"Vejo cada vez mais gente nova a falar português em Macau"

Ao fim de vários séculos, foi a 20 de dezembro de 1999 que Macau passou a ser oficialmente parte da República Popular da China. Quase duas décadas depois, que legado português há em Macau e como é que o 'gigante asiático' que é a China olha para o resto do mundo?

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© Reuters

Pedro Filipe Pina
19/02/2017 07:30 ‧ 19/02/2017 por Pedro Filipe Pina

País

Francisco Leandro

Professor universitário na Universidade de Saint Joseph, em Macau, Francisco Leandro chegou há cinco anos a uma terra que em tempos foi portuguesa. Durante estes anos, tem aproveitado para visitar a Ásia, mas é na China que tem feito a maior parte das suas viagens.

Recentemente regressou a Lisboa para dar uma aula na Universidade Católica. O Notícias ao Minuto falou com ele sobre Portugal a Oriente e sobre o que podemos esperar da China no futuro.

Que Portugal há hoje em dia em Macau?

Há claramente um legado português, um que as próprias autoridades de Macau procuram preservar. Há património cultural, arquitetónico, até gastronómico. Uma nova série na televisão local está a fazer o levantamento dos pratos da gastronomia local e vê-se a enorme influência portuguesa, isto além de os nomes das ruas estarem escritos em duas línguas sem que haja uma tradução.

É como se duas sociedades coexistissem?

Sim, mas é curioso que entre as duas culturas encontraram-se pontes de entendimento. Essa parte é muito boa. Não é só na língua mas há a intenção de traduzir obras de português desde a escola primária. Durante muitos anos isto foi descurado – e é normal após a transição [de poder para China]. O português era uma espécie de língua do ocupante. Agora não, já se percebeu que não há esse estigma e que é uma ótima língua em termos de negócios.

É grande a comunidade portuguesa?

É residual. Menos de 1% da população é portuguesa. Estamos a falar de cerca de cinco mil pessoas. 

No Ocidente há cidades que têm a sua Chinatown, com a comunidade chinesa concentrada numa parte da cidade. Temos o inverso em Macau, com a comunidade portuguesa?

Claramente não. Os portugueses estão espalhados por toda a cidade, não há um bairro de portugueses, e isso é uma coisa muito boa. Não há uma zona de restaurantes portugueses. O restaurante mais conceituado de cozinha portuguesa talvez seja o ‘António’ e está ao lado de uma casa de tapas.

Há um legado português que as autoridades de Macau procuram preservar

E como é com a língua portuguesa?

O dia a dia é em cantonês mas nos serviços públicos há a possibilidade de se ser atendido em português. Há três jornais diários em língua portuguesa, o que é fantástico para uma comunidade pequena. Existe um canal traduzido, uma revista que publica em português e em inglês. Vejo também cada vez mais gente nova a falar português. No outro dia entrei no elevador e estava lá um casal que não falava nem português nem inglês, mas o miúdo, que deve andar na escola primária, disse-me ‘Obrigado’, ‘Bom dia’.

E a China deste lado do mundo. Nos últimos anos Portugal viu capital chinês a entrar em setores estratégicos. É questão de negócio ou de influência?

As duas coisas. Há claramente uma perspetiva de negócio mas também uma agenda de influência. Não é algo aleatório, a China tem uma agenda de relacionamento com a Europa e Portugal, nesse sentido, também representa uma ponte.

Notícias ao Minuto

Pelas ligações à UE e à própria CPLP?

Exato. A China não precisa necessariamente de Macau para negócios com o Brasil ou Angola. Mas a CPLP é uma espécie de ‘óleo’, até do ponto de vista cultural. Sobre investimentos em Portugal, devo dizer que o alienar do setor público em áreas tão importantes do Estado condiciona decisões estratégicas. Deixa o Estado em maus lençóis.

Por cá tem sido debate recorrente sobre o que seria mais eficaz em certos setores, se uma gestão pública ou privada.

Na China não há esse conceito. As empresas que investem em setores estratégicos da economia nacional são as chamadas empresas do Estado, são controladas pelo Estado chinês e respondem a uma hierarquia: a dos interesses da China. Se as pessoas deste lado [Portugal] aceitam essas regras [relativamente a privatizações a empresas chinesas] não tenho nenhuma crítica a fazer à China, são as oportunidades de mercado.

Alienar do setor público em áreas tão importantes do Estado condiciona decisões estratégicas. Deixa o Estado em maus lençóis

A China estreou-se este ano no Fórum Económico em Davos. Na abertura, o Presidente Xi Jinping defendeu a globalização numa altura em que Donald Trump chegou ao poder nos EUA com um discurso de protecionismo. Como se enquadra isto nos tempos atuais?

Se voltarmos atrás, ao tempo de Deng Xiaoping [líder entre 1978 e 1992], nos finais dos anos 70, a lógica do socialismo com características chinesas procurou manter a essência da ideologia socialista mas simultaneamente adaptar-se às novas condições. São dois vetores: socialismo e abertura, e o discurso de Xi Jinping em Davos é muito na senda desta iniciativa. Desde Deng Xiaoping que há sempre um passo em frente da China, primeiro relativamente aos países vizinhos, depois à Ásia e agora é do ponto de vista inter-regional, em relação à Europa, a África, à Índia. Talvez o próximo seja global.

Notícias ao Minuto

Como funciona esta lógica de abertura ao mundo quando há um regime ainda fechado sobre si próprio em certos aspetos e questões sobre a democracia levantadas a Ocidente?

É importante ter noção de que estamos a comparar modelos políticos completamente diferentes: um modelo de partido único com modelos pluripartidários. Devemos comparar dentro da mesma família de sistemas políticos [Cuba, Vietname]. O risco é o de em certas questões se tentar comparar o incomparável. Na China também há eleições diretas. Temos as funções de um partido a confundirem-se com funções do Estado mas há também um esforço de legitimação. De resto, também julgo incorreta a leitura que se faz a Ocidente de um sistema completamente autocrático.

E como foi a adaptação cultural de um português a um regime e a um país tão diferente?

Uma das coisas que me impressionou na China foi a continuidade. Há uma estratégia de Estado onde toda a gente sabe quais são os interesses vitais. Há aqui um enorme contraste com outros países. Durante muito tempo observei, viajei pela China toda, conheci centros de poder, falei com pessoas de diversas províncias, li muito. Em vez de ter a atitude de que o que eu trago é que é bom.

É uma atitude comum de estrangeiros na China?

Muita gente não faz o esforço. Costuma-se dizer que quem chega a Macau e a Pequim passa um dia e está equipado para escrever um livro. Passam cinco anos e já só escreve artigos. Passam-se dez anos e deixa-se de escrever porque se percebe que se sabe pouco da China. É uma realidade complexa mas não podia deixar de o ser: é o terceiro maior país do mundo, é o país com maior população do mundo, com 28 Estados vizinhos, com regiões especiais como Macau e Hong Kong, há Taiwan... mas dizer que a China tem um sistema puramente autocrático, assim às três pancadas, é redutor. O Partido Comunista Chinês tem 80 milhões de militantes, que não seriam suficientes para governar o país sem haver também apoio popular.

A China tem uma agenda político-diplomática para os próximos 100 anosE de que modo é que a China olha para a União Europeia (UE)?

Creio que a China vê na UE uma organização muito espartilhada. A UE é dos maiores parceiros comerciais mas houve Estados a negociar com a China sem que a UE tivesse à partida uma estratégia comunitária. A China olha para a UE e vê áreas em que de facto os europeus são muito bons, mas outras em que é difícil perceber qual é o interlocutor.

A 'balança de influência' a nível mundial irá mexer-se cada vez mais para Oriente?

Tenho defendido que se vai deslocar para o eixo Índico-Pacífico. É importante perceber que a China tem uma agenda político-diplomática para os próximos 100 anos e esta estratégia de longo prazo permite direcionar esforços.

Acho inaceitável os EUA dizerem que não vão pagar segurançaSe Trump trouxer isolacionismo, a longo prazo a influência dos EUA no mundo pode sofrer o efeito contrário?

Só vai catapultar as aspirações chinesas.

Vai vagando espaço?

É esse o primeiro erro. Quando o espaço [de influência] não é ocupado por um…

Vimos também Donald Trump afirmar que não podem ser os EUA a pagar segurança de outros países.

O presidente Trump não se pode esquecer que os Estados não são empresas. O racional de uma empresa é a sua contabilidade. Acho inaceitável os EUA dizerem que não vão pagar segurança. Basta olhar para a história e ver como os EUA ajudaram a criar situações como a [da Guerra] do Vietname e da Coreia. Acho uma hipocrisia essa postura.

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