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"Comprar um animal para parecer 'cool' e sociável? Isso é puro ego"

Joana Roque, da Sociedade Protectora dos Animais, é a entrevistada de hoje do Notícias ao Minuto.

"Comprar um animal para parecer 'cool' e sociável? Isso é puro ego"
Notícias ao Minuto

22/05/18 por Melissa Lopes

País Joana Roque

Joana Roque, advogada e coordenadora executiva da Sociedade Protectora dos Animas (SPA), associação vanguardista na defesa dos direitos dos animais em Portugal, defende, em entrevista ao Notícias ao Minuto, uma maior responsabilização individual da sociedade, até porque a associação não consegue aceder a todos os pedidos, por falta de meios humanos e económicos. Não se cansa de apelar, "e isto devia ser escrito em letras garrafais", para que não se compre animais. "Não compre, não faça isso, um animal não é uma coisa", diz, incentivando, em alternativa, à adoção. 

Joana tem "fé" que a sociedade evolua no sentido de se respeitar o direito à vida de todos os seres-vivos do Planeta e que, um dia, o lóbi da indústria pecuária conheça o seu fim. 

A Sociedade Protectora dos Animais (SPA) existe há mais de 100 anos. Qual a missão desta associação tão vanguardista no nosso país?

A Sociedade Protectora dos Animais é a mais antiga associação de Portugal. Foi fundada a 28 de novembro de 1875, cumpre este ano 143 anos. Com tudo o que pressupõe a inexistência de qualquer associação animalista, de proteção de animais em Portugal, tem vindo a sofrer sucessivas adaptações, não só ao sistema legislativo que temos como à própria sociedade.

Ao contrário do que as pessoas pensam, a Sociedade Protectora dos Animais não foi feita para defender apenas 'o cão e o gato'. As primeiras manifestações públicas que a associação fez eram exatamente contra os maus-tratos a animais que iam para o matadouro, que atravessavam a cidade, nomeadamente os bois, as vacas, os porcos, porque antigamente as pessoas traziam os animais dos seus locais e iam com eles a pé, a bater-lhes com uma vara.

E agora, curiosamente, continua a ser um tema, o transporte de animais até ao matadouro.

Sim. É um tema que começou a ser debatido fortemente nos últimos 20 anos. Antigamente, as pessoas diziam que “é para comer, não faz mal”, a associação manifestou-se porque não era admissível que os animais fossem mal-tratados, ainda que fossem destinados a matadouro.

Desde essa manifestação, a Sociedade Protectora dos Animais tem vindo a tomar várias medidas. Foi a primeira associação a fazer processos judiciais porque foi fundada por juízes desembargadores. Daí a natureza tão vanguardista. Não era habitual, naquela altura, haver uma associação com estatutos únicos que falavam da defesa dos animais, do respeito por todos os seres-vivos, não só pelo cão e pelo gato. Esta associação tem um grande cariz de proteção, aconselhamento e defesa dos direitos dos animais, muito vocacionado para dar informação à comunidade e, também, encaminhar denúncias para as autoridades. À parte disso, tem três clínicas veterinárias, um hotel para animais em Tavira e um abrigo SOS para os nossos animais, sem condições para acolher mais animais errantes.

Há associações que são feitas com o intuito de acolher cães e gatos errantes. Esta associação não foi feita com esse intuito Mas não têm condições? Sendo um abrigo…

Porque não existe espaço físico. Há associações que são criadas com o intuito de acolher cães e gatos errantes. Esta associação não foi feita com esse intuito. Foi constituída para defesa dos direitos dos animais, numa perspetiva de consciencializar as pessoas do seu papel em relação a qualquer animal.

Uma das vossas bandeiras é incentivar a adoção de animais. Quais são as principais barreiras ou entraves?

Em primeiro lugar, nenhum animal é dado para adoção sem ser feito um escrupuloso escrutínio. Cada animal tem um conjunto de características de personalidade e comportamentais que precisam de ser respeitadas quando é feita uma adoção. Por exemplo, se a pessoa tem um apartamento, se tem uma moradia, se quer adotar um cão novo, ou se quer um cão com mais idade, ou se quer também um cão só para estar a fazer companhia, ou se quer um cão para ir passear à praia, etc. Ou seja, o animal tem de ser adaptado à família, mas a família também tem de ser a adequada para o animal.

Como é que se pode saber isso à priori, de que um animal se vai adaptar à família e vice-versa?

A única forma é selecionarmos, em primeiro lugar, se aquela pessoa tem consciência das necessidades do animal, se tem condições para tomar conta dele e se o próprio animal tem a personalidade adequada àquele adotante. Depois verificamos presencialmente essas condições. É feito um contrato de adoção, em que se a pessoa não cumpre, se não nos deixa visitar, se, de alguma forma, os interesses e o bem-estar do animal não estiverem salvaguardados, nós podemos ir buscá-lo.

Fazem, então, visitas periódicas para confirmar se está tudo a correr bem?

Fazemos. Desenvolvemos uma equipa que pode fazer isso e que acompanha.

Há casos em que o adotante devolve o animal ou porque chega à conclusão que não se adaptou ou porque é mesmo obrigado a devolvê-lo por não ter assegurado as tais condições?

Às vezes a pessoa não é logo indicada como uma adotante, começa por ser indicada como família de acolhimento temporário. Há animais, cujo o temperamento - devido aos maus-tratos, stress e medo - requerem necessidades especiais e não são tão facilmente adaptáveis a tudo. Temos sempre esse cuidado, tentamos providenciar treino especializado, acompanhamento, até ao nível de treino psicológico. As nossas colaboradoras já começam a ter formação nesta esteira e, atendendo a que a própria lei abriu caminho para que tudo crescesse e evoluísse no que toca à proteção animal, também tentamos especializar, facultar treino, que permita aos colaboradores terem o conhecimento necessário para fazerem o acompanhamento. Se correr mal, se a pessoa não se adapta, é fácil: estamos sempre aptos a receber de volta o animal, se for necessário, não queremos é que o animal esteja em stress nem a própria família. Mas há que fazer um esforço. Primeiro, fazemos o treino comportamental, aconselhamento, novas técnicas, usar jogos, estimular o animal, questões básicas de educação de caminhar na trela. Fazemos muito esse trabalho.

E todo esse trabalho terá certamente um custo.

Tem.

E de onde é que vem o financiamento?

Vem essencialmente das quotas dos nossos associados e de donativos.

Não há apoios estatais?

Nunca a SPA recebeu algum apoio. E isto é um problema cada vez mais premente, atendendo a todas evoluções, só é possível crescer e dar outro acompanhamento às pessoas e aos colaboradores, se houver investimento. Nós temos três clínicas, que praticam preços muito baixos para sócios. Estas clínicas permitem, de alguma forma, que os animais possam ter acesso a cuidados médico-veterinários a um preço mais baixo. Permite também que, simultaneamente, possamos acompanhar outros animais errantes e que não têm dono, assim como apoiar aqueles animais que são encontrados na rua e que são adotados.

Há 20 anos, quando a SPA começou a fazer providências cautelares contra a tauromaquia e a largada dos pombos, era algo pitoresco

Falou nas evoluções a nível de proteção dos animais. Isso tem sido particularmente visível com a entrada do PAN para o Parlamento. Podemos afirmar que a sociedade não acompanha esse ritmo de mudança e de evolução?

Tem de haver um período de adaptação. Há muitos anos (anos 90) quando a SPA começou a fazer providências cautelares contra a tauromaquia e a largada dos pombos, era algo pitoresco. Ninguém queria acreditar como era possível sendo algo “cultural”. Nesse tempo, era tudo muito estranho. Agora, há leis que não se encontram devidamente especificadas, são genéricas.

Como por exemplo?

A da entrada em restaurantes, que tem sido falada e que cria opiniões paradoxais.

E qual a sua opinião sobre essa lei?

Acho que era importante, quase todos os países da Europa têm permissão de entrada a animais, acho que era uma lei que era necessária. Encontra-se ainda em evolução, necessitará provavelmente de um decreto de lei regulamentar que venha especificar as condições, à semelhança do que aconteceu com outras leis.

As leis vão ter de se adaptar, cada vez mais, a esta conivência dos animais como parte integrante da sociedade, porque 49,5% da população tem animais domésticos. Existe uma média de dois animais por cada um destes lares.

É claro que esta lei [da entrada de animais em restaurantes] ficou um bocado em branco e caberá aos proprietários aconselharem-se e deviam fazê-lo junto de associações como a SPA. Seria vantajoso e nós temos os conhecimentos técnicos para aconselhar, de acordo com a vontade do proprietário, os limites para a entrada de animais.

Esta lei criou uma indignação visível, sobretudo, nas redes sociais.

Antes havia uma omissão legislativa, a lei não dizia nada, depois passou a ser proibida a entrada e agora foi criada uma nova lei que diz que podem entrar. Passamos de uma omissão para uma proibição e depois para uma permissão. Isto é evolução.

Em última instância, é o dono do espaço que decide se permite ou não a entrada de animais… Ou seja, não vamos passar a ter todos os restaurantes lotados de animais.

Exatamente. Os restaurantes vão ter de ter um espaço reservado em que o proprietário pode definir que ali só podem estar, por exemplo, três cães no máximo. Mas vamos lá ver, toda a gente já leva os animais à esplanada.

Mas compreende os argumentos como o da higiene e do barulho?

Há duas questões que têm levantado esta nuvem conflituosa acerca da lei. A lei não especifica quais são os animais. Pergunta-se: “Posso levar a iguana e coelho?”. Podemos andar com eles na rua e andamos? É uma falsa questão, é criar problemas onde eles não existem. 32 % da população tem cães, estamos a falar de uma pequena minoria que não vai levar com certeza o coelho para o restaurante. Mas o proprietário pode decidir que a entrada é permitida só a cães e gatos ou só a cães. Não é preciso criar um problema onde ele não existe.

A segunda questão, a higiene e o barulho. As pessoas deixam cair cabelo como também os animais deixam cair pelo, como as crianças também sujam. Basta visitarmos a República Checa, a Alemanha, a França, não se vê cães a ladrar todos ao mesmo tempo. Tudo bem que temos que entender que há diferenças culturais e que refletem no comportamento das pessoas, mas é preciso que as próprias pessoas evoluam no sentido de se tornarem mais civilizadas, a respeitarem mais o espaço das outras pessoas e , consequentemente, os animais destas. Esta lei vem num momento oportuno para as pessoas perceberem que, e isto não foi percecionado pela nossa sociedade, para ter um animal têm de ter condições para o ter, para o acompanhar e para o ter educado. Da mesma forma que nós, se tivermos determinados problemas ou se tivermos crianças que gritam muito – não estou a querer comparar – vamos perturbar.

 Se quero levar um animal a um restaurante, tenho de o ter educado. Eu tenho cães e tenho gatos e há uns que posso levar e outros que nãoEsse é outro argumento dos críticos, o de que está a comparar animais a pessoas.

A verdade é que neste momento os animais fazem parte da família, há estudos, e as evidências estatísticas refletem que as pessoas consideram os animais como amigos e parte integrante da família. É uma escolha. Se calhar vamos chegar a um ponto em que as próprias pessoas precisam de treino para educar os animais. Se eu quero levar um animal a um restaurante, tenho de o ter educado. Eu tenho cães e tenho gatos e há cães que posso levar ao restaurante e outros que não.

É uma questão de conhecer bem o animal?

Sim, mas a pessoa também tem de se conhecer a si própria e assumir essa responsabilidade, se o adotou e se o quer levar a um restaurante, saber estar com ele.

Apesar de serem cada vez mais considerados como parte integrante da família, a verdade é que o abandono de animais continua a ser um problema.

É uma coisa que me confrange muito. Na semana passada, recebemos três ninhadas de gatos recém-nascidos, em apenas dois dias. As gatas tiveram os gatinhos e as pessoas agarraram neles, com o cordão umbilical e tudo e deixaram-nos nos caixotes à porta das clínicas. Nós não temos onde os colocar, tivemos de movimentar conhecimentos, pedir ajuda a pessoas particulares. As pessoas não percebem que a associação não tem de resolver todos os problemas. Cada um de nós tem de fazer a sua parte, a associação ajuda e apoia, mas se as pessoas nos sacrificarem com todos os animais e não fizerem a sua parte... A probabilidade de sobrevivência destes gatinhos é muito diminuta. Além disso, não temos como alimentá-los, têm de ser alimentados de duas em duas horas e estar a uma determinada temperatura e nós não temos condições. Deixá-los ali foi a mesma coisa que os entregar à morte. E em dois dias, três ninhadas, mais os pedidos de ajuda de pessoas que encontraram outras, faz-nos pensar que as pessoas não se querem responsabilizar pelos animais que têm.

O bastonário da ordem dos veterinários afirmou inclusive, no verão passado, que a lei que criminaliza os maus-tratos a animais contribuiu para o aumento do abandono.

Acho que o resultado desta lei ver-se-á a médio prazo. Já há estudos, já conseguimos ter uma ideia do impacto, mas iremos ter mais ainda com toda esta mudança de consciência a médio prazo.

O ano passado, a GNR registou 920 crimes, 550 por abandono e o resto por maus-tratos. Apesar disso, a sensação é de que ainda poucos são os casos, desde que a lei existe, a chegar à barra dos tribunais. É isso que acontece?

São casos que estão para julgar. Há uma questão que é a prova, é preciso testemunhas que verifiquem que houve um efetivo mau-trato ou que aquele animal foi abandonado por aquela pessoa. Isto torna-se difícil provar porque o sistema legislativo criou essa criminalização, mas que, em caso de dúvida, absolve-se. Torna-se quase impossível uma condenação sem provas. Essa é a questão. A lei teria de ser invertida ou haver responsabilidade civil quando o próprio dono não assegurou o bem-estar do animal.

Recebem muitas denúncias de maus-tratos e abandono?

Muitas. Recebemos cerca de 30 a 40 contactos telefónicos por dia para situações destas. É muito difícil mesmo.

E qual o papel da SPA perante estas situações?

Damos encaminhamento, damos os contactos das autoridades, aconselhamos, ajudamos a recolher provas que possam servir, quando as pessoas não têm forma de fazer as denúncias, fazemo-las nós diretamente.

Quando se trata de animais abandonados, contactamos a Casa dos Animais de Lisboa, a GNR, a PSP, depende do caso. Explicamos às pessoas como proceder. Mas não podem esperar que nós façamos todo o trabalho. É preciso que cada pessoa que queira contar com a nossa ajuda esteja ao nosso lado para ajudar. É uma responsabilidade da sociedade, não é da associação. Todos fazemos parte e se houver animais abandonados, esses animais vão multiplicar-se, vão ficar doentes, todos nós vamos ver esses animais na rua. Se é algo que nos choca para denunciar, também temos de ver o que é que individualmente podemos fazer. Ser família de acolhimento, por exemplo.

Se encontrou um animal, fique com ele em casa que nós ajudamos a divulgar. A estadia num canil é muito traumática  É o que recomendam quando alguém encontra um animal, ser família de acolhimento?

Se encontrou um animal, tudo bem, fique com ele em casa como família de acolhimento que nós ajudamos a divulgar para encontrar uma família. A estadia num canil é muito traumática. Temos tido apoio e divulgação mas é manifestamente insuficiente para todas as nossas necessidades. Ajuda é ajudar nos casos pontuais, tornar-se sócio, pagar a quota, visitar as nossas clínicas.

O PAN e a SPA comunicam entre si?

Animais não são política. Apesar de o PAN ter uma política a favor da natureza e dos animais, continua a ser um partido. Claro que é muito importante o papel do PAN, mas não podemos misturar as coisas, há que perceber que uma afiliação política não é a mesma coisa que pertencer a uma associação. Há comunicação quando é necessária, há, pois, convergências, há discussão de temas. 

Perguntei porque o PAN, para fazer o trabalho que faz, parece-me que terá de comunicar com as diversas associações que estão no terreno.

Sim, sim. Às vezes há [comunicação], nem sempre. Foi e é muito importante esta existência do PAN, porque pela primeira vez os animais ganharam uma voz que está presente no Parlamento. Mas há muito trabalho a fazer e era preciso ainda mais união, mais apoio, porque faríamos muito melhor.

União e apoio entre?

Entre as associações e o próprio partido. Há muitas iniciativas em que há cooperação e há pedido de apoio mútuo, mas há mesmo muita coisa para fazer. As associações viveram durante muito tempo em sobrevivência. E depois há a questão dos interesses… isto tem de ser cuidadosamente feito, com todo o respeito, porque não estamos a falar aqui de lugares ao sol, de lugares políticos, estamos a falar num bem-estar, num direito à existência, que os animais têm per si.

Nota um acelerar na evolução positiva dessa consciencialização da nossa sociedade?

Comecei a trabalhar nesta questão jurídica há 14 anos. Posso dizer que há, sem dúvida, genericamente e socialmente uma evolução, as pessoas estão mais atentas, mais sensibilizadas. Mas também há muito fundamentalista e isso acaba por baralhar as pessoas, baralha a ideologia da proteção de um animal como um ser que tem direito à vida e ao bem-estar.

Gosto de pensar que todos os seres têm direito a existir no Planeta e que a vida de ninguém pode pôr em conflito a vida de outrém, mas estamos a falar de todos os seres-vivos. É claro que existe uma cadeia alimentar, existe uma hierarquia de sobrevivência. O Homem começou a comer carne porque queria sobreviver e a maneira mais fácil de alimentar a família era a caçar. Atendendo a todos estes factos, acho que é cada vez mais importante que esta consciência seja enquadrada num Planeta, num direito à vida e à existência saudável, com respeito por todos os seres que existem. Espero que isso faça parte desta evolução, mas com certeza que há uma mudança, um maior número de pessoas com maior sensibilidade nesta causa.

Outro assunto muito debatido são as touradas. Está perto o fim da tauromaquia, ou pelo menos do financiamento público a esta prática?

[Suspiros] Essa é uma questão muito complexa, até porque está associada a uma questão cultural.

É uma tradição, dizem.

É uma tradição, mas acima de tudo é algo que está muito enraizado nas pessoas. Há muitas pessoas que não concordam e que não se manifestam contra. Mas, cada vez mais se estão a ver no direito de se manifestarem. Acho que a curto prazo não acabarão. Temos movimentos importantíssimos, como por exemplo o da Basta!, em Portugal.

Acho que vão acabar por deixar de existir, porque em termos legislativos é incompatível e aí é muito importante a sentença dos processos. Porque a lei (dos maus-tratos) é genérica, mas quando as sentenças começarem cada vez mais a ser dadas e os juízes começarem a definir o que é que é maus-tratos e o que é que não é, vão começar a descrever, vão começar a fazer jurisprudência e, ao fazê-lo, vão criar também uma tradição, legislativa no caso.

E perante toda essa consciencialização do sistema judicial, espetar um objecto no dorso de um animal vai ter de ser considerado um mau-trato.

E quanto tempo decorrerá até chegarmos a esse ponto? Uma década?

Talvez menos. Tenho fé que, com tudo o que está a acontecer – a lei dos maus-tratos, a da entrada nos restaurantes, eu iria criar também a entrada e circulação dos animais nas praias -, tudo virá no encaminhamento. Daqui a cinco anos talvez olhemos para trás e [sorriso].

Depois temos os animais em circos que é uma questão premente, não só pela desnaturalização, porque consideramos que o animal é retirado do seu habitat natural e sujeito a uma domesticação que está fora da sua espécie e que não lhe permite estar em liberdade e em condições. Não é só por isso. O princípio, na minha opinião, é respeitar a existência de qualquer ser no Planeta, com direito à vida como todos nós e isso é que será a evolução do ser humano.

Tenho fé que este lóbi da indústria pecuária acabe, que se perceba a poluição que causa o consumo e a produção de animais de pecuária

Não se trata de igualar a vida de todos animais à vida das pessoas?

Não. A questão é que temos animais que são capazes de sentir emoções e se conseguem sentir emoções, conseguem sentir dor, tristeza e outros. Se o animal é capaz de sentir, que direito tenho eu de lhe causar sofrimento do qual o meu sistema judicial me protege de sentir essa mesma dor? O meu bem-estar não obriga ao sofrimento dele. E isto, para mim, terá que ser uma coisa para acontecer dentro de 30, 40 anos. Tenho fé que as pessoas percebam, que este lóbi da indústria pecuária acabe, que se perceba a poluição que causa o consumo e a produção de animais de pecuária. É chocante. O simples facto de comermos leite e queijo sabendo que estamos a inseminar e a encher de antibióticos e de hormonas o animal para nós podermos beber o leite...

E o mal que isso nos faz.

Nenhum animal adulto bebe leite, só nós. Há evidências científicas que não é benéfico e que não há necessidade nenhuma de bebermos leite a partir de uma certa idade. Aliás, a Ásia, continente onde não se consomem laticínios, tem uma taxa de cancro muito inferior e uma longevidade muito superior à nossa.

Mas neste momento há evidências de tudo. Circulam na Internet evidências de uma coisa e evidências do seu contrário. A confusão está instalada.

Teríamos de comer em consciência. Se um ser humano deixa de ter leite, então não devemos beber. Se podemos ir buscar o cálcio e outros nutrientes a outros alimentos, comemos esses alimentos. E depois, que direito tenho eu de fechar uma vaca num espaço onde ela nem consegue dar a volta, prendê-la com um aparelho para retirar o leite, injetá-la, dar-lhe medicamentos, e sujeitá-la a uma vida – que ainda é longa – de tortura? Quem sou eu?

As próprias pessoas vão perceber que não faz sentido, que o ‘não matarás’ se aplica a todos os seresE tem mesmo esperança que daqui a umas décadas isso termine?

Acredito que com a abertura de toda a informação que as pessoas percebam o prejuízo e o sofrimento que as suas ações causam aos animais. As próprias pessoas vão perceber que não faz sentido, que o ‘não matarás’ se aplica a todos os seres. E claro que eu não sou fundamentalista. O porco que era criado e que alimentava uma família. Estamos a falar de uma época de escassez em que aquele animal nutria uma família quase como uma oferenda. Nós não vivemos nesse respeito, o honrar aquele ser.

Não comprem animais! Um animal adotado tem uma sensibilidade e um agradecimento eterno ao seu tutor e fará tudo para o agradar

E relativamente à venda de animais, o que é que preciso ser feito para parar com essa prática?

Não comprem animais! Um animal adotado tem uma sensibilidade e um agradecimento eterno ao seu tutor e fará tudo para o agradar. Há animais extraordinários, com uma disponibilidade para aprender, ele sabe e valoriza a família. Não compre animais! Isto devia aparecer escrito em letras garrafais, não compre, não faça isso, um animal não é uma coisa.

Mas é uma coisa que acontece muito, pagar para ter determinada raça de cão ou de gato.

E é uma moda. Isto o que é que é? Puro ego. Pensar que ter determinado animal corresponde a determinado estatuto ou passa uma imagem para com os outros? Na verdade, o que é procuram? Ser validadas através daquilo que aparentam, tal e qual como com um carro. Comprar um animal? Para parecer que é cool? Sociável? Isto é tudo um reflexo narcisista do ser humano. A lei tem de ser específica: um animal não é uma coisa. Na verdade, o que a lei agora diz é “animais, coisas e etc.”, mas o regime jurídico é exatamente igual. Não é uma coisa mas tem um regime equiparado.

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