Inês é portuguesa e casou com o marido, um cidadão estrangeiro não-europeu, em abril de 2024, numa cerimónia civil, em Lisboa.
Na altura do casamento viviam nos Países Baixos mas, meses depois, em novembro, "com o objetivo de construir uma vida juntos em Portugal", viajaram até ao país onde Inês nasceu e cresceu.
Na bagagem traziam sonhos e esperança, mas depressa perceberam que o sistema de imigração ia acarretar muito mais 'peso' do que esperavam.
"É tudo menos funcional. Mesmo antes de voltarmos a Portugal, começamos a tentar entrar em contacto com a Agência para a Integração, Migrações e Asilo (AIMA). Descobrimos que o único canal disponível para agendamento era uma linha telefónica que não atende chamadas. Todos os dias, durante semanas, ligávamos para o número oficial, apenas para ouvir a mesma gravação automática: 'Por termos demasiados pedidos, não nos é possível atender'. E a chamada caía", conta Inês ao Notícias ao Minuto.
Um impasse burocrático que "rapidamente se tornou num problema real" para este jovem casal. "O meu marido não pode trabalhar, não tem número de utente nem acesso aos serviços mais básicos", realça.
O tempo passava e Inês e o marido continuavam sem respostas. "Até que, através de contactos de outras pessoas na mesma situação, soubemos o que parecia impensável: a única maneira de conseguir uma marcação com a AIMA seria através de um processo judicial contra a AIMA", explica, ainda em choque com a ‘solução’ sugerida, mas que acabaram por seguir.
"Contratámos uma equipa de advogados especializados em imigração, que nos acompanha desde então, porque felizmente temos meios financeiros para o fazer. Com a sua ajuda, apresentámos uma providência cautelar em tribunal, anexando todos os documentos necessários e justificando o pedido de residência. O juiz aceitou o pedido e ordenou que fosse marcada uma data para o início do processo", revela.
Inês não é caso único. Aliás, está muito longe disso. Todos os meses, milhares de pessoas processam a AIMA apenas para conseguir um agendamento para fazer o pedido de autorização (ou renovação) de residência.
7.708 processos contra a AIMA por mês. 54 mil em atraso
Os dados falam por si. "O Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa (TACL) recebeu picos de 10.647 ações num só mês e uma média mensal de 7.708 processos durante 2024-25", diz o bastonário da Ordem dos Advogados, João Massano, ao Notícias ao Minuto.
"Atualmente estão pendentes 54.381 processos exclusivamente contra a AIMA, a cargo de apenas seis juízes, o que representa mais de 9.000 ações por magistrado. Essas intimações têm caráter urgente e ‘passam à frente’ de outras matérias; para alocar juízes à ‘crise AIMA’, o TACL reduziu a capacidade de julgar litígios fiscais e de contratação pública, baixando a taxa global de resolução de 98% para menos de 30%", acrescenta.
Com estes números não é de estranhar que estes processos, legais, estejam a ‘entupir’ a justiça. "O TACL é territorialmente competente para todo o país nestas intimações e concentra mais de 50 mil processos ativos, número que ainda pode ser maior porque não há comunicação automática entre AIMA e o tribunal sobre os pedidos entretanto resolvidos. O congestionamento obrigou a destacar juízes em exclusivo e contratar assessores", nota ainda o bastonário.
Para complicar ainda mais esta situação, segundo o que Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais (CSTAF) disse recentemente à Lusa, o Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa (TACL) desconhece quantos dos milhares de processos que tem pendentes a exigir entrevistas na AIMA são inúteis por os autores já terem tido resposta da Agência.
"Enquanto a AIMA não conseguir [...] comunicar ao tribunal 'já agendámos [hipoteticamente] 12 mil entrevistas, por favor extingam a instância', nós não vamos realmente saber quantos processos existem pendentes de pessoas que de facto precisam de resposta", lamentou, a juíza secretária desembargadora do CSTAF, no passado dia 24 de junho, num encontro com jornalistas, em Lisboa.
“Crónica de uma morte anunciada”
Sabe-se, contudo, que em 2024, houve um pico de intimações para a proteção, liberdades e garantias intentadas por cidadãos estrangeiros, incluindo requerentes de asilo, para que a AIMA seja obrigada a agendar uma entrevista no âmbito do seu processo de permanência no país - "ultrapassou 70 mil".
Hoje em dia, como explica João Massano ao Notícias ao Minuto, o número de processos está a baixar devido à "'task-force' governamental", no entanto, ainda há muito por fazer.
"Tem sido um esforço muito positivo, mas ainda é preciso investir e mais meios humanos e tecnológicos", diz.
João Massano, não tem dúvidas que esta era uma "crónica de uma morte anunciada". "A extinção do SEF e a criação AIMA deixaram centenas de milhares de pedidos de autorização e renovação de residência por decidir. Face à impossibilidade de marcar online ou por telefone uma data para recolha de dados biométricos, milhares de imigrantes tiveram de recorrer à via judicial unicamente para obter um agendamento", esclarece, lembrando que "a AIMA herdou cerca de 410 mil processos pendentes do SEF".
Além disso, a AIMA "não conseguiu providenciar recursos humanos e tecnologia ao mesmo ritmo da procura". "O portal de agendamentos continua com falhas técnicas, o call center não atende ou encaminha para lojas sem vagas e os e-mails não têm resposta. Por isso e como a lei permite intimações urgentes quando a administração viola prazos legais; os tribunais passaram a ser o único meio eficaz para obrigar os referidos agendamentos", expõe.
Um processo "caro" e "ridículo"
Ana é outro exemplo deste 'emaranhado burocrático'. Há três anos que espera por um agendamento da AIMA, para que o marido, imigrante não-europeu, possa ter uma autorização de residência em Portugal.
Ao Notícias ao Minuto a jovem começa por contar que ela e o namorado conheceram-se há cerca de quatro anos, numa altura em que ambos viajavam muito. No entanto, quando Ana encontrou trabalho em Portugal, decidiram-se mudar para o país de onde é natural e oficializar a relação. Mesmo antes de casarem, em junho de 2024, o casal tentou contactar a AIMA, mas sem sucesso, o que continua a acontecer, apesar de já se ter passado mais de um ano desde que deram o 'nó'.
"Inicialmente procurei informações online, mas o número aparecia sempre interrompido. Depois procurei ir a postos da AIMA de atendimento ao público. Fomos ao de Leiria primeiro, onde nos disseram que não podem atender ninguém sem marcação. Para a marcação deram uma folha com informação onde tinha um link para acedermos e enviar a informação necessária por lá e com instruções de exatamente o que dizer (porque senão não respondiam). Enviei várias vezes, pelo menos um e-mail todos os meses. Nunca responderam", afirma.
Apesar disso, não baixaram os braços. "Depois fomos a Braga - o único posto que aceita tirar dúvidas - onde tivemos horas à espera para nos dizerem que as coisas mudaram, tínhamos de enviar e-mail para outro sítio e tentar ligar a um número. Disse ao senhor que ando a tentar ligar há 3 anos para esse número está sempre interrompido", assegura.
Em maio deste ano, finalmente, receberam um e-mail da AIMA a pedir informações ao namorado. Desde aí, nunca mais voltaram a ser contactados.
Ana também já pensou em processar a AIMA para, finalmente, ter um agendamento e resolver todo este processo. Mas, como confessou ao Notícias ao Minuto, "é caro" e estão "sempre a tentar ligar com esperança que respondam".
Sobre este tipo de processos, Ana é da opinião que "não deveria ser sequer a única possibilidade de os contatar". "Ficamos descontentes claro, mas sem advogados também nunca me atreveria a fazer algo desse género. É ridículo", atira.
Para já, o namorado continua a viver numa espécie de limbo. "Há grande dificuldade para ele encontrar trabalho em Portugal, porque desde o início da nossa relação queríamos estar juntos e depois de casados pensamos que o processo seria mais fácil. Então ele ficou depois do tempo do visto. Por isso, agora não tem NIF e também não o podem dar. Também tem mais dificuldade no serviço de saúde, mais caro, e este medo constante de viajar e de sair de Portugal", refere.
"Casar em Portugal é fácil. Legalizar um cônjuge estrangeiro é outra história"
O mesmo acontece com Inês e com o marido, a quem "a AIMA contestou a decisão judicial" de marcar uma data para o início do processo de permanência no país.
"Neste momento, estamos a aguardar uma nova decisão do juiz — o próximo passo num processo que devia ser simples, mas que se tornou um labirinto jurídico e emocional", salienta a jovem.
"Casar em Portugal é fácil. Legalizar um cônjuge estrangeiro é outra história", conclui.
AIMA abre vagas para agendar prorrogação de vistos expirados
Entretanto, na terça-feira, 1 de julho, a AIMA abriu no seu site um espaço para "agendamento de prorrogação de vistos".
Para esta nova funcionalidade foi criado um novo assunto 'Vistos', que requer o envio obrigatório das cópias digitalizadas do Passaporte e do Visto", refere a AIMA em comunicado, salientando que os imigrantes "poderão também submeter até mais três documentos" de acordo com o tipo de documento requerido.
Quem tenha vistos de trabalho, de nómada digital, de estudante ou de outra modalidade, poderá requerer a renovação no site da AIMA.
Leia Também: AIMA abre vagas para agendar prorrogação de vistos expirados