Em declarações à agência Lusa a pretexto da passagem este ano de 50 anos sobre as independências, Vasco Martins defende que Portugal "terá, sobretudo, de refletir sobre a qualidade da interação com esses países, que podem um dia ser todos democráticos e com algo a dizer sobre os desequilíbrios, predações e interesses mesquinhos que têm pautado essa relação".
Vasco Martins, doutorado em estados Africanos, é professor no ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa e investigador no Centro de Estudos Internacionais da mesma instituição.
"Há algo mais a fazer e, certamente, a ganhar. Tal como em 1975, o Portugal que se democratizou com a ajuda inestimável dos movimentos de libertação africanos deixou para trás aqueles países com os quais não só mantêm uma obrigação histórica de reparação - tema em voga, porém enlameado por narrativas altamente politizadas -, como responsabilidade de ajudar numa verdadeira dialética de cooperação solidária", alerta.
"Significa ter estratégias 'win-win', que visem cooperação e desenvolvimento mútuo e genuíno", detalha.
Passando em revista as antigas colónias, Vasco Martins considera que no caso de Angola, enquanto em Luanda o primeiro Presidente, Agostinho Neto, declarava a independência, noutros pontos do território rufavam os tambores de guerra.
"Preparava-se a guerra com a ajuda de países vizinhos e das potências da Guerra Fria. Tal como Moçambique, Angola teve o azar de ser vizinha do 'apartheid' da África do Sul, que ocupava então a atual Namíbia", recorda.
Em Angola instalava-se um regime de partido único e consolidava-se uma guerra civil, que duraria 27 anos (1975-2002) "com um rasto de destruição poucas vezes visto no continente africano depois da Segunda Guerra Mundial".
Com o fim da guerra civil "emerge vitorioso, incontestado e prepotente [o Presidente] José Eduardo dos Santos, que trata 2002 como ano zero da verdadeira independência e ignora apelos cristãos à reconciliação".
"Cria um regime odioso, onde medo e pobreza são instrumentos de sufoco social, onde a resolução de diferendos pela violência é prática de um regime, tantas vezes defendido, em praça pública e privada, por ditos democratas portugueses em nome do interesse nacional. Uma vergonha", acusa.
Assente sobretudo nas receitas provenientes do petróleo, a economia Angolana cresceu e recebe, "no apogeu, duas centenas de milhares de portugueses, muitos sem emprego depois da crise de 2008, ajudando a manter saudável a democracia portuguesa, mas não a sua".
Durante a governação de José Eduardo dos Santos, a falta de diversificação e desenvolvimento da economia fizeram com que "os níveis de pobreza continuassem abjetamente elevados", considerou.
"Em matéria de direitos sociais e de cidadania, além do despertar da esperança durante o primeiro ano de mandato do Presidente João Lourenço (2017-2022) pouco se alterou. A cidadania continua a ser um desafio para o Estado e para a sociedade", frisa.
Quanto a Moçambique, foi um país que, "paulatinamente e vagarosamente, se foi abrindo, emendando algumas das feridas do passado e adotando várias das práticas e processos da democracia liberal", mas que nunca extinguiu verdadeiramente a lógica pós-conflito".
"Assolado por desastres naturais de extrema intensidade, entre secas prolongadas e cheias dilacerantes que vitimam anualmente centenas de pessoas, foi a tragédia do retorno da guerra [movida pelo fundamentalismo islâmico] ao norte de Moçambique que voltou a capturar atenções da comunidade internacional, pondo a nu as limitações do Estado", defende.
A onda de protestos e a violência policial após as eleições de outubro de 2024, "voltou a vincar as limitações do Estado Moçambicano, mostrou o descontentamento feroz da população e fez parar a capital do país".
Quanto à Guiné-Bissau, trata-se de um país onde "o Estado está esmagadoramente ausente da vida da população".
"Se é verdade que testemunhámos melhorias no regime democrático, sobretudo nas garantias constitucionais, organização de eleições aparentemente competitivas e até na alternância partidária, também testemunhámos alguns dos piores desenvolvimentos dos últimos 20 anos, os abusos de poder, as muitas violações de direitos humanos, a corrupção sem pejo e um movimento oscilante mas certo em direção a um regime autocrático e ditatorial", avalia.
"Os guineenses não acreditam no seu Estado. Um Estado que lhes faz crer não precisar deles. As consequências políticas na economia e bem-estar são evidentes", destaca o investigador.
Segundo Vasco Martins, é em Cabo Verde que "os direitos sociais e humanos, a democracia e cidadania apresentam melhores resultados. Cabo Verde é hoje considerado um dos países mais livres em África".
A mais pequena das ex-colónias, São Tomé e Príncipe apresenta um retrato semelhante ao de Cabo Verde.
"Sobretudo a nível económico. A pobreza persiste, a ajuda externa é essencial, sobretudo na saúde e educação, o que tem levantado desafios imensos à atuação do Estado, privado de orçamentos dignos, que permitam, por entre as muito limitadas opções de desenvolvimento do país, alavancar o bem-estar da população", salienta.
O país tem apostado no turismo e na "famigerada exploração de petróleo, que depois de várias décadas de pesquisa e exploração, ameaça finalmente começar extração".
"Resta saber se as receitas do petróleo serão utilizadas para a melhoria das condições de vida e diversificação da economia, ou se, tal como em Angola, cairão nas malhas da corrupção", questiona.
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