One Health? "Bases das doenças são semelhantes entre animais e humanos"
O Notícias ao Minuto conversou com o médico veterinário Bernardo Soares, diretor da área de saúde humana e animal na agência de marketing e comunicação UPPartner, que deu conta da importância da implementação da abordagem One Health, numa altura "em que as doenças não respeitam fronteiras e transmitem-se de forma muito rápida".
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País One Health
A forma mais simples de explicar o ténue equilíbrio entre a saúde humana, animal e ambiental e o impacto negativo do desfasamento de um destes pilares para a sociedade é, provavelmente, recordamos as origens da Covid-19, que assola o mundo desde 2020.
A comunidade científica na sua generalidade reconheceu que o SARS-CoV-2 foi transmitido através dos morcegos, o que, na ótica do médico veterinário Bernardo Soares, diretor da área de saúde humana e animal na agência de marketing e comunicação UPPartner, foi, talvez, "o único aspeto positivo [...] para nos podermos preparar melhor para o futuro".
Isto porque, de acordo com o responsável, a propagação do vírus "foi o primeiro passo das pandemias que se seguem", pelo que "temos a obrigação de fazer algo com a informação toda que temos", de modo a preservarmos o planeta, "não só pela nossa saúde, mas também pela saúde dos animais e do ambiente".
É aqui que entra abordagem One Health (Uma Só Saúde, em português) que, conforme explicou Bernardo Soares ao Notícias ao Minuto, cada vez mais serve "as necessidades que temos no contexto de globalização de hoje em dia, em que as doenças não respeitam fronteiras e transmitem-se de forma muito rápida".
Quando um destes pilares fica desnivelado, acaba por afetar os outros dois e haver um desfasamento que terá repercussões e impactos negativos na sociedade
O conceito de uma só saúde não é novo, mas só recentemente é que obteve mais atenção, em parte devido à pandemia da Covid-19. Mas, afinal, em que consiste esta abordagem?
Consiste, no fundo, em reconhecer a interdependência entre três pilares – a saúde animal, humana e ambiental – e a intimidade e a conexão muito, muito profunda que existe entre as três. Nisso acaba por depender o equilíbrio do planeta em que vivemos. Quando um destes pilares fica desnivelado, acaba por afetar os outros dois e haver um desfasamento que terá repercussões e impactos negativos na sociedade.
Sim, e acabámos por ver isso recentemente com a pandemia.
Sim, sem dúvida. A Covid-19 obviamente que veio alertar e trazer essa consciência para o grande público; não diria para a comunidade científica, que há muito tempo que está alertada para esta temática. A maioria dos cientistas reconhece que foi através dos morcegos que houve esta transmissão do coronavírus e, portanto, diria que se calhar foi o único aspeto positivo para despertar esta consciência e para nos podermos preparar melhor para o futuro, uma vez que certamente haverá situações semelhantes a esta.
Nessa linha, e de acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), cerca de 60% das doenças infecciosas emergentes e registadas a nível global têm origem em animais selvagens e domésticos. De que forma é que a One Health ajudaria a prevenir a propagação destas patologias?
No contexto dos animais selvagens, ajudaria na questão de respeitar os seus habitats, o que implica ser menos invasivo. No caso da Amazónia, o que se tem vindo a fazer obriga os animais que lá habitam a ter uma área menor onde se podem movimentar e a aproximarem-se cada vez mais dos seres humanos. Este contacto mais próximo acaba por invariavelmente significar um risco maior de transmissão das doenças desses animais para os nossos animais domésticos e, por consequência, para nós.
Na altura, os mecanismos de informação eram menos e não havia essa consciência. Hoje em dia, temos a obrigação de fazer algo com a informação toda que temos; é uma questão de consciência, de preservação do planeta, não só pela nossa saúde, mas também pela saúde dos animais e do ambiente
Fala-se também muito sobre o degelo e os vírus que estão presos nos icebergues…
Sim, os vírus que estão colados no permafrost e, com o aquecimento global e o degelo que provoca, esses organismos que estavam inertes são ativados e podem propagar-se e ser disseminados para as pessoas, para o ambiente, para os animais.
Lá está, a OMS ainda está à espera da chamada doença X, que se poderá traduzir numa pandemia ainda mais perigosa e significativa do que a da Covid-19.
Acredito que a Covid-19 foi o primeiro passo das pandemias que se seguem. Houve mais pandemias no passado, obviamente. Tivemos a peste negra, na Idade Média, que se pensa ter sido transmitida pelas pulgas presentes em ratos e que causou imensos mortos na Europa, sobretudo, mas também outras mais recentes, como a gripe aviária e a gripe espanhola. Na altura, os mecanismos de informação eram menos e não havia essa consciência. Hoje em dia, temos a obrigação de fazer algo com a informação toda que temos; é uma questão de consciência, de preservação do planeta, não só pela nossa saúde, mas também pela saúde dos animais e do ambiente.
Gatos de estimação que saiam para o exterior podem inclusivamente ter uma repercussão negativa no ambiente, porque têm um instinto muito forte de caça e é natural procurarem presas, desde aves a répteis e pequenos roedores, o que se vai repercutir no ciclo natural do ecossistema
Considera que, neste momento, as novas gerações começam a ter uma perceção de que, de facto, os animais não são meros ‘seres inferiores’, como eram encarados antigamente, e que é necessário preservar a sua saúde e bem-estar para que a nossa própria saúde seja preservada?
Digo isso muitas vezes. Aliás, se calhar há 30 ou 40 anos, o cão, por exemplo, era um animal que se deixava no jardim e que não podia entrar em casa. Isso mudou muito, felizmente. Os animais ganharam um estatuto diferente e vemos que a maioria dos tutores os consideram parte da família. E é verdade que nos podem dar muitos benefícios, desde a nível mental ao nível físico. Ao termos de fazer passeios com os cães acabamos por fazer exercício físico, e está comprovado que a sua companhia, e até mesmo acariciá-los, diminui o nosso stress e a ansiedade.
Acho que há um quid pro quo e temos de sempre de os tratar da melhor forma possível. Se o meu cão tem algum problema, não olho a meios para o poder tratar – é o meu cão, não é o meu filho, mas é da família. Acho que a sociedade está cada vez mais desperta e inclusiva para esse tema e os benefícios que podemos recolher da nossa convivência com eles são enormes. Aliás, temos cada vez mais exemplos de serviços assistidos por animais, sejam eles sob a forma de terapia, de aprendizagem nas escolas, ao apoio a invisuais.
Quem diz cães, diz gatos, mas muitas das vezes estão mais dentro de casa e têm uma forma de estar completamente diferente. Ainda assim, também têm os benefícios que mencionei e fazem-nos muita companhia.
Mesmo assim continua a haver muitos gatos e cães soltos, ainda que talvez seja mais frequente nas aldeias.
Isso é um grande problema, sim. Por isso é que sou um grande defensor dos programas de esterilização municipais e de freguesias, para combatermos a reprodução descontrolada e a propagação de zoonoses. Há doenças que nos são transmitidas pelos cães e pelos gatos, por exemplo a leishmaniose e a toxoplasmose. Até no contexto de colónias felinas urbanas, a esterilização é importantíssima. Gatos de estimação que saiam para o exterior podem inclusivamente ter uma repercussão negativa no ambiente, porque têm um instinto muito forte de caça e é natural procurarem presas, desde aves a répteis e pequenos roedores, o que se vai repercutir no ciclo natural do ecossistema.
No caso dos cães, vê-se muitos tutores que não recolhem as fezes que, além da contaminação ambiental, podem ter parasitas. Também há cães e gatos vadios que fazem as suas necessidades nos parques com equipamentos infantis, e as crianças metem as mãos na boca, havendo um possível contágio de doenças dos animais para os humanos.
Vê-se cada vez mais a preocupação de ter alternativas mais sustentáveis à proteína utilizada nas rações. Em produtos com origem animal, há a alternativa da proteína dos insetos que, do ponto de vista sustentável, é bastante mais viável, não só em termos de recursos necessários, porque precisa muito menos de água e de espaço do que gado, mas também dos efeitos para o ambiente
As alterações climáticas, a desflorestação e a perda de habitat natural também impulsionaram a deteção de 30 novos patógenos humanos nas últimas três décadas, 75% dos quais com origem animal. Que estratégias é que estão a ser postas em prática para disseminar a adoção desta abordagem?
A esterilização é, desde logo, uma delas. Campanhas de adoção responsável também são muito importantes, porque há pessoas que ainda encaram os animais como um ‘presente’ e não têm plena consciência do que implica ter um animal a seu cargo, pelo que, quando se apercebem disso, acabam por abandoná-lo. Isso causa um problema de uma população descontrolada e desenfreada de animais que, depois, vão interagir com outros animais e transmitir doenças, por exemplo. Há muita investigação a ser feita.
Vê-se cada vez mais a preocupação de ter alternativas mais sustentáveis à proteína utilizada nas rações. Em produtos com origem animal, há a alternativa da proteína dos insetos que, do ponto de vista sustentável, é bastante mais viável, não só em termos de recursos necessários, porque precisa muito menos de água e de espaço do que gado, mas também dos efeitos para o ambiente, porque sabemos que há emissões de gases com efeito de estufa consideráveis resultantes da criação de gado. No caso dos insetos isso não acontece, e a proteína que advém dos insetos acaba por ser mais completa do que outras que estão a ser utilizadas. Vemos já algumas marcas e empresas de fabricação que se posicionam dessa forma mais sustentável e começam a integrar esta alternativa.
Há projetos já a ser postos em prática para a reciclagem dos resíduos usados em contexto veterinário, para que não contribuam para a contaminação de solos e da água. Além disso, há medicamentos que se podem dar em casa, via oral, e que acabam por tornar o tratamento muito menos stressante para o animal e, por consequência, para o tutor.
O comportamento animal também tem vindo a ganhar cada vez mais consciência na sua importância no bem-estar animal. Se há pouco falávamos de há 30 ou 40 anos haver uma mentalidade diferente em relação aos animais de companhia, nessa altura o comportamento animal seria visto como uma parvoíce sem sentido
O que muita gente não sabe é que, quando levam os seus cães a passear em campos, onde muitas vezes há cursos de água, as coleiras desparasitantes libertam químicos ao entrar na água e acabam por poluir e afetar a fauna aquática. Algo que seria importante, e sei que há investigações nesse sentido, era criar coleiras cujos componentes químicos sejam hidrofóbicos, que não se misturem com a água.
Sabemos que há cada vez mais seguradoras a ter uma perspetiva um pouco mais alargada – e One Health, diria – que, além das castrações, esterilizações e urgências, começam a integrar protocolos com equipas veterinárias especializadas em certos temas, como é o caso do comportamento animal, por exemplo. O comportamento animal também tem vindo a ganhar cada vez mais consciência na sua importância no bem-estar animal. Se há pouco falávamos de há 30 ou 40 anos haver uma mentalidade diferente em relação aos animais de companhia, nessa altura o comportamento animal seria visto como uma parvoíce sem sentido.
Hoje em dia é bem diferente e a Covid-19 também nos veio alertar para esse facto. O confinamento foi fantástico para os cães, porque adoram ter companhia constante. Para os gatos nem tanto, porque gostam mais do seu espaço. Mas assim que o confinamento foi levantado, criou-se um problema. Os cães viram-se sozinhos e muitos deles ficaram com ansiedade por separação, que é um problema frequente sobretudo em cães adotados. Isto veio contribuir para uma maior consciência por parte dos tutores, uma vez que o comportamento dos animais também nos influencia.
Em termos de cancros, obviamente há investigação que podemos fazer nos nossos animais de companhia, cuja base poderá servir para futuros tratamentos e futuras investigações que incidam sobre a saúde dos humanos. Há instituições de ensino em Portugal que começam a fazer esse tipo de investigações, assumindo que as bases das doenças são muito semelhantes entre os animais e os humanos
Vemos cada vez mais universidades de ciências da saúde, sejam elas veterinárias ou humana, a fomentar iniciativas para debater temas da atualidade e enquadrar One Health. Por exemplo, o curso de medicina veterinária da Egas Moniz School of Health and Science tem os alicerces na One Health. Vemos uma maior consciência, vemos que a One Health está a ganhar força, mas ainda precisa de muita implementação, de chegar mais a entidades governativas e públicas, para poder ser enquadrada nas políticas públicas que temos.
De que forma é que a One Health poderia não só prevenir a resistência a antibióticos, como também o desenvolvimento de doenças crónicas e de doenças não transmissíveis, como doenças cardiovasculares, diabetes ou cancro?
Doenças cardiovasculares [poderiam ser prevenidas] com os efeitos positivos que os animais têm na saúde em geral. Fazendo mais exercício, estamos a melhorar a saúde cardiovascular. Em termos de cancros, obviamente há investigação que podemos fazer nos nossos animais de companhia, cuja base poderá servir para futuros tratamentos e futuras investigações que incidam sobre a saúde dos humanos. Há instituições de ensino em Portugal que começam a fazer esse tipo de investigações, assumindo que as bases das doenças são muito semelhantes entre os animais e os humanos.
Em relação a zoonoses, temos de ter campanhas de comunicação para consciencializar as pessoas e impedir a desinformação. Por exemplo, a toxoplasmose, que tem origem nos gatos, é uma zoonose que se transmite através das fezes e que tem gerado bastante burburinho, especialmente junto das mulheres grávidas, porque há risco de aborto. Estando mal informadas, essas pessoas acabam por dar o gato ou abandoná-lo. Mas essas pessoas podem delegar a outros membros da família que tratem da limpeza da caixa de areia, não estando em contacto. Podem, inclusivamente, usar luvas. Há uma série de formas que impedem esse risco e não há qualquer necessidade de abandonar o animal.
Relativamente às resistências antimicrobianas, mais uma vez é preciso uma grande consciencialização e um trabalho exaustivo por parte da comunidade veterinária sobre a automedicação. Infelizmente, ainda existe muito esse hábito, tanto na saúde humana, como na saúde animal. Todas as recomendações são para ser seguidas, sejam elas dadas por médicos de saúde humana, como por médicos veterinários.
Também parte dos profissionais veterinários alertarem os tutores, mas são os tutores que decidem o que fazem. Apesar de gostarem muito deles e de não se verem sem eles, as pessoas são um bocadinho mais distraídas em relação aos seus animais
E no caso dos animais?
Para já, são as pessoas que têm de ter essa incumbência e estar mais informadas. Se calhar, há aqui um paralelismo com o abandono e com a adoção responsável. As pessoas têm de estar mais conscientes sobre as doenças e as medidas preventivas a ter relativamente aos seus animais. Por exemplo, a leishmaniose é um problema grave para os cães, e as pessoas, muitas vezes, não têm essa noção, ou acham que não é assim tão importante.
Mas a verdade é que existe uma vacina, existem desparasitações trimestrais que devem ser feitas, e as pessoas acabam por não entender. Também parte dos profissionais veterinários alertarem os tutores, mas são os tutores que decidem o que fazem. Apesar de gostarem muito deles e de não se verem sem eles, as pessoas são um bocadinho mais distraídas em relação aos seus animais.
Os veterinários sempre estiveram mais sensibilizados para a interação entre a saúde animal e a saúde humana. São os veterinários que estão muito envolvidos na segurança alimentar e que fazem a inspeção de carnes e de produtos de origem animal. Portanto, acabam por salvaguardar a qualidade do que nos chega à mesa e a saúde pública
Em julho deste ano, a Ordem dos Médicos criou um grupo de trabalho dedicado à One Health, por forma a “promover em Portugal uma intervenção mais efetiva em benefício da saúde da população”. O que é que este passo representa para a aplicação da metodologia?
A Ordem dos Médicos Veterinários não está envolvida, pelo que não poderá ser One Health em toda a sua medida. Também tenho visto iniciativas e protocolos conjuntos que apontam para um sentido positivo de implementação de One Health, sobretudo desde que temos um novo bastonário, e o que haverá é uma troca de informação entre áreas distintas, que permite complementar a atuação dentro da One Health. É importantíssimo haver profissionais da área da saúde humana, profissionais da área da animal e profissionais da área da saúde ambiental de forma muito próxima, para monitorizar o que está a acontecer e apresentar propostas para a direção One Health.
Os veterinários sempre estiveram mais sensibilizados para a interação entre a saúde animal e a saúde humana. São os veterinários que estão muito envolvidos na segurança alimentar e que fazem a inspeção de carnes e de produtos de origem animal. Portanto, acabam por salvaguardar a qualidade do que nos chega à mesa e a saúde pública.
É um ótimo sinal que haja alguém da saúde humana que se dedique a comunicar sobre essa parte, e é mais um despertar da consciência e das necessidades que temos no contexto de globalização de hoje em dia, em que as doenças não respeitam fronteiras e transmitem-se de forma muito rápida.
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Os One Health Pet Awards terão lugar no dia 28 de novembro, em Lisboa, tendo como objetivo "promover uma abordagem integrada à saúde e discutir o impacto da saúde animal na saúde humana e na saúde ambiental", assim como "fomentar a consciência sobre One Health e reconhecer os projetos nesta área".
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