Quando expressou a sua ambição em janeiro, o ex-cantoneiro residente no lar da Santa Casa de Arouca ainda não tinha sofrido a queda que afetou a fluidez do seu discurso e, segundo contam as funcionárias dessa instituição do distrito de Aveiro, foi claro: disse que já não queria uma festa de aniversário tão grande como a dos seus 103 anos, para evitar tanto barulho, e pediu à Misericórdia que organizasse um almoço festivo apenas com o provedor, o jornalista com mais antiguidade na rádio local e a presidente da Câmara.
Foi essa que, a certa altura, lhe perguntou qual era o sonho que ainda tinha para concretizar e, ele, conhecido por ouvir os noticiários da RTP1 "em grandes alturas" e estar "sempre pronto para falar da atualidade política nacional e internacional", não precisou de muito tempo para identificar que o que queria mesmo era conhecer a famosa ponte pedonal, que, entre as de vão suspenso, é uma das maiores do mundo e tanta cobertura mediática tem tido desde a sua inauguração em 2021.
Na sexta-feira, nove meses após soprar as velas, Manuel viu concretizado o seu desejo: de pantufinhas cinzentas e boné ao xadrez castanho, apresentou-se no pórtico de Alvarenga em cadeira de rodas, deixou que várias pessoas o empurrassem ponte adentro e, uma vez a meio da estrutura, mudou-se para o andarilho, ganhou gás e, seguro por pernas muito magrinhas, fez pelo seu próprio pé uns 100 metros do trajeto.
Nesse percurso, posou diversas vezes para fotografias, de sorriso rasgado e muito orgulhoso, com as mãos a formarem o que nem todos perceberam que era um "ok" porque, embora o seu polegar apontasse bem para cima, os outros dedos já não se fechavam tão bem quanto o permitido por ossos mais jovens.
"Ele sempre gostou de desafios e ainda mais de holofotes", comenta uma das suas assistentes no lar, Ângela Rocha.
Completado um dos sentidos da travessia, Manuel usou então de frases lentas para admitir duas coisas: "Estou surpreendido porque já não esperava vir" -- no que se referia aos nove meses passados desde a tal festa de aniversário -- e "pensava que a ponte era mais pequena" -- coisa para "uns 100 metros", diz ele, e não mais que isso.
Corrigida essa perceção, Manuel foi fazendo perguntas ao coordenador dos Passadiços do Paiva, que lhe empurrava a cadeira de rodas no regresso ao ponto de partida. "Quantos metros tem isto?" Os 516 que dão nome à ponte. "O que é que ela tem a meio para se segurar?" Nada, porque a ponte está suspensa por cabos a partir dos extremos. "Quem é que a fez?". Uns engenheiros especialistas. "De onde é que eles eram?". São portugueses.
Ana Isabel Brito é a funcionária da Santa Casa em que Manuel mais confia e nota-o já cansado, mas garante que ele vai "repetir tudo o que lhe disseram" a quem o quiser ouvir no lar -- até porque, com tantas pessoas a acompanhá-lo, inclusive fotógrafos, o sénior considerou o passeio "uma homenagem" e teve o cuidado de agradecê-la. "É sempre muito educado com toda a gente. Só refila quanto tem que pagar o IMI das casas" que possui em Moldes e Macieira de Sarnes, comenta Ângela.
Medo, Manuel não sentiu nenhum, mesmo quando estava de andarilho sobre o piso de gradeamento aberto, com vista direta para a garganta do Paiva e as rochas lá no fundo. "Senti admiração. Não contava que fosse uma ponte tão grande", explica o sénior.
Hugo Rocha é um dos guias de serviço na estrutura e afirma que Manuel terá sido assim o visitante mais idoso a atravessá-la, o que é de particular mérito considerando que tantos outros pagam bilhete e acabam por desistir à chegada.
"A maioria das pessoas já vem preparada para o que vai encontrar, com umas a fazerem o trajeto disparadas, como uma bala, para chegarem o mais rápido possível ao outro lado, e outras a caminhar sempre agarradas aos varões, para se sentirem mais seguras. Mas também há muitas que vêm com a ideia de tentar, de superar o medo, e, mal chegam aos pórticos e veem as escarpas, desistem logo e ficam lá sozinhas à espera dos amigos, enquanto eles vão e vêm", recorda.
Procurando controlar tudo em seu redor como ainda controla os cartões multibanco, Manuel ouve que dá para descer a pé até ao fundo do vale e pergunta: "Há uma descida direta para o rio, lá em baixo?". Respondem-lhe que sim, que há um trajeto pedestre até ao fundo do vale, para se descer pelas margens mesmo até à água. Não era um convite, mas ele, que a essa hora já costuma estar a fazer a sua sesta, avisa logo: "Isso é melhor não. Antes quero ir a direito embora".
A Ponte 516 Arouca é parte dos Passadiços do Paiva, que, integrados no Geoparque de Arouca, foram inaugurados em 2015 e se estendem por 8,7 quilómetros ao longo de uma margem antes intocada desse rio. Na sua primeira década de atividade, assinalada em junho deste ano, essa estrutura recebeu mais de 1,8 milhões de visitantes, dos quais 10% de nacionalidade estrangeira.
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