"Não há zona humanitária segura em Gaza. É importante dizer que não existe. Não há nenhum sítio para onde as pessoas possam ir e realmente estarem seguras, livres dos bombardeamentos", declarou Raul Manarte, membro da organização não-governamental que passou o mês de novembro na Faixa de Gaza.
Manarte, que esteve a trabalhar no hospital Nasser, em Khan Yunis (sul), e no hospital de campanha dos MSF em Deir al-Ballah (centro), recordou que assistiu "bombardeamentos na estrada que utilizava para chegar o hospital" e que "quase atingiram o carro em que viajava".
"Também devo dizer que víamos constantemente os 'drones', os helicópteros, os jatos, a marinha [israelita]. Ouvíamos disparos e explosões que aconteciam dentro da zona que supostamente seria a zona humanitária, a zona segura", denunciou.
Para o membro dos MSF, neste momento, "o mais importante é haver um cessar-fogo".
"Apelamos não só ao exército israelita, mas também aos outros Estados que direta ou indiretamente apoiam estes ataques, como os Estados Unidos, o Reino Unido, Alemanha e outros Estados, que parem [o conflito] e que Conselho de Segurança da ONU consiga aprovar um cessar-fogo. Porque isto seria o mais importante não só para a saúde física das pessoas, mas também para a sua saúde mental", disse.
"Isto [cessar-fogo] seria o mais importante a fazer e se não acontecer, a situação psicológica da população vai continuar a deteriorar-se", afirmou, sublinhando que a recuperação da saúde mental da população será um processo difícil.
Manarte, psicólogo clínico e psicoterapeuta, é responsável por criar projetos para as equipas de intervenção em saúde mental, assim como iniciar as suas atividades, monitorizar e desenvolver a estratégia de saúde mental para cada projeto dos MSF em que está envolvido. O psicólogo clínico, que está ligado ao trabalho humanitário desde 2016 e juntou-se aos MSF em 2018, já integrou missões na Índia, Moçambique, Guiné-Bissau, Bolívia, Brasil, Ucrânia, Sudão do Sul e agora na Faixa de Gaza.
Raul Manarte declarou que muitos dos pacientes atendidos pelos MSF na Faixa de Gaza apresentam sintomatologia traumática, como 'stress' agudo, insónia, 'flashbacks', ataques de pânico, dissociação, hiper-reatividade e hipervigilância.
"Estes sintomas têm a ver com situações potencialmente traumáticas pelas quais as pessoas passaram, como bombardeamentos, perda de familiares de filhos e pais. Temos relatos de perdas de gerações inteiras ou de várias gerações numa família, por exemplo, um senhor que perdeu todos os filhos, todas as filhas e todos os netos", sublinhou.
"Alguns eventos também, como temos relatos de homens que foram presos arbitrariamente e que relataram ter sido torturados e que não puderam ser contactados pela família", frisou, sublinhando que familiares de funcionários humanitários palestinianos dos MSF passaram por situações semelhantes.
O psicólogo referiu que atenderam crianças que tiveram de passar por uma amputação. Manarte referiu ainda que menores atendidos nos hospitais da MSF a falarem de suicídio ou de outros comportamentos como a automutilação.
"Praticamente toda a gente em Gaza, mais de 90%, já foi deslocada várias vezes. Saíram das suas casas para ir para um sítio, para depois ir para outro, para depois ir para outro e para outro. Tive uma miúda de 12 anos que foi deslocada 14 vezes durante este ano, esteve quatro vezes debaixo de escombros", referiu.
Outras situações que podem levar ao sofrimento psicológico, segundo Manarte, são o difícil acesso à água, a alimentos, combustível, suprimentos médicos, a precária situação de moradia, nomeadamente em tendas que não protegem do frio e das chuvas.
"São muito difíceis estas condições de vida que citei e não melhoram porque o exército israelita não permite a entrada suficiente de alimentos, de mantimentos e de materiais médicos", assegurou.
Também sublinhou a situação difícil dos seus colegas palestinianos dos MSF, que vivem em tendas e passam pelas mesmas dificuldades da população da Faixa de Gaza, lembrando ainda que oito membros da ONG já morreram em bombardeamentos israelitas e um médico encontra-se preso e incomunicável.
Israel lançou uma ofensiva contra a Faixa de Gaza após o grupo Hamas ter invadido o território israelita em 07 de outubro de 2023, provocando a morte de 1200 pessoas e cerca de 250 sequestrados, muitos ainda nas mãos dos islamitas palestinianos. Na Faixa de Gaza, segundo as autoridades de saúde do enclave controlada pelo Hamas, mais de 44 mil pessoas já morreram nos ataques e bombardeamentos israelitas.
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