crise. Não é suposto nós estarmos a querer criar em alturas de sobrevivência, quando aparece o medo pela televisão adentro, como naquelas semanas de quarentena. O medo entrou pelas casas das pessoas e aí não é possível criar. Aí só só sobrevive. E a Cultura é a vida, é o lado de cá, dos vivos. Por isso, eu tento-me manter no lado dos vivos e vou tentando construir o máximo possível.
Calhou-me acabar por fazer muitos desenhos, porque tive de me adaptar a uma situação difícil que foi ter de estar fechada em casa com dois filhos pequenos, que exigem muita atenção. Com eles, era mais fácil desenhar do que fazer canções para um disco. Dava-lhes prazer verem-me desenhar e eles também brincavam, também faziam e assim, desta forma, lá consegui harmonizar o meu espaço da casa. Foi a minha maneira pessoal de me adaptar. Agora, aqueles que não conseguiram ou não conseguem criar neste momento, eu também percebo, porque é o mais natural. As pessoas não têm de se sentir obrigadas a criar, a produzir.
E ainda mais agora com uma segunda vaga, mais confinados novamente...
O primeiro-ministro falou ao país, explicou, especificamente, que são dois fins de semana, que temos de aguentar dois fins de semana para salvar o Natal. Na verdade, isto é a coisa certa para fazer. Agora vamos parar e ver. Se fosse só assim dito, se calhar até aceitávamos bem, mas não, está toda a gente, ‘ai que horror e agora a economia?’. Estamos a corroborar tanto essa ideia que acaba por ser pior.
Que mudanças é que sente, a nível pessoal e profissional, da primeira para a segunda vaga?
Uma diferença muito óbvia, primeiro, para quem é mãe e pai. As escolas estão a funcionar. Como as escolas estão a funcionar eu sei que os meus filhos estão felizes, porque eles precisam de escola. A parte pior da quarentena para mim foi terem de estar a fazer coisas no computador e terem de ver telescola, algo que tento evitar desde que eles nasceram, que é estarem agarrados ao computador ou longe dos amigos. Isso foi o mais difícil para mim. Evitar contactos com crianças, na altura em que somos crianças, é a coisa mais violenta para eles. E dizer a uma criança que tem de estar em casa em vez de ir para a rua é a coisa mais antipediátrica e antipedagógica que pode haver. As crianças precisam ir para a rua, precisam ir para os parques. Até nós adultos precisamos ver os parques abertos. Por isso, para mim, isso foi a coisa mais violenta.
Além disso, no primeiro confinamento em que ficamos todos enfiados em casa, em pânico e achamos que o melhor era ficar fechado em casa, quietos, parados. Isso é que foi muito difícil. Nessa altura não sabíamos do que estávamos a falar. Agora já sabemos. Já sabemos muito mais sobre o vírus, temos notícias sobre pessoas que recuperaram, temos mais dados. A informação verdadeira dá-nos o sentido de ‘ok, vamos ter de aprender a viver com isto’, temos de nos proteger, estamos protegidos com as máscaras. Por exemplo, fizemos vários concertos, andamos com muito pessoal, cumprimos o nosso protocolo de viagem e ninguém ficou infetado. Não houve um único foco de infeção no âmbito dos concertos. Por isso, para mim, eu sinto uma grande paz nesse sentido.
A dignidade de um artista também é passada por todos nós como sociedade. Nós é que temos de ter interesse, em perceber aquele artista. Não é só quando ele morre. Por isso, se o apoio é mau, pode ser mau, mas nós avançámos anos luz em relação há 10 anosNos espetáculos em espaços fechados sente-se isso mesmo. Está tudo está muito organizado, cumprem-se todas as regras...
Muito, muito. Noto isso imenso. Todos os teatros onde toquei tiveram uma capacidade incrível de adaptação e de cumprimento de regras porque as pessoas querem mesmo trabalhar, têm de trabalhar. Nós temos de viver com isto e ponto. É assim que eu vejo as coisas, por isso, eu não comparo nada esta segunda vaga à primeira. Eu sinto que esta segunda vaga era inevitável, porque já se sabia que toda a gente ia voltar das férias, íamos voltar à vida comum, muita gente a usar transportes públicos, muita gente fechada a trabalhar, é natural que surjam mais casos. Eu acho é que quanto mais informados estamos, melhor. Agora, informação verdadeira, não é especulação porque a especulação só faz mal a toda a gente. Toda a gente fica doente. Provoca uma doença tão grande e parece que ninguém está preocupado com essa doença. Só se pensa na doença do vírus e ninguém pensa nessa doença que faz mal às pessoas.
Ainda outro dia vi uma reportagem que era um senhor, numa mercearia, a dizer que estava a vender bacalhau e que já tinha recebido encomendas, mas que, assim que saía uma notícia, sentia logo no dia seguinte a diferença...já ninguém aparecia. Não é a Covid-19 que está a fazer isso, são as notícias. As notícias estão a afastar as pessoas do comércio e ninguém responsabiliza essa parte. É um excesso! Parece que não dá para a pessoa contornar, é preciso as pessoas sentirem uma certa segurança. Não faz mal entrar num supermercado de máscara e comprar bacalhau.
E sobre os apoios ao setor da Cultura? Tem-se falado muito da falta destes, não só durante a pandemia, mas desde sempre. Qual é a sua opinião sobre este assunto?
É óbvio que há sempre maneiras de apoiar mais, agora a nossa tradição em Portugal é desprezar totalmente os artistas. Essa é a tradição em Portugal. Podia-se fazer muito mais pelo estatuto dos artistas, audiovisual, técnicos e de toda a malta da Cultura, podia-se fazer muito mais em termos protocolares. Agora, a dignidade de um artista também é passada por todos nós como sociedade. Nós é que temos de ter interesse, em perceber aquele artista. Não é só quando ele morre. Por isso, se o apoio é mau, pode ser mau, mas nós avançamos anos luz em relação há 10 anos. E não vamos muito longe, em 2013 foi uma crise insuportável em Portugal e convidaram-me a sair, porque eu era jovem e eu devia procurar oportunidades fora. Convidaram enfermeiros para sair. Eu não me esqueço disto. As pessoas esquecem-se muito facilmente. Os enfermeiros foram convidados a sair de Portugal, foram para Londres. As gerações mais novas foram convidadas a viver fora.
Nós agora não estamos a ser convidados a viver fora, por isso eu ão acho que estejamos a andar para trás. Eu acho que continuamos a andar para a frente. Há coisas por fazer? Há, mas sinceramente, eu já vi uma grande disponibilidade. Sei que existem muitas críticas a fazer a todo este ministério, como em todos os governos temos críticas a fazer, mas já vi muito mais disponibilidade por parte deste Governo para ouvir o que é que é preciso fazer para ajudar os artistas. Sinto muito mais disponibilidade agora do que alguma vez seenti. Se é perfeito? Claramente que não é, mas há muita mais disponibilidade.
Nós não temos de ver um artista como um gajo a recibos verdes que nunca sabe quando é que recebe ou não recebe. Esta maneira de ver o artista devia ser mudada no interior de cada um de nósE isso dá um certo alento…
Não é só alento! Dá-nos uma oportunidade. Se calhar podíamos sentar e pensar em soluções. O que importa é solucionar. Há coisas que estão nas nossas mãos, mas nós achamos que estão nas mãos dos outros. Tanto o trabalho de um artista, como de um enfermeiro e de um professor é fundamental. É fundamental para a boa saúde da sociedade, é fundamental para crescimento da sociedade. É fundamental para ter uma sociedade igualitária. E onde é que nós vemos interesse? ‘Ah! É artista’. Nós achamos que ser artista ‘não é bem um trabalho’, ‘não é bem uma profissão’. Isso é que está errado e está ao alcance de cada pessoa mudar.
Cada pessoa tem de começar a pensar diferente. A mudança tem de se fazer em todas as frentes, não tem de vir de um decreto-lei. Tudo bem, o Governo pode sempre fazer mais, mas nós também governamos a nossa vida, nós também temos a nossa voz e nós decidimos muita coisa. Não é só na altura de votar – e nesta também muitas pessoas se abstêm. Nós temos muita força e não sabemos.
Acha então que essa mudança depende não só do Governo, como de cada um de nós enquanto ser individual e da sociedade em geral?
Claro! Cada um de nós, individualmente, tem de ter respeito pela profissão dos professores como pela profissão de um artista, defender que um artista é importante para a sociedade. Nós não temos de ver um artista como um gajo a recibos verdes que nunca sabe quando é que recebe ou não recebe. Esta maneira de ver o artista devia ser mudada no interior de cada um de nós. O artista é aquele que consegue fazer do mundo um mundo muito mais bonito, isso é a profissão mais válida. Há muitos anos perguntavam-me ‘o que é que fazes?’ e eu respondia que tocava guitarra e diziam que era um hobbie. Não, isto não é um hobbie.
Ficamos contentes sabe porquê? Porque temos uma enorme falta de auto-estima. Nós temos uma auto-estima que está lá no lodoOu seja, a sociedade precisa de evoluir na forma como vê o artista…
Eu já fiz a minha parte. Como artista eu faço a minha parte. Eu trabalho a sério. O meu trabalho é trabalho. Agora, se cada um de nós está preocupado com a Cultura, então, cada um de nós tem de levar a sério o trabalho de um artista. O trabalho do artista não é um hobbie. Estamos um bocadinho mal educados como sociedade.
Mas, por exemplo, quando algum artista ganha um prémio internacional, é nomeado, é distinguido lá fora, em Portugal todos se regozijam com isso…
Ficamos contentes sabe porquê? Porque temos uma enorme falta de auto-estima. Nós temos uma auto-estima que está lá no lodo. Porque ‘ah não sei quem ganhou o Festival daCanção’… isso porque não acreditávamos! Nós não dávamos nada por aquilo! Mas alguém o viu estudar a música? Alguém o ouvir cantar antes? Nem sabiam. Uma vez, quando fomos tocar aos Pirenéus, paramos em muitos sítios para descansar e, em Espanha, todos os locais tinha as televisões em canais diferentes e todos a dar música. Ambos os canais davam concertos e eram 4/5h da tarde. Aqui veja lá a que horas é que passam os concertos...é pelas 00h, 01h. Dá sempre fora de horas. Os malucos que queiram ver arte, pronto, passam para a RTP2, veem às 00h30, às 1h15. Isto para mim é o princípio de tudo.
Quando nós estudamos comunicação há um gatekeeping, o gajo que decide o que é que é importante e o que não é. Há uma analogia entre aquilo que as pessoas veem nas notícias que diz o que é que é importante, entre a primeira notícia, a terceira notícia e a prioridade nas nossas vidas com esses temas. O futebol e a Cultura onde é que vêm? Onde é que vem a exposição da pessoa, o lançamento do livro? Vem no fim e quando há tempo. Por isso, antes de falar no Governo e nos ministros, há tanta coisa para corrigir, que está ao alcance de toda a gente. E agora mete-me raiva que ligamos a televisão e é só Covid. Eu sei que é importante, mas calma! Há mais coisas a acontecer. Continua vida. O outro senhor tem o bacalhau para vender. É só mudar um bocado a nossa perspetiva antes de dizer que os outros mudem a deles. Estamos sempre a arranjar bodes expiatórios, mas, a verdade, é que nós todos podemos mudar coisas.
Não coloco as mãos no fogo por ninguém, mas eu gosto dessa atitude. Como é que nós não ficamos contentes com o nosso país? A sério! Eu tenho um orgulho enorme nas nossas pessoasE a Márcia tem feito por isso. Lançou cinco discos, quatro álbuns, teve dois filhos, fez um livro em plena pandemia. O que é que ainda lhe falta fazer da check list? Plantar uma árvore?
Nunca plantei uma árvore, acha normal?! [risos]. Nunca plantei e quero muito plantar porque eu sou uma amante da natureza. Tudo o que me faltava é plantar uma árvore. Aliás, não plantava uma, plantava imensas. Há uns tempos, participei naquela campanha da Gisele Bundchen, quando ela fez 40 anos, para comprar árvores para ela ajudar a replantar a Amazónia. Era tipo pacotes de 20 e eu comprei 40 árvores. Portanto, não plantei, mas comprei essas. Ela é uma mulher incrível e fez esta campanha espetacular. Durante o confinamento também arranjei umas plantas, eu era muito má com plantas. Achava sempre que não tinha capacidade para cuidar, mas afinal cuido muito bem das minhas plantas e já plantei umas quantas, mas uma árvore falta-me. Já vai ser preciso um terreno para plantar muitas árvores.
Como defensora do meio ambiente, pertence a algum movimento, associação…
Não, não, mas sou capaz de discutir com o gerente do hotel porque acho importante. Um gajo ou uma gaja que seja gerente de um hotel, hoje em dia, e não tenha a noção que pode dizer ‘peça apenas aquilo que vai consumir’ e ‘pague apenas aquilo que vai consumir’, se não consegue dar esse passo, é uma pessoa com muito pouca visão do futuro. Vai para a mesa vai para o lixo e isso era um importante passo para um planeta menos poluído e para não falar do sacrifício dos animais em vão, porque muitas das comidas são carne e peixe que vão para o lixo sem terem servido o propósito de alimentar. Isso a mim faz imensa confusão. Agora não me faz só confusão e fico quieta, não. Perco muita energia a explicar [risos].
Um criador de moda, hoje em dia, tem de ter noção que a industria têxtil é das coisas mais poluentes em Portugal. Temos de ter noção que devemos dar a roupa que não usamos em vez de a colocar em contentores, onde fica tudo um lodo. Todos estes passos que conseguirmos dar são importantes. Há algum tempo vi uma campanha onde diziam ‘pense antes de comprar’. Para mim essa marca já ganhou.
Quanto a outro livro, não faço ideia. Isso é como ter um recém-nascido e perguntarem pelo próximo bebé. Por favor, deixem-me lá abraçar este, quero dar miminho a este livro, estou a gostar dele, gosto muito dele, ele é muito meu amigo e já fez muito por mimSente que muitas pessoas ganharam consciência disso durante a pandemia, o confinamento? Que as pessoas estão menos consumistas e pensam mais na sustentabilidade?
Talvez um bocadinho, sim. Acho que com a pandemia ficámos com alguma noção. Não gosto nada de dizer que a pandemia trouxe coisas boas, mas, inevitavelmente ,cada um de nós foi confrontado com o ser interior e isso dá resultados… a mim deu-me um livro [risos], mas também deu divórcios e há a quem tenha dado depressões mesmo muito profundas. Contudo, permitiu, para o bem e para o mal, um contacto forçado com o nosso ser interior. A nível de consumo acho que é bom que haja menos, porque acho muito mais viável consumir uma experiência de ir para fora (cá dentro) dois dias, para ajudar o negócio do turismo em Portugal e apostar nessas experiências em vez de oferecer mais uma camisa, mais uma camisola, ou mais não sei o quê. Por exemplo, a minha sogra, este ano, quis oferecer ao mais pequenito, ao meu filho de 4 anos, uma ida ao Badoka, era uma prenda muito mais engraçada do que oferecer não sei quantas coisas que ele não precisava. Achei isso incrível! Para quem gosta muito de comer, como é o meu caso [risos], a experiência de ir comer a um restaurante de autor.
Mas já antes da pandemia, muita coisa mudou nos últimos anos. Lembro-me de ser pequenina e ver os produtores a colocarem fora maçãs, porque nós importávamos maçãs. Fiquei danada com aquilo porque eu adorava maçãs. E hoje em dia o que é que temos? Temos a fruta feia. Houve pessoas na sociedade que se reuniram, se juntaram e disseram: ‘Não, não vamos deixar isto acontecer’. Devia ser o Governo a fazer? Sim, devia, mas o Governo já está a fazer tanta coisa, ‘bora’ fazer nós. Admiro muito essa proatividade. Não faltam críticas ao Governo, falta é proatividade. É arregaçar as mangas e pôr a mexer.
Por exemplo, o Campo Pequeno, depois do desconfinamento, foi dos locais onde a Cultura foi mais dinamizada. É pôr isto a andar, porque tem de ser, tem de se trabalhar, ‘show must go on’. Não coloco as mãos no fogo por ninguém, mas eu gosto dessa atitude. Como é que nós não ficamos contentes com o nosso país? A sério! Eu tenho um orgulho enorme nas nossas pessoas.
As pessoas estão sempre a criticar, mas eu tenho imenso orgulho porque eu lembro-me de, há cerca de 10 anos, querer deitar o óleo alimentar fora e a Câmara Municipal não saber onde é que eu devia colocar o óleo. E, hoje em dia, há contentores para óleo alimentar porque já perceberam que é das coisas que poluem mais os rios. Vamos devagarinho, devagarinho, mas vamos corrigindo o mundo.
E já está a pensar num próximo álbum ou livro?
Estava a fazer um álbum antes do confinamento, tive de o interromper. Hoje em dia, vou trabalhando nele devagarinho, mas vai sair um álbum diferente, de certeza, porque, aconteceu Covid, aconteceu o confinamento e aconteceu um livro no meio. Quanto a outro livro, não faço ideia. Isso é como ter um recém-nascido e perguntarem pelo próximo bebé. Por favor, deixem-me lá abraçar este, quero dar miminho a este livro, estou a gostar dele, gosto muito dele, ele é muito meu amigo e já fez muito por mim, já me levou a muitos sítios, física e emocionalmente. Estou muito contente com este livro e quero que as pessoas tenham tempo de o descobrir e descobrirem a si próprias através dele.
Onde e quando são os próximos concertos?
Agora só tenho concertos agendados para janeiro. Quero pegar nestas coisas que estou a pensar, nas canções, continuar nos meus desenhos. Estou a gostar disso.