Desafios dos agentes funerários. "Perguntei por bebé. Apontou à barriga"

Expostos diariamente à morte e às superstições que os cercam, os agentes funerários ajudam famílias com as suas despedidas finais, mas enfrentam desafios emocionais de uma profissão que exige presença constante.

Notícia

© Lusa

Lusa
23/05/2025 09:50 ‧ há 11 horas por Lusa

País

Agentes funerários

"Eu costumo dizer que durmo com o telefone de um lado e a mulher do outro, porque, a qualquer hora, nós temos que nos levantar e sair pela porta fora para tratar de um funeral", referiu à Lusa Jorge Salgueiro, sócio-gerente da Funerária de Paranhos - Funerária Salgueiro Lda., no distrito do Porto.

 

Para a psicóloga Vânia Sousa Lima, doutorada em Psicologia Clínica, a imprevisibilidade desta profissão pode impactar a vida pessoal e também a saúde física e mental dos agentes funerários.

"Há um maior risco de desenvolvimento de sintomatologia depressiva, ansiosa e, no caso específico, de perturbação de stress pós-traumático", destacou.

Apesar de ser inevitável, a morte permanece um assunto tabu para muitos e as consequências disto são visíveis nos relatos do sócio-gerente Hugo Salgueiro, da Agência Funerária Hugo Salgueiro, na Maia, no distrito do Porto.

"Por exemplo, eu tenho o carteiro que, quando me vai levar as cartas à agência funerária, se recusa a entrar", relatou.

As reações supersticiosas não ficam por aqui. O responsável descreveu também casos de pessoas que atravessam a rua para o outro lado, de forma a não passar pelo estabelecimento funerário, ou ainda grávidas que, a caminhar, quando se cruzam com um carro fúnebre mudam de sentido para seguir a marcha, com receio que o filho "possa nascer com alguma patologia ou espírito maligno".

"Também há pessoas que, quando passam à porta de uma agência funerária, se baixam, porque ainda há aquela ideia de que o agente funerário, ao ver a pessoa a passar, está a tirar as medidas. E, portanto, ao se baixar tiramos mal a medida e a pessoa já não cabe na urna", acrescentou.

Estes comportamentos não vêm só de pessoas desconhecidas, também podem surgir no meio social em que os agentes funerários se inserem, como retratou Jorge Salgueiro.

"Eu tenho colegas da minha mulher que trabalham com ela que até já disseram: 'não sei como é que tu te consegues deitar com o teu marido'. É assim, eu lido com mortos, mas os mortos não nos fazem mal. E quando mexemos em alguém é com luvas, é com máscara, é com batas. Tentamos sempre estar ao máximo protegidos", contou.

De acordo com a psicóloga com quem a Lusa falou, o contacto diário com a morte pode constituir-se como desgastante e pode, ao mesmo tempo, evocar perdas do próprio profissional.

Ainda assim, há estratégias que os agentes funerários, como Hugo Salgueiro, usam para poder ultrapassar os desafios emocionais que resultam do trabalho.

"Nós tentamos erguer uma defesa para que não soframos as dores dos nossos clientes, porque senão andávamos sempre deprimidos. Mas há momentos em que essa defesa quebra", frisou, referindo-se, sobretudo, a alturas em que um conhecido morre, o que expõe sentimentos que estavam reprimidos.

Apesar dos anos de experiência, os agentes funerários têm inúmeras histórias que permanecem gravadas na memória devido à intensa carga emocional vivida.

"Houve uma situação que me marcou, um irmão a chorar a morte da irmã, em que pediu ao coveiro para colocar a terra com carinho, devagarinho, em cima da urna", contou Hugo Salgueiro, referindo-se a um funeral que realizou há mais de três anos e que ainda guarda na lembrança.

Também Jorge Salgueiro recordou uma história impactante, nomeadamente quando teve de realizar um evento fúnebre solicitado por uma mãe para o seu bebé.

"Comecei a preencher os papéis e perguntei-lhe onde é que o bebé estava. Ela apontou para a barriga", contou.

De momento, não há apoios específicos que ajudem os agentes funerários a processar o contacto diário que têm com a morte, segundo o presidente da Associação Agentes Funerários de Portugal, Vítor Teixeira, mas formações que fizessem referência ao assunto são algo a ponderar.  

"Na nossa exposição à perda, ao luto, ao sofrimento dos outros, seria importante, se calhar, abordar-se [as formações] dessa forma, mas na generalidade não o são", explicou, tendo referido outras formações que existem de psicologia de luto, mas que ensinam os agentes funerários a lidar com as famílias e não com o impacto emocional que advém da profissão.

Hugo Salgueiro, que concordou que faria sentido haver esta oferta pela parte das várias associações do setor, sugeriu que poderiam ser feitos protocolos com a Ordem dos Psicólogos.

Apesar de salientar os benefícios destes apoios à saúde mental, Vânia Sousa Lima salientou que deveriam existir "não apenas numa lógica de intervenção, quando as dificuldades estão instaladas, mas para a promoção de competências e recursos individuais para lidar com dificuldades antecipadas".

Independentemente dos desafios emocionais, o reconhecimento que os agentes funerários recebem das famílias, que inclusive até oferecem lembranças, como cartas de agradecimento, é o suficiente para não desistirem. 

"É gratificante para nós sermos reconhecidos no final do nosso trabalho. Acho que em qualquer trabalho, se formos reconhecidos, ficamos contentes e dá-nos alento a continuar", concluiu Jorge Salgueiro.

Leia Também: Vítimas de cheias em Espanha terão funeral de Estado um ano após tragédia

Partilhe a notícia

Escolha do ocnsumidor 2025

Descarregue a nossa App gratuita

Nono ano consecutivo Escolha do Consumidor para Imprensa Online e eleito o produto do ano 2024.

* Estudo da e Netsonda, nov. e dez. 2023 produtodoano- pt.com
App androidApp iOS

Recomendados para si

Leia também

Últimas notícias


Newsletter

Receba os principais destaques todos os dias no seu email.

Mais lidas