O cinema de animação em Portugal está a atravessar um bom momento. Através de projetos de realizadores portugueses que fazem sucesso além-fronteiras ou de produções estrangeiras nos quais colaboram profissionais portugueses. Para este momento positivo muito tem contribuído Regina Pessoa.
Com uma carreira extensa, marcada pela parceria profissional com Abi Feijó, as curtas de Regina Pessoa têm sido premiadas ao longo dos anos em festivais nacionais e internacionais. Assim foi com 'A Noite' (1999), a sua primeira curta, mas também com 'História Trágica com Final Feliz' (2005) e 'Kali, o Pequeno Vampiro' (2012).
Agora, o filme 'Tio Tomás, A Contabilidade dos Dias' (2019) está a ser aclamado pela crítica e a conquistar prémios. Esteve na 'shortlist' para os Óscares, mas não conseguiu a nomeação na categoria de Melhor Curta-Metragem de animação.
Nada que tenha desanimado a realizadora. Em entrevista ao Notícias ao Minuto, Regina Pessoa não escondeu "uma pequena frustração", mas sublinha que "já foi muito bom chegar à 'shortlist'" e que acha que "são eles que perdem".
Até porque o filme ganhou um dos prémios mais cobiçados no universo da animação. 'Tio Tomás, A Contabilidade dos Dias' conquistou nos Annie - considerados os 'Óscares' do cinema de animação - o prémio na categoria de Melhor Curta-Metragem.
A curta tem um valor sentimental importante para Regina Pessoa, uma vez que é sobre o seu tio Tomás, uma pessoa que teve um grande impacto na sua vida e que a realizadora queria homenagear, focando-se na sua obsessão pelos cálculos e pelos números. Tal como aconteceu em filmes anteriores, também 'Tio Tomás' se destaca pelo desenho em gravura, um estilo que é já uma marca que distingue o trabalho de Regina Pessoa.
Face ao momento que a animação portuguesa atravessa (houve outros portugueses vencedores nos Annie), isto apesar de não existir uma indústria da animação em Portugal, Regina Pessoa espera que permita um maior reconhecimento em solo nacional para deixar de ser o "parente pobre do cinema" e que ajude a penetrar na difícil indústria de Hollywood.
Quando decidiu que queria fazer cinema de animação?
Não decidi propriamente. As coincidências decidiram por mim. Eu nunca estudei nem cinema nem animação, mas estudei pintura nas Belas Artes do Porto e a dada altura precisava de um part-time para complementar a bolsa que tinha. Encontrei umas pessoas que trabalhavam com o Abi Feijó e que me disseram 'Vai ao estúdio. Nós estamos a precisar de gente'. Eu fui lá, mostrei os meus desenhos e o Abi disse-me 'Começas amanhã'. E foi assim que eu tomei conhecimento deste lado da animação, da animação de autor, que eu não conhecia e que foi uma surpresa para mim, ver que havia este tipo de formato e de linguagem. Eu acabei o curso de pintura mas nunca deixei de trabalhar em estúdio a partir daí. E pouco a pouco a animação sobrepôs-se à minha formação em pintura e eu segui esta via.
E a animação foi um amor à primeira vista?
Foi uma surpresa. Este tipo de linguagem e formato seduziu-me. Também o contraste com o mundo da arte que é muito mais formal, competitivo e ambicioso. No mundo da animação de autor o ambiente era muito mais amigável e acolhedor. E depois foi a oportunidade de explorar em movimento o tipo de visuais que gosto de desenvolver, os visuais plasticamente ricos, e isso era possível em animação, colocá-los em movimento e com toda a linguagem do cinema associada.
O meu tio era uma pessoa um pouco excêntrica na sua personalidade e tinha muitas obsessões, uma delas e a principal, era a sua obsessão pelos cálculos e pelos números
A técnica de desenho e gravura é uma marca do seu trabalho. Por que razão gosta tanto de trabalhar a animação em gravura? É a influência da memória de infância de quando desenhava com carvão da fogueira na casa da sua avó?
Essa é uma questão que coloco a mim própria. Acho que foi influência do facto de usar a gravura animada enquanto estudante de Belas Artes. Esse era o tipo de visual que gostava de explorar. Portanto acho que há um defeito de formação associado. Por um lado, eu pergunto a mim própria, tentando fazer uma espécie de autoanálise, se não terá haver também com esse início e de como comecei a desenhar com o carvão nas paredes brancas, essa estética do claro-escuro. Por outro lado, o primeiro filme que eu vi na vida foi 'A Quimera do Ouro' do Charles Chaplin e que era a preto e branco. Apesar de ser muito pequenina, tinha quatro anos, lembro-me muito bem. Tentando fazer alguma autoanálise, não sei se isto não teve alguma influência nas minhas escolhas cromáticas.
Quando surgiu a ideia para fazer esta curta, 'Tio Tomás, A Contabilidade dos Dias'? Era um projeto que já tinha pensado há mais anos ou foi algo mais recente?
Era algo que já tinha intenções de fazer há muito tempo. Queria prestar um tributo aquela pessoa, que acabou por ser muito importante na minha vida, no que eu faço e como sou. Por outro lado, o meu tio era uma pessoa um pouco excêntrica na sua personalidade e tinha muitas obsessões, uma delas e a principal, era a sua obsessão pelos cálculos e pelos números. Ele achava aquilo tudo muito fascinante e misterioso.
Eu tinha a intenção de fazer algo com esse universo. Quando ele morreu, eu quis ficar com o máximo que podia de documentos dele, as folhas de cálculos. Ele também tinha diários e eu fiquei com vários desses diários. E fiquei com alguns pequenos objetos que faziam parte da sua personalidade: os seus canivetes, os objetos que usava para essa contabilidade, como as réguas, objetos de escritório. Eu achava tudo isto muito bonito esteticamente, para além de que ver aqueles objetos era vê-lo a ele.
Quando ele faleceu, fiquei com esses objetos mas não peguei imediatamente nesse projeto. A morte dele ainda era recente e não tinha coragem de quebrar o selo, abrir os diários dele e imiscuir-me na sua escrita. Eu pensava 'Será que tenho o direito de mexer nas coisas pessoais dele?'. Ainda fiz outro filme antes de pegar nesse material. Fiz o 'Kali, o Pequeno Vampiro'. Quando acabei esse filme, já tinham passado vários anos, e comecei a quebrar esse selo, a abordar esse material e a começar este projeto. Em 2012/2013 comecei vagamente a abrir a caixa de Pandora.
Qualquer autor tem o seu egozinho, e claro que é reconfortante ganhar prémios para a nossa autoconfiança, mas eu estou contente com o filme e isso já é um prémio para mim
O 'Tio Tomás, A Contabilidade dos Dias' tem um simbolismo especial para si, tendo em conta o lado pessoal, o facto de servir para homenagear o seu tio. Isso faz com que todo este sucesso que o filme está a ter tenha um significado ainda maior?
Tem e não tem. Aliás, é engraçado e irónico que uma pessoa tão simples e tão humilde, completamente desconhecida, de repente se torne tão famosa. Acho piada a isso. Mas eu envolvo-me totalmente nos filmes. É o meu processo de trabalho, preciso de ter uma motivação importante para fazê-los. Acho que sou o meu juiz mais exigente e estou muito atenta ao resultado. Tento chegar ao resultado que ambicionei e imaginei. Coloco essa pressão sobre mim própria e quando acabei o filme fiquei muito contente com o resultado e comigo própria. Acho que fiquei em paz, não só pelo resultado cinematográfico, mas também pelo lado pessoal. Perguntava-me se faria justiça ao meu tio, encontrando um equilíbrio necessário entre a história pessoal e um filme para ser mostrado publicamente. Gostei muito do resultado e isso deu-me bastante tranquilidade.
Quando o filme começou a circular em festivais, comentei com um amigo meu, que foi meu conselheiro de guião, num dos festivais onde o filme foi exibido, 'Aqui não houve prémio' e ele respondeu-me 'Regina, o filme é o prémio'. E de certa forma ele tem razão. O facto de eu já estar contente com o resultado completa-me. Qualquer autor tem o seu egozinho, e claro que é reconfortante ganhar prémios para a nossa autoconfiança, mas eu estou contente com o filme e isso já é um prémio para mim.
A 'shortlist' dos Óscares é sempre um espaço ingrato. É estar quase lá mas não estar lá
A produção de uma curta de animação é um processo demorado e bastante intenso, quer-me parecer. Pode descrever o processo para o filme 'Tio Tomás, A Contabilidade dos Dias'?
Nos meus filmes anteriores eu desenvolvi a técnica de gravura animada e neste filme eu queria continuar a desenvolver isso. Claro, a ambição de qualquer realizador é continuar a evoluir e desenvolver o seu estilo pessoal. Mas por outro lado, este filme era sobre uma pessoa que realmente existiu e eu guardei os tais objetos dele, e queria usar isso no filme. O meu desafio era como fazer isso. Se eu usasse os objetos obviamente tinha de usar outro técnica de animação que não é a minha normal, que é o stop motion, a filmagem imagem por imagem de volumes, objetos ou marionetas. Portanto, estava num dilema entre usar a linguagem que já me caracterizava, que é a animação 2D, mas também queria usar os objetos do meu tio. Uma parte da preparação deste filme foi encontrar uma forma de usar essa técnica mista, usar a minha linguagem pessoal com a animação stop motion e apresentar isso de uma forma coerente, encontrar um visual coerente. Foi esse o desafio e estou muito contente com o resultado.
Tendo em conta a quantidade de filmes candidatos, estar na 'shortlist' para os Óscares na categoria de Melhor Curta-Metragem de Animação já foi uma vitória?
A 'shortlist' dos Óscares é sempre um espaço ingrato. É estar quase lá mas não estar lá. Já tinha tido essa experiência com 'História Trágica com Final Feliz', não consegui a nomeação e pensei que isso não se iria repetir. Pensei que desta vez teria a oportunidade de conseguir a nomeação. Não aconteceu e tenho de aceitar com dignidade. São as regras do jogo. Os Óscares têm outro tipo de abordagem e, claro, há uma pequena frustração, mas eu aceitei as regras do jogo e encarei o resultado com naturalidade.
Além disso, a minha atitude antes de serem divulgadas as nomeações era viver o sucesso de cada etapa com alegria e desfrutar, e não sofrer por antecipação. Foi isso que fiz. Quando a inscrição do filme foi aceite, eu fiquei contente e vivi aquele período satisfeita. O período da 'shortlist' também. Não consegui a nomeação, paciência. Acho que são eles que perdem, não sou eu. E já foi muito bom chegar à 'shortlist'.
Em Portugal a animação ainda é encarada como o parente pobre do cinema. Muitas vezes basta um espirro para um filme de imagem real ser reconhecido, nós precisamos de dar três saltos mortais para trás para alguém reparar em nós
Que importância teve para si receber o Annie, considerado o 'Óscar' do cinema de animação, para Melhor Curta-Metragem?
É claro que qualquer profissional da animação fica extremamente contente com este resultado, não é? É importante a vários níveis. A nível pessoal há aquela satisfação. Quase todos os artistas têm um lado muito inseguro e esse equilíbrio entre a insegurança e a confiança para continuar é alimentado por este tipo de acontecimentos. Este tipo de prémio ajuda ganhar confiança e a continuar o trabalho. E também é importante penetrarmos, quer as curtas de animação, quer o cinema português de uma forma geral, naquele universo da indústria de Hollywood. Conhecerem o nosso trabalho, conhecerem o nosso nome, saberem que Portugal é um país que faz filmes que chegam a esse patamar.
É importante porque aqui em Portugal a animação ainda é encarada como o parente pobre do cinema. Muitas vezes basta um espirro para um filme de imagem real ser reconhecido, nós precisamos de dar três saltos mortais para trás para alguém reparar em nós. Chegarmos a este patamar é excecional e chama a atenção das pessoas para este tipo de linguagem das curtas-metragens de animação, e isso é importante para dar a conhecer este tipo de produto e conseguirmos algum destaque.
A realizadora pretende prestar um tributo à mãe no seu próximo projeto© Rui Farinha
Nos Annie foram premiados outros portugueses e havia uma outra produção portuguesa nomeada para Melhor Curta-Metragem de Animação. Este bom momento pode servir para impulsionar ainda mais o cinema de animação português?
Neste momento de facto há uma série de profissionais da animação portuguesa, sobretudo nas curtas, que fazem um trabalho muito sério, muito bom, de muita qualidade. E nós ainda não temos indústria da animação em Portugal, o que é irrisório. Por exemplo, o filme do Alexandre Siqueira (realizador brasileiro do filme 'Purpleboy', uma produção portuguesa) conseguiu chegar às nomeações dos Annie, entre outros prémios que já ganhou. O Alexandre é um caso, mas há também o Vasco Sá e o David Doutel, que são muito sérios no trabalho que fazem, com resultados extraordinários. A dupla Alexandra Ramires (conhecida também como Xá) e Laura Gonçalves, que tem feito um trabalho excelente. A Mónica Santos e a Alice Guimarães, outra dupla que tem tido resultados fabulosos. Eu conheço-os a todos e conheço a sua atitude. São pessoas sérias, que se esforçam por fazer um trabalho que no final lhes dê satisfação, e acho que isso é muito importante.
Espero que estes autores que mencionei continuem com a qualidade e o nível de trabalho que têm desenvolvido, e que estes resultados que eu tive e que eles têm encoraje a geração seguinte a seguir a mesma via e a desenvolvê-la ainda mais.
A curta-metragem é o formato perfeito para o meu tipo de linguagem e o tipo de de conteúdo que gosto em animação. Eu não costumo ver as longas-metragens de animação, aborrecem-me
Apesar da quantidade de prémios que já conquistou, até com filmes anteriores, assegurar apoios continua a ser o principal problema quando pretende avançar com um projeto novo?
Claro. Sem dúvida. Esse financiamento e a política de cultura do Instituto Português de Cinema é essencial. Temos tido sorte por esses apoios se terem mantido, o que tem permitido os bons resultados presentes da animação portuguesa. Mas lembro-me de pelo menos dois projetos, 'História Trágica com Final Feliz' e 'Kali, o Pequeno Vampiro', em que mesmo tendo esse apoio confirmado, houve anos de crise em que esse apoio foi suspenso e eu tive que esperar, por vezes quase um ano, para receber esses fundos. Isso é muito problemático e quando acontece dá cabo de qualquer iniciativa e produção.
Esse é também um dos motivos que me leva a procurar coproduções porque tenho sempre medo que surja um desses momentos maus, como foi o caso da suspensão dos fundos em 2011 ou 2012. Com as coproduções, se houver algum problema com o financiamento português há o financiamento de outro país, que vai alimentando o filme e a produção não para.
Tem planos para uma longa-metragem de animação? Esta questão do financiamento fá-la pensar duas vezes?
Não tenho planos para uma longa-metragem e não é por uma questão de financiamento, é mesmo por uma questão de ideologia. Acho que a curta-metragem é o formato perfeito para o meu tipo de linguagem e o tipo de de conteúdo que gosto em animação. Eu não costumo ver as longas-metragens de animação, aborrecem-me. O meu formato de eleição e que me convém é a curta. Acho que é o que se encaixa melhor na animação e é por aí que vou continuar.
A Netflix apostou a fundo e derrotou a indústria tradicional e pesada de Los Angeles, a indústria de animação
Já tem alguma ideia para o seu próximo projeto?
Já tenho o projeto, já tenho o apoio para a escrita e para o desenvolvimento. Ao acabar o 'Tio Tomás' estive a apoiar o circuito do filme e entretanto estive a acabar um outro projeto, ainda não tive tempo de lhe pegar. Vai ser novamente nesta via autobiográfica. Eu pretendo fazer um tributo à minha mãe. A minha mãe era uma pessoa diferente, e essa é uma das características do meu trabalho e não é por acaso. Eu pego nestes temas porque são os modelos que conheci em criança.
A minha mãe tinha esquizofrenia. Eu cresci de forma diferente ao lado da minha mãe, e no final da vida dela descobri que ela sabia desenhar e acabei por fazer uma coleção de desenhos dela. Já com 80 anos ela desenhou uma coleção de caras no meu iPad. São desenhos muito simples, muito infantis, mas com uma força e uma expressão que são impressionantes e eu quero usar isso no filme.
Nesta edição dos Óscares há um grande impacto das produções da Netflix nas nomeações. Qual a importância da entrada destas plataformas de streaming no mercado das produções cinematográficas e de séries televisivas? Estas plataformas estão, por exemplo, a financiar filmes que eram rejeitados pelos estúdios de Hollywood.
Está a mudar tudo. Eu assisti a isso no fim de semana na cerimónia de entrega dos Annie. Quem ganhou foi a Netflix, com o 'Klaus' e com o 'J'ai Perdu Mon Corps'. Foram os filmes de animação em que a Netflix apostou. Curiosamente, eles estão a apostar em autores europeus que têm uma linguagem mais pessoal. A Netflix apostou a fundo e derrotou a indústria tradicional e pesada de Los Angeles, a indústria de animação. Eles levaram os prémios principais quase todos nas categorias dos Annie. Os grandes estúdios como a Disney, a Pixar e a Sony ganharam nas categorias secundárias. É impressionante. O cinema está a mudar. A forma como as pessoas vêem os filmes também está a mudar. Penso que isso vai acentuar-se nos próximos tempos.
Quais são os seus palpites para os Óscares? Que filme acha que vai ganhar na categoria de Melhor Curta-Metragem de Animação?
Na categoria de curta de animação, no panorama atual, não há nenhum que me apaixone completamente. Apesar de tudo, naquela lista eu prefiro o 'Dcera' ('Daughter'), que é um filme checo. Para longa-metragem de animação eu queria que ganhasse o 'J'ai Perdu Mon Corps', um filme francês e eu conheço o realizador, o Jérémy Clapin, ele vem da curta-metragem de animação e é uma abordagem mais independente naquele panorama. Para Melhor Filme Internacional eu gostava que vencesse o Almodóvar com o 'Pain and Glory', por uma questão afetiva. Nas categorias de Melhor Filme e Melhor Realizador ainda estou a analisar.