A Unidade Reconstrutiva Génito-Urinária e Sexual (URGUS) do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra (CHUC) foi criada em 2011 como a solução do Serviço Nacional de Saúde (SNS) para uma área que, à data, estava sem resposta: a cirurgia de reatribuição sexual nos casos de Disforia de Género. A URGUS, esclareça-se à partida, não é, no entanto, um núcleo exclusivamente dedicado a estes procedimentos.
“Tem como objetivos a avaliação e intervenção médico-cirúrgica de malformações génito-urinárias, lesões resultantes de traumatismos por acidente ou queimadura, situações de intersexo e cirurgia de reatribuição sexual nos casos de Disforia de Género. Esta última área de intervenção é a que tem sido mais mediatizada apesar do trabalho global desenvolvido”, explica o núcleo, por e-mail, ao Notícias ao Minuto.
Ainda assim, e atendendo à natureza extremamente delicada e complexa do trabalho desenvolvido nesta área em particular, é precisamente sobre os casos de Disforia de Género que têm recaído algumas críticas.
No início de março, um grupo de cerca de 90 pessoas enviou uma carta à Comissão de Saúde denunciando alegadas “dificuldades” e “más práticas” por parte da URGUS. Os seus signatários queixam-se de “abandono” por parte do SNS, sendo as críticas dirigidas, portanto, um pouco além da unidade multidisciplinar do CHUC.
A morosidade dos processos de avaliação
Desde 1995 que as cirurgias de reatribuição de género estão previstas na lei mas só começaram a ser realizadas em 1999 no Hospital de Santa Maria, em Lisboa. Serviço que se manteve até 2011, altura em foi criada a URGUS, em Coimbra, para dar continuidade a estes casos. Este núcleo dispõe de uma equipa multidisciplinar que inclui especialistas em Sexologia (Psiquiatras, Psicólogos), Endocrinologia, Ginecologia, Cirurgia Plástica e Reconstrutiva e Urologia.
A Disforia de Género, um quadro depressivo que resulta de uma não congruência do sexo com que se nasce com aquele com o qual a pessoa se identifica, tem de ser diagnosticada por duas equipas diferentes em Portugal, até avançarem os tratamentos. Estas consultas de sexologia são feitas por equipas multidisciplinares, como a presente na URGUS.
“Há um acompanhamento principal e depois tem de haver um parecer independente”, explica Rita Torres, Psicóloga Clínica e Sexóloga na Oficina de Psicologia, ouvida pelo Notícias ao Minuto.
Aqui reside uma das principais queixas por parte das pessoas com Disforia de Género: a morosidade do processo. Pode levar vários anos a concluir um processo de mudança de sexo e há referências temporais inscritas nas regras internacionais.
Andreo Gustavo, que está a fazer a transição de mulher para homem, refere ao Notícias ao Minuto que pode levar “dois anos, no mínimo, para começar a fazer as cirurgias”. Andreo fez uma mastectomia num hospital privado e, neste momento, está à espera de uma resposta do público para fazer a histerectomia, a remoção do útero, que diz demorar sensivelmente "seis meses".
Para ser operado na URGUS, refere, “a pessoa tem de se submeter a uma nova avaliação”. “Mesmo que eu já tenha os meus dois diagnósticos, mesmo que já tenha mudado de nome, mesmo que já tenha feito a mastectomia, tenho de me submeter a mais um ano de avaliação com a nova equipa”, indica.
O único tratamento de saúde que a Ordem tem de autorizar
Nuno Pinto, presidente da Direção da ILGA Portugal, critica esta demora no processo de avaliação. “Os prazos estabelecidos não são os que acontecem em Portugal”, afirma, acrescentando que “as pessoas têm de passar por um processo de avaliação feito por duas equipas independentes” e que “isto não é recomendado pelas regras internacionais, é possível que seja feito, mas não é a recomendação que é dada”.
A URGUS defende que segue o estipulado internacionalmente. “O CHUC adota as guidelines internacionais relativamente à avaliação, intervenção e seguimento destes doentes, quer psicológicas, endocrinológicas, etc”, contrapõe, explicando que “o processo de transição de género tem uma duração de cerca de três ou quatro anos, o que está de acordo com os padrões internacionais”.
Outro dos passos incluídos neste processo é o parecer favorável por parte da Ordem dos Médicos. “Portugal é o único país em que isto acontece”, sublinhou Nuno Pinto.
De acordo com o presidente da ILGA, esta é uma prática que se estabeleceu desde 1995 e que é o “único tratamento de saúde, de que temos conhecimento, que tem de ser autorizado pela Ordem dos Médicos”.
“Imaginamos que seja constituída por muitos dos mesmos profissionais que já fizeram as duas avaliações anteriores, pois estamos a falar de um grupo muito pequeno de profissionais em Portugal”, diz o responsável.
A funcionar como agravante, está o facto de o número de profissionais a trabalhar na área ser muito reduzido. “Neste momento, existem poucas pessoas nas consultas de sexologia para a quantidade de pedidos que existe. E portanto se calhar não é com a periodicidade que seria necessário, pelo menos em alguns casos”, explica Rita Torres, falando apenas da área da psicologia.
O Notícias ao Minuto tentou por várias vezes contactar a Ordem dos Médicos mas não obteve resposta em tempo útil.
"Pessoas de extrema vulnerabilidade" merecem "dignidade"
Na carta escrita à Comissão de Saúde, as cerca de 90 pessoas que a subscrevem têm, de acordo com o afirmado à agência Lusa, todas elas más experiências na URGUS. A queixas envolvem falta de transparência, prazos e datas limites para intervenções cirúrgicas que não são cumpridos e até cirurgias mal realizadas.
“Não conhecemos caso nenhum de sucesso que tenha sido operado lá”, critica Andreo Gustavo, alegando que são usadas “técnicas muito antigas e arcaicas que põem em causa a integridade” dos utentes.
Ao Notícias ao Minuto, a URGUS descreve que os processos cirúrgicos foram iniciados em 2012. “Até ao fim do ano de 2016 foram realizadas 79 intervenções cirúrgicas, das quais oito faloplastias (mulher para homem) e dez vaginoplastias (homem para mulher). Em 2017 foram efetuadas duas cirurgias em dois doentes (uma mastectomia e uma vaginoplastia)”.
Acresce que, neste momento, estão em tratamento 82 utentes, “nas suas várias fases desde a caracterização e avaliação da disforia, hormonoterapia ou outros procedimentos clínicos, ainda sem indicação de iniciar procedimentos cirúrgicos”.
Nuno Pinto, recordando a audição de março na Comissão da Saúde, onde estiveram presentes várias entidades, discorda. “Aquilo que os outros profissionais alertam e aquilo que a sociedade civil tem alertado, nomeadamente a ILGA, é que de facto a URGUS não tem funcionado como a própria unidade diz que tem funcionado”, critica.
É esta “falta de esclarecimento e falta de transparência” que é apontada na missiva enviada à Comissão de Saúde. Não é pedido o fecho da URGUS, segundo ressalvam, mas antes que sejam encontradas soluções alternativas eficientes por parte do Ministério da Saúde.
Nuno Pinto destaca que esta “é provavelmente a área, dentro dos direitos LGBT, que em Portugal não tem visto avanços”, mas antes “recuos”, sublinhando que estamos a falar de “pessoas de uma extrema vulnerabilidade”.
Andreo Gustavo gostava de ver as cirurgias comparticipadas no privado mas acredita que tal não é feito porque “o Estado ia gastar imenso dinheiro” e, lamenta, “com pessoas que se calhar não acham que merecem essa dignidade”.