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Há sete anos Sónia foi roubada. Agora, cobram-lhe dívida que não é sua

Já aconteceu a muitos mas talvez nunca tenha parado para pensar no que pode significar a perda ou roubo da sua documentação pessoal. Mesmo depois de apresentar queixa às autoridades competentes, pode vir a enfrentar problemas sérios. Que o diga Sónia Alves, uma cidadã portuguesa a braços com uma dívida alegadamente por si contraída na Bélgica quando nunca saiu de Portugal. Confuso? Saiba que é mais fácil acontecer do que parece e muito complicado de resolver.

Há sete anos Sónia foi roubada. Agora, cobram-lhe dívida que não é sua
Notícias ao Minuto

08:30 - 06/09/16 por Ana Lemos

País Portugal

Um simples passeio pelo shopping transformou-se num dia que Sónia Alves jamais esquecerá. Tudo aconteceu em agosto de 2009, numa loja de uma grande superfície comercial em Lisboa, enquanto experimentava umas sandálias. Foi vítima de furto. A mala, com todos os seus pertences, incluindo a carteira com todos os documentos, foi-lhe roubada. Perante esta situação fez o que lhe competia. Dirigiu-se à esquadra da PSP mais próxima e apresentou a respetiva queixa. Ficou descansada. O próximo passo seria a habitual renovação de toda a documentação. Até aqui nada fora do ‘normal’.

Acontece que volvidos quase sete anos, em dezembro de 2015, Sónia recebeu na sua residência no concelho do Seixal uma carta proveniente da Bélgica. Remetente? Os serviços fiscais do país. O assunto? Uma dívida superior a três mil euros (3.405,25 euros). Isto quando Sónia, de 33 anos, nunca saiu do território nacional, à exceção de uma viagem de finalistas a Espanha.

Dirigiu-se de imediato à esquadra da PSP da área de residência porque associou a dita carta belga ao furto da sua carteira anos antes. E estava certa? 'Nim'. Eis o que Sónia descobriu: a queixa devia ter sido introduzida à data (agosto de 2009) no sistema interno da PSP mas não foi, como também não foi introduzida no Sistema de Informação Schengen (SIS), que serve para os Estados do espaço Schengen, onde Portugal e a Bélgica estão inseridos, trocarem “informações a fim de combater a criminalidade organizada transnacional e o terrorismo”.

Contactado pelo Notícias ao Minuto, o porta-voz da PSP, o intendente Hugo Palma, assume que a introdução da queixa no SIS passa pela “intervenção humana”. Mesmo que o sistema informático não estivesse disponível quando Sónia fez a queixa (o que sucedeu), a mesma deveria ter sido inserida posteriormente. O que não se verificou. Ainda assim, explicou o porta-voz da PSP, mesmo que tudo tivesse decorrido com normalidade, a situação com que Sónia se confronta atualmente não seria evitada. Isto porque, explicou o responsável, o “sistema funciona [em rede mas] só entre polícias” nacionais e internacionais: “não há cruzamento de dados entre diferentes entidades”, neste caso polícia e finanças.

Voltemos à esquadra onde apresentou queixa em 2009, no Parque das Nações, em Lisboa. Aí, Sónia conseguiu que o atual chefe lhe passasse uma cópia do Auto de Denúncia e uma nota com a confirmação de que a queixa, já perdida nos arquivos, tinha realmente sido apresentada. Entretanto, por iniciativa própria, e tentando a custo ultrapassar as barreiras linguísticas, entrou em contacto com um funcionário das finanças belgas, que lhe adiantou apenas tratar-se de uma dívida relativa a 2012 referente a uma empresa criada em nome de Sónia Alves. Além disso, Sónia avançou com uma queixa na Polícia Judiciária. Mas dali nenhuma conclusão obteve.

A pessoa chegou à Bélgica, usou os meus documentos, abriu uma empresa, fixou-se lá, entretanto [a empresa] terá falido. Vi o meu nome num site com informação sobre empresas que abriram falência na Bélgica. Falei com um funcionário das finanças belgas que me informou que a pessoa deixou a casa onde estava a residir. Mas esteve uns bons anos a viver com os meus dados e não sei o que mais poderá ter feito com a minha identidade. Não sei se abriu contas bancárias, se contraiu mais dívidas, empréstimos, se casou

Em janeiro de 2016, cerca de um mês após a receção da carta belga, chegou o despacho de arquivamento com a seguinte menção: “(…) o Ministério Público português não tem competência para investigação dos factos denunciados, porque, tendo ocorrido fora do território nacional (…), tal investigação antes competirá às autoridades belgas, nomeadamente aos serviços competentes da situação descrita”, ou seja as finanças belgas. Nada feito uma vez mais.

Achei que o Ministério Púbico seria competente para me representar. Daí que tenha ido imediatamente à Polícia Judiciária. Aquilo que me espantou foi a ‘sentença’ que recebi e que diz que o Estado português não é competente para me defender. Então quem é? Eu a mim própria? Então com o que posso contar dentro do meu Estado que me obriga a ser reta, cumpridora das minhas obrigações e em relação aos meus direitos é o que se vê

Até que em julho deste ano chegou à residência de Sónia uma carta das Finanças nacionais para identificação da dívida em cobrança coerciva, correspondente ao código 161 e a seguinte proveniência: “Interministerial Mat. Assist. Mútua em Mat. de Cobr. Est. Memb. CE” com o valor de 3.333,40 euros, aos quais acrescem juros de mora no valor de 60,88 euros. A esta informação acresce um aviso, caso não fosse liquidada a dita dívida teria lugar a uma ação de penhora. A alegada dívida por si alegadamente contraída voltava a assustar.

Sónia dirigiu-se então à repartição de Finanças da Cruz de Pau, na Amora, na qual tem registada a atual morada fiscal e, após várias e distintas informações, apresentou um requerimento, ao qual anexou vários documentos (queixa da PSP; declaração de IRS de 2012; baixas e atestados médicos, etc.) para provar que esteve sempre em Portugal e que não contraiu a dívida que lhe está a ser cobrada, agora também via Portugal.

Mais. Refira-se que a esse já vasto rol de documentação, anexou também o pedido de proteção jurídica que solicitou à Segurança Social em julho para ter direito a um advogado que a “auxilie a resolver esta situação de roubo de identidade” e para que “não tenha [de enfrentar] mais situações [como esta] no futuro”. Mas mais de um mês passou e Sónia continua sem qualquer apoio judiciário, foi-lhe pedido que aguardasse, com o alerta de que há quem esteja à espera “há mais de dois anos”.

O Notícias ao Minuto tentou obter mais esclarecimentos junto do chefe da repartição de Finanças mas, até ao momento, sem sucesso. Em todo o caso, a resposta ao requerimento apresentado por Sónia refere que “a entidade” a que “a contribuinte se deve dirigir é o competente Estado Membro que solicitou a instauração do processo, Bélgica, através de reclamação ou oposição”. Uma vez mais, a informação que obtém das entidades nacionais é a de que na Bélgica está ‘a chave’ para a resolução da situação.

Isso mesmo confirmou o advogado Tiago Soares Cardoso, da Gonçalo Leite de Campos e Associados, em declarações ao Notícias ao Minuto: “Quando isto acontece, a defesa tem de ser feita em duas frentes: lá (Bélgica) e cá (Portugal). O contribuinte não se defende junto das autoridades belgas através das autoridades portuguesas, não existe esse mecanismo. O contribuinte só pode contestar a dívida tributária diretamente junto das autoridades belgas”.

Estamos perante uma chamada ‘tempestade perfeita’. É anedótico menos para a pessoa que passa por ela. Mas antes de mais [o caso] deve ser resolvido junto das autoridades belgas que terão de reconhecer que a identidade desta senhora não é a da devedora e, consequentemente, perceber quem é que de forma criminosa o fez usando a identidade de outra pessoa

Será “junto das autoridades estrangeiras” que o visado deve atuar de imediato para “procurar perceber a origem da dívida tributária e aí apresentar a sua defesa, quer junto da administração tributária ou das autoridades judiciais desse país”. Caso já esteja “em fase de execução, portanto em cobrança coerciva, em que as autoridades portuguesas são chamadas, em nome ou por conta de outro Estado a cobrar a dívida tributária”, como é a situação que Sónia Alves enfrenta, “deve apresentar toda a defesa possível no processo de execução através da oposição à execução, o meio que a lei portuguesa disponibiliza para os contribuintes se defenderem já no âmbito da execução. Ou seja quando já há uma dívida e [queremos] sustê-la e extingui-la”, concretiza o jurista.

Resumindo, Sónia Alves, desempregada e com dois filhos menores, parece ter sido abandonada à própria sorte. “Cumpridora” desde tenra idade dos seus deveres “enquanto cidadã portuguesa e europeia”, confessa-se “sozinha e revoltada” pela total ausência do “Estado português na salvaguarda” dos seus “direitos e integridade moral ”. 

“Gostaria que o Presidente da República se manifestasse em relação a este assunto que, na verdade, é um assunto de todos porque todos podemos ser vítimas destas falhas e crimes. E que [assim] mostrasse alguma coerência com os discursos que faz apelando à justiça e à defesa dos direitos dos cidadãos”

Contactados pelo Notícias ao Minuto nenhum dos ministérios que tutelam os serviços envolvidos no caso de Sónia se mostrou disponível para prestar esclarecimentos. O Ministério da Administração Interna (MAI) remeteu para a Direção Nacional da PSP, o Ministério das Finanças não respondeu em tempo útil às questões enviadas, tendo ambos frisado que não se manifestam sobre “casos específicos” de cidadãos e contribuintes, respetivamente.

No que diz respeito ao apoio judiciário, a Segurança Social continua sem dar sinal.

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