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Tem a doença dos 'ossos de vidro', mas é uma "felizarda"

Sandra Gaivota sofre de Osteogénese Imperfeita - vulgarmente conhecida como doença dos ‘ossos de vidro’ -, mas isso não a impediu de viver a vida ao máximo. Como se cuida de um bebé com ‘ossos de vidro’? Como se cresce com esta doença e com a constante possibilidade de lesão? Estas foram as questões que deram o mote à entrevista do Notícias ao Minuto a Sandra e a Céu Barreiros, presidente da Associação de Osteogénese Imperfeita.

Tem a doença dos 'ossos de vidro', mas é uma "felizarda"
Notícias ao Minuto

08:30 - 03/12/17 por Filipa Matias Pereira

País Carreira

"Não é o fim da vida”, mas é, certamente, o início de um novo capítulo, repleto de percursos sinuosos e de ‘parágrafos’ inesperados, aquele que se inicia quando é feito o diagnóstico aos doentes que sofrem de Osteogénese Imperfeita – também conhecida como doença dos ‘ossos de vidro’.

Embora a grande maioria dos casos diagnosticados se enquadre no Tipo I, a forma mais moderada da doença, há quadros clínicos de formas mais severas e, por isso, a infância destas crianças não é a que tradicionalmente conhecemos.

O ‘livro’ começa a escrever-se quando surge a primeira fratura, apenas com alguns meses de vida, sem que nada o fizesse prever e aparentemente injustificável. Seguem-se semanas de recuperação e de imobilização da fratura, numa altura em que as brincadeiras não deveriam ser trocadas por uma cama de hospital.

Há, porém, casos em que a situação é diagnosticada ainda durante a gestação. E, para ilustrar um destes casos, recorremos à ficção. Certamente os fãs de Anatomia de Grey recordar-se-ão do aborto a que April Kepner teve de se submeter. O primeiro filho de Kepner e de Jackson Avery tinha Osteogénese Imperfeita Tipo II, designada pelos especialistas como a forma mais letal da doença. Ainda no útero, o feto já tinha fraturas, o que o impedia de movimentar as pernas. Caso sobrevivesse ao parto, teria apenas algumas semanas de vida.

Como se cuida de um bebé com ‘ossos de vidro’? Como se cresce com esta doença e com a constante possibilidade de lesão? Como recebe a família uma notícia destas? E como reage? Estas foram algumas das questões a que o Notícias ao Minuto tentou responder, em conversa com Maria do Céu Barreiros, presidente da Associação Portuguesa de Osteogénese Imperfeita (APOI), e com Sandra Gaivota, portadora da doença.

Refira-se que esta é uma patologia rara, congénita, que afeta a produção de colagénio, responsável por variados graus de fragilidade óssea, sendo que um traumatismo ‘minor’ é suficiente para causar fraturas e deformações ósseas. Apresenta-se em diferentes formas clínicas, com características e prognósticos bastante heterogéneos, desde formas muito leves às gravíssimas (geralmente caracterizada em quatro tipos).

Uma vida de fraturas, mas vivida ao máximo

Sandra Gaivota tem 48 anos e sofre de Osteogénese Imperfeita. E estes 48 anos anos de convivência com a doença dão-lhe sabedoria e legitimidade para abordar o assunto, passando o seu testemunho e história de vida para quem se vê ‘a braços’ com a patologia.

Aos seis meses fraturou o crânio. Aos 18, a omoplata. Partiu o fémur duas vezes. Foi operada à coluna; aos dois joelhos e depois ao pé. Partiu a bacia aos 13 anos, “a pior lesão de todas”, conta. Este é, resumidamente, o histórico de fraturas que figuram no quadro clínico de Susana.

Foi diagnosticada com a doença após ter feito a primeira fratura, mas teve “um crescimento normal”. Apesar de só ter começado a andar quase aos dois anos porque “não tinha força nas pernas”, tal como os irmãos “gostava de jogar à bola” e de fazer outras tantas brincadeiras típicas da idade. E não se privava de nada. Porém, de vez em quando, “lá ia o Bernardo dizer à minha mãe: Senhora, a menina magoou-se” - Susana nasceu em Angola e Bernardo era o criado que ajudava a cuidar da família.

Até aos 30, “praticamente não tive fraturas”, revela. “E das que fiz recuperava rapidamente”, acrescenta. Mas, já diz o ditado, ‘a idade não perdoa’ e no caso da Osteógenese Imperfeita não é exceção. Em 2016 “fiz a última fratura do fémur e tive de pôr uma cavilha do lado esquerdo, que é onde tenho mais dores. Os médicos já me disseram, inclusive, que daqui a alguns anos vou ter de pôr uma prótese”, adianta.

Susana teve o primeiro contacto com a APOI quando, na faculdade, quis fazer um trabalho académico sobre a doença. E foi no primeiro congresso dinamizado pela Associação que contactou, pela primeira vez, com pessoas que têm a mesma doença. “O primeiro pensamento assim que entrei na sala foi: Sou uma felizarda”. Apesar de ter a patologia, “consigo andar pelas minhas pernas. Sou autónoma”.

Esta atitude positiva perante a doença – e “alguma inconsciência”, confessa – fizeram com que Sandra encarasse a vida com normalidade. “Fui para a neve e dei cabo de um joelho e houve outra altura em que, ao andar de carros de choque, levei um embate e o ombro soltou-se do sítio”, recorda, sem dar importância em demasia ao assunto. Sandra Gaivota, professora, é, de facto, uma otimista por natureza e, ao longo destes anos, quis viver a vida ao máximo, sem deixar que a Osteogénese tornasse a sua vida ‘imperfeita’.

Céu Barreiros, presidente da APOI, é cardiopneumologista e mãe de uma jovem de 18 anos com Osteogénese Imperfeita. O outro lado ‘da moeda’; o lado que não sofre as dores físicas, mas de uma ‘dor do coração’ que se acende perante o choro de um filho.

O impacto da doença, para Céu Barreiros, “tem que ver com a forma como se encara a doença e os problemas só têm a dimensão que a nossa cabeça quiser que eles tenham”. E este impacto pode ser visto de dois quadrantes: pelo prisma dos doentes e pelo olhar das famílias porque há situações em que “os bebés nascem numa família onde já há a patologia e, portanto, existe conhecimento e os elementos acabam por se adaptar à situação”. E depois “há casos em que a criança surge de novo numa família que nunca tinha ouvido falar da doença. E isto pode trazer modificações brutais na forma como a família está estruturada e se organiza”, explica a presidente da APOI.

Marta, a filha de Maria do Céu, fez a primeira fratura com apenas dois meses: “Um fémur, a dormir. Ficou imobilizada com gesso”. E no dia seguinte a ter tirado esse gesso, “fez uma fratura no outro fémur”. Nessa altura, “sem um diagnóstico, não sabíamos muito bem o que esperar”. Ficava “o receio de que a situação se repetisse”, recorda. E um ano e meio se passou até que os médicos chegassem a um diagnóstico.

Durante esse período, “vamos aprendendo pequenos truques de como é que mudamos a fralda, ou pegamos ao colo, por exemplo. Mas acaba por ser algo que entra na rotina”, defende. Além do impacto na família, os efeitos colaterais da Osteogénese Imperfeita manifestam-se igualmente no seio de amigos e pessoas próximas: “Sentíamos que os nossos amigos nem sabiam como lidar connosco. Mas esta doença não é o fim da vida. Todas as patologias deixam marcas, e essas podem ser maiores ou menores dependendo da forma como conseguimos lidar com a situação. Por isso, acabámos por contornar a questão e quem tinha medo de pegar na bebé fazia-o com a ajuda da alcofa e acarinhava-a da mesma forma. E toda a gente percebeu que a menina era feliz”.

Uma das questões com a qual os pais se deparam prende-se com a acusação de maus tratos. “Por mais que me choque, é compreensível”, defende, acrescentando que “chegar com um bebé de dois meses ao hospital com uma fratura do fémur, de facto, não é normal. E mal seria que os profissionais de saúde achassem que é usual".

Para lá disso, pode ser muito difícil diagnosticar a doença "se não houver deformações óbvias dos ossos e do esqueleto. Só especialistas já muito experientes é que podem achar que aquele osso pode ter alguma coisa de anormal. Também me lembro de chegar ao hospital com a Marta e o pediatra e o ortopedista me olharem de forma desconfiada, recriminatória, porque não havia causa aparente, por isso achavam que seria um mau jeito que eu teria dado com a perna da bebé”, defende. 

Apesar das circunstâncias, Céu nunca teve medo de pegar na filha ao colo. “Tomara eu que a tivesse deixado cair”, afirma perentoriamente. “Recriminar-me-ia para o resto da vida, mas sabia que tinha sido eu”, explica. Porém, “a questão é que eu não estava com ela ao colo. Ela estava a dormir na cama dela quando acordou num choro aflitivo”.

Hoje em dia, Marta tem “um tipo de Osteogénese aparentemente leve porque teve a sorte de ser das primeiras crianças a começar a fazer tratamento em Portugal que a ajudou a ganhar mais consistência óssea”. E, desde então, “a evolução tem sido fantástica. O decurso da doença mudou totalmente. Aquilo que teria sido uma forma grave – comprovada pelos exames genéticos - foi modificado pela medicação. E hoje ela faz uma vida independente”. Apesar “de já ter feito 15 fraturas, o importante é que recuperou. Por isso também me considero uma felizarda”, assume.

Enquanto doença crónica que é, a Osteogénese Imperfeita “não tem um tratamento definitivo e os fármacos são mais vocacionados para tratar os sintomas”. Neste contexto, Maria do Céu Barreiros recorda que, há duas décadas, foi introduzida uma medicação, os bifosfonatos, que correspondem a um grupo de fármacos que são utilizados também para outro tipo de doenças ósseas, como a osteoporose.

O medicamento mais “disseminado pelo mundo é o pamidronato, um fármaco do grupo dos bifosfonatos e há ainda uma grande abertura em termos de investigação. Por isso, esperamos que, nos próximos anos, os medicamentos não só tragam mais benefícios aos doentes, mas que deem também resposta às situações que não têm resposta com a medicação que há no mercado”.

Questionada sobre o tipo de apoios que o Estado disponibiliza aos doentes com esta patologia, Céu Barreiros explica que a APOI está na “expectativa do que vai resultar de um projeto que foi recentemente aprovado com o objetivo de promover a vida independente". A Osteogénese Imperfeita só em situações muito raras é que causa dependência total, já que 80 a 90% dos casos se enquadram no tipo I, a forma aparentemente mais leve da doença.

Porém, "embora o número de pessoas com dependência seja mais reduzido estas também são as mais abandonadas. Para quem tenha uma deficiência e seja dependente a ponto de necessitar de ser institucionalizada, a Segurança Social comparticipa com um valor para que a instituição possa cuidar desta pessoa a tempo inteiro”.

Já quem, “em pleno gozo das suas capacidades mentais, não quer ir para uma instituição, optando por contratar uma pessoa para cuidar de si no domicílio, não usufrui do mesmo valor. O Estado, com esta atitude, estava a promover mais a institucionalização do que a integração no seio da família e da sociedade”.

APOI: "O caminho faz-se caminhando"

Oficializada em 2006, a Associação Portuguesa de Osteogénese Imperfeita tem uma génese familiar e “todos os elementos são voluntários”, refere a presidente.

Entre as atividades dinamizadas destacam-se os programas educacionais e os eventos com o obejtivo de capacitação dos doentes, de sensibilização da comunidade, de cooperação internacional, científica e de investigação.

A Associação está focada na “educação para a saúde das famílias e procura estimular os profissionais desta área a ganharem mais interesse na doença para investigarem. E neste momento estamos a colaborar até num trabalho que está a ser feito a nível nacional, liderado pelo Hospital de Santa Maria, no domínio da genética”.

Contudo, destaca Céu Barreiros, “continuamos a ter uma dificuldade porque não há muita tradição de associativismo no país. Dentro das famílias é importante que as pessoas percebam que é legítimo reivindicarem, mas enquanto não nos unirmos e não tivermos uma estrutura com peso significativo será difícil chegarmos às autoridades competentes”, remata.

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