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"O tempo que a doença me trouxe levou-me a tentar fazer algo bonito"

O entrevistado de hoje do Vozes ao Minuto é Gustavo Carona, médico dos Cuidados Intensivos, conhecido pelas suas missões e análises da pandemia. Perante uma doença que o impede de trabalhar, o profissional de saúde lançou um projeto que pretende premiar a bondade. Nós fomos conhecê-lo.

"O tempo que a doença me trouxe levou-me a tentar fazer algo bonito"

Gustavo Carona surge no ecrã do computador, durante a entrevista feita por Zoom, deitado, a única posição que o permite estar durante cerca de uma hora à conversa connosco. O médico intensivista, de 42 anos, que ficou conhecido durante a pandemia devido às múltiplas análises que fez nas televisões portuguesas, sofre de Dor Crónica, uma condição que o atingiu durante a crise pandémica, não bastassem as inúmeras lutas que travou nessa altura.

Apesar de assumir que lhe é muitas vezes difícil encontrar motivos para viver com esta doença - que não lhe permite trabalhar, nem voltar a abraçar missões humanitárias e lhe traz dificuldades em estar de pé ou sentado - Gustavo não desiste de continuar a ajudar os outros e é com um sorriso nos lábios que nos fala dos 'Prémios Coração e o Mundo' e da gala onde estes serão atribuídos, que intitulou de 'Óscares da Bondade'.

Tudo começou em novembro. Num impulso, fez um vídeo para as redes sociais a anunciar os prémios. Um projeto que já estava guardado na gaveta há anos e que agora, com o tempo a restar, decidiu recuperar.

Desde logo, foi surpreendido com a adesão dos internautas à iniciativa. Após uma criteriosa seleção, Gustavo e uma equipa "incrível", como descreve, formaram 17 categorias a distinguir, cada uma com 10 nomeados, entre os quais estão nomes de organizações e de pessoas que trabalham em áreas de intervenção social.

Em breve, um júri, criteriosamente escolhido, irá reduzir o top 10 a quatro nomeados por categoria, aos quais serão entregues prémios monetários de igual valor. Posteriormente, irá realizar-se uma gala, onde o público será chamado a votar no vencedor de cada uma das categorias, que vão desde o apoio à terceira idade, a quem defende os direitos das mulheres, a quem luta pelos refugiados, pelas crianças, por pessoas LGBTI+ e até por animais.

Além dos prémios, durante a entrevista falámos com Gustavo Carona sobre as 13 missões humanitárias que realizou ao longo da vida, da sua saúde mental, da pandemia e do estado do SNS. Uma conversa a não perder.

Comecemos pelos 'Prémios Coração e o Mundo'. Como surgiu a ideia de premiar a bondade?

Eu tento sempre pensar em formas de melhorar qualquer coisinha no mundo. Usar a criatividade para que as pessoas estejam mais atentas às questões humanitárias e criar algumas iniciativas promovam a humanidade. Por isso, achei que uma premiação organizada, bem estruturada e que fosse abrangente nas causas seria duplamente boa. Duplamente porque a vontade principal, se calhar o que me domina, é moldar a sociedade.

Acreditando numa cultura de mérito, de premiação, os sinais que nós, sociedade, enviamos é que o que queremos todos é ser ricos, ser bonitos, ser bem sucedidos, ser os melhores. É competição. E acho que falta alguma coerência no sentido que queremos também que a sociedade seja mais humana, mais justa, mas equilibrada, mais bondosa mas aquilo que premiamos é o seu contrário, é a futilidade, é a vaidade, é a riqueza. Portanto, acredito que se premiarmos e se expusermos essa premiação, vamos levar as pessoas a olharem para o mundo com um bocadinho mais de coração.

Toda a gente concorda que ajudar é bom, bonito e tal, mas depois temos uma certa dificuldade em olhar para os problemas de frente

E  outro objetivo?

O objetivo secundário é a premiação de organizações e, em alguns casos, de pessoas que fazem coisas muito bonitas na nossa sociedade. Ao premiá-las, não só acho que estamos a dar reforço positivo e a dizer que há pessoas que estão atentas e querem realmente enaltecer o trabalho meritório de tantos, como estamos obviamente ajudar com alguns contributos monetários. Neste caso, com o prémio estamos a mostrar à sociedade a parte bonita de fazer parte das soluções e acredito que, com isto, vamos inspirar muita gente a querer participar, a querer ajudar, seja com o seu tempo, seja com donativos. Acredito que vamos dar força a cada uma destas organizações e à ação de ajuda ao próximo, no geral.

Um trabalho [solidário] que é muitas vezes invisível...

É quase invisível, sim. Há coisas fantásticas a acontecer em Portugal e pelo mundo fora e que têm pouca notoriedade, pouca atenção. Toda a gente concorda que ajudar é bom, bonito e tal, mas depois temos uma certa dificuldade em olhar para os problemas de frente. Eu compreendo, é quase um reflexo do ser humano fugir aos problemas. Acho que não é a melhor forma de estar na vida. Acho que devemos olhar os problemas de frente e tentar fazer parte das soluções e, aí, vamos com certeza, encontrar uma forma mais bonita de estar na vida.

Recentemente revelou que a ideia destes prémios estava guardada na gaveta, que chegou mesmo a apresentá-la a Marcelo Rebelo de Sousa, mas que, na altura, não deu em nada. Porque decidiu colocá-la em prática agora?

Faço parte de um grupo que fala com o Presidente e, nesse âmbito, tentei partilhar alguns dos meus ideais com ele e achei que a melhor forma de os expor era através desta premiação. Na altura, a ideia original era olhar mais para o mundo e não tanto para Portugal, mas depois senti que a aplicação prática seria mais exequível se começasse por Portugal e digo começasse porque tenho sempre a ambição de chegar mais longe. Entretanto, avancei com a ideia agora porque tenho tempo, devido à minha doença. Tenho incapacidade de exercer medicina e só consigo fazer coisas que estejam, basicamente, ao meu alcance online. Escrevo coisas, falo com alguma frequência aqui e ali, mas achei que tinha força e tempo para por este projeto em prática, que era um sonho antigo. De alguma forma, num rasgo de loucura, literalmente, acordei de manhã e fiz um vídeo, em novembro, e pus nas redes sociais. Achei, é agora, vamos a isso [risos]...

O tempo que a doença me trouxe levou-me a tentar fazer algo bonito, a transformar esta minha incapacidade numa coisa qualquer que possa ser interessante

E foi surpreendido com a adesão...

E depois fui surpreendido, exatamente [risos]. O sucesso em termos de visualizações, em termos da quantidade de pessoas que se mostrou interessada em ajudar, em colaborar e a qualidade de muitas pessoas que fazem hoje parte da equipa fizeram-me acreditar com mais força. O vídeo teve quase 800 mil visualizações, o que é imenso. O vídeo já propunha sugestões e tive milhares de comentários, se não me engano, perto de 6 mil, entre Instagram, Facebook e Google Forms. Foi realmente muita gente a achar que esta ideia era bonita. Mas, não fugindo da sua pergunta, foi a impulsividade e o tempo, o tempo que a doença me trouxe levou-me a tentar fazer algo bonito, a transformar esta minha incapacidade numa coisa qualquer que possa ser interessante.

Portanto, em continuar a ajudar os outros, uma outra missão humanitária...

Sim, eu não consigo de forma alguma esquecer aquilo que eu trago nas minhas memórias, aquilo que vivi, a importância da ajuda humanitária e a forma bonita e apaixonada com que tive o privilégio de viver. Quem está ligado a estas formas de estar, digamos assim, acho que tem um retorno e uma gratificação muito grande. É bom para os outros e é bom para nós e como acredito muito nesta forma de estar, quero amplificá-la.

Entretanto, o projeto começou a ganhar forma. Cada uma das 17 categorias tem 10 nomeados. Como vamos agora chegar a um vencedor?

Destes dez nomeados ou pré-nomeados, o júri, que é constituído por cinco pessoas com muita experiência na área, vai escolher quatro, que serão os apresentados na gala. Depois, será novamente o público que irá votar qual destes quatro nomeados [de cada categoria] é que merece ter a estatueta dos 'Prémios Coração e o Mundo'. Esse vencedor terá uma distinção especial, contudo, o prémio monetário é igual para os quatro nomeados pelo júri, para manter a coerência daquele que é o espírito do projeto. Portanto,  acho que a credibilidade do júri é extremamente importante em termos de impacto, em termos de qualidade, em termos de transparência, mas também quero continuar a integrar o público.  Gostava que este fosse um prémio de todos para todos, uma espécie de causa das causas ou ajuda das ajudas. Nesse sentido é muito importante envolver o público o mais possível.

Acho que isto tem tudo para ser um sucesso de audiências, mas sou eu a sonhar. Nós pretendemos que a gala tenha uma série de artistas conhecidos, e quando digo conhecidos é mesmo de topo

E foi fácil arranjar patrocínios e chegar ao júri? Como é que correu esse processo?

Os patrocínios ainda estão em curso. Muitos contactos, muitas pessoas interessadas, mas vai ser ainda uma conquista para fazer nos próximos tempos. Quanto ao júri, muitas pessoas vieram ter comigo, outras eu fui ter com elas. A equipa foi sendo construída desde o início e o júri está dentro do projeto desde essa altura também, foi escolhido por mim e pela minha equipa. Eu seduziu-os e eles aceitaram [risos].

E a gala dos 'Óscares da Bondade' quando é que se vão realizar? Serão transmitidos por alguma televisão?

A data de trabalho é final de setembro. Provavelmente, em Lisboa. Ainda não marcámos o sítio, mas estamos a tratar disso. Estamos a trabalhar bastante para - e era uma conquista muito importante – ter uma emissão em direto num dos principais canais portugueses. Já namorei com dois canais de televisão, que se mostraram abertos à possibilidade, mas ainda não está fechado e era muito importante que conseguíssemos. Acredito também que à medida que as coisas vão ganhando forma e visibilidade, as televisões possam se sentir obrigadas, coagidas moralmente [risos].

Acho que isto tem tudo para ser um sucesso de audiências, mas sou eu a sonhar. Nós pretendemos que a gala tenha uma série de artistas conhecidos, e quando digo conhecidos é mesmo de topo, cá em Portugal. Alguns deles são padrinhos do projeto, portanto, acho que a sua presença está quase garantida. Entretanto, estão também a serem contactados outros artistas. Neste momento não posso adiantar nomes que não estão confirmados, mas estamos a falar dos melhores músicos que temos em Portugal. Pretendo que a gala tenha entretenimento, tenha criatividade, seja sexy, de alguma forma…

Uns verdadeiros Óscares…

[Risos] Sim! Nós estamos a falar de questões muitos tristes, da pobreza, sem-abrigo, das dificuldades que há na terceira idade, na luta contra o racismo, nos direitos da mulher e nas injustiças que há. Por aqui e pelo mundo fora. Estamos a falar de problemáticas que são duras e tristes, mas quando estamos a falar das pessoas que fazem parte das soluções e que ajudam os mais vulneráveis, nas suas diferentes causas, acho que o conteúdo é bastante inspirador e positivo. E honesto! Não queremos de alguma forma dourar a pílula, é o que é, e o trabalho destas pessoas é lindo de morrer, só precisa é de ser exposto e bem exposto.

Entristece-me que tenha sido um afegão a fazer esta estupidez [ataque ao Centro Ismaili] porque, obviamente, todos os afegãos vão ser discriminados e os afegãos são pessoas espetaculares, são genuinamente boas e têm um carácter muito, muito interessante

Mas esta não foi a única missão humanitária que abraçou. Aliás, o Gustavo completou 13 missões em diferentes países como a Síria, o Iémen, Afeganistão, Sudão do Sul, entre outros. Quando e como começou a sentir este apelo solidário?

Acho que houve algumas sementes, através de livros, de documentários, filmes que me fizeram despertar emoções. A minha primeira viagem a África, que foi em 2007, a Moçambique, foi um ponto de viragem nesse sentido, em particular quando estive num mercado, que é o mercado de Xipamanine,  uma espécie de mercado onde existe de tudo e mais alguma coisa, uma Feira da Vandoma ou de Carcavelos, muita confusão e, como é lógico, ao nível africano, muita pobreza, miséria. Nessa altura senti que alguns objetos que temos com alguma facilidade, como telefones, iPods e computadores, podiam alimentar tanta gente. Na altura, e penso que agora já não é, Moçambique era o país que tinha menos médicos per capita, e isso fez-me pensar: 'Se eu gosto de ser médico, se gosto de ajudar pessoas, é apenas uma questão de coerência, tentar exercer medicina onde ela é mais necessária'.

Qual a missão humanitária que mais o marcou?

A resposta a esta pergunta não é linear. É difícil comparar desgraças, até porque tem muito a ver com os sítios onde estive. Se estava mais perto dos confrontos ou se estava um bocadinho mais longe. Há aqui uma série de circunstâncias que fazem com que a experiência possa ter sido mais ou menos intensa e depois também tem a ver com a minha ação enquanto médico. Acho que a minha experiência mais forte foi na Síria, onde senti mais desafios. Estive muito perto das bombas e num cenário muito agudo, muito intenso. A presença do Estado Islâmico, a repressão e a dureza de uma guerra civil. Já onde me senti mais completo enquanto médico foi no Iémen e depois sou super apaixonado por África e pelo Afeganistão.

Se me perguntar um país que me marcou, talvez o Afeganistão. A missão também foi super interessante, mas a oportunidade de ter visto uma boa parte daquele país, que é super bonito e olhe, ainda agora, vou ter de escrever sobre isto, entristece-me que tenha sido um afegão a fazer esta estupidez [ataque ao Centro Ismaili] porque, obviamente, todos os afegãos vão ser discriminados e os afegãos são pessoas espetaculares, são genuinamente boas e têm um carácter muito, muito interessante.

Apesar da dureza dessas missões, descreveu a pandemia como um dos desafios mais difíceis da sua vida e até escreveu um livro sobre esse facto. O que foi mais difícil neste combate?

É muito injusto comparar a pandemia com a guerra do Iémen. É muito injusto comparar o Sudão do Sul com a pandemia. Não podemos comparar a dimensão do sofrimento, das mortes, de aquilo que aconteceu na pandemia versus aquilo que aconteceu em todos os sítios em que eu já estive. Agora, para mim, Gustavo, pessoa, médico, irmão, filho, amigo, colega foi emocionalmente muito duro porque, para além de ser médico intensivista e ser confrontado com a necessidade de trabalhar imenso, de estudar imenso, de ensinar os médicos mais novos e de outras especialidades que nos vinham ajudar, foi uma catadupa de acontecimentos ao mesmo tempo.

Quase todos os dias, mesmo nos que não ia ao hospital, depois de trabalhar 24h, uma coisa que para nós é frequente nos Intensivos, chegava a casa, descansava 3h ou 4h, e a primeira coisa que fazia quando acordava era abrir o computador, ver os e-mails, ver as novas 'guidelines', aquilo que já tinha sido feito pelos meus colegas e que eu tinha de aprender, aquilo que tinha de lhes expor...tive assim uma subida de responsabilidades e de carga de trabalho que foi alucinante.

Ao mesmo tempo, nós, profissionais de saúde, tivemos de nos separar das nossas famílias. Por exemplo, os meus pais divorciaram-se, mesmo no início da pandemia, e eu não tive capacidade de estar perto, nomeadamente, da minha mãe, que sofreu muito com a separação, e, em circunstâncias normais, não teria certamente essa inibição de aproximação. Além disso, a exposição pública é muito tóxica. Ainda o é e, mesmo sem falar da pandemia, sofro ataques com muita frequência, que ficarão para sempre. Estes ódios das pessoas extremistas, infelizmente, não passam.

Mas pela parte de quem, de negacionistas?

Sim. De pessoas que acham que uma pessoa como eu, que está a falar em nome da medicina, do Serviço Nacional de Saúde (SNS), têm uma agenda, que quer ganhar dinheiro, que faz parte do Governo, que recebe das farmacêuticas. Bom, toda uma panóplia de acusações sustentadas em paranóias mas que são tóxicas, que moem. Insultos, ameaças. Ainda hoje recebi uma ameaça. Quando me chamam para estar em frente à televisão, sinto uma necessidade de estar bem informado, atualizado. Naquela altura sabia que aquilo que estava a ser visto por muita gente e essa responsabilidade é também sufocante.

Em missão há um botão vermelho para vir embora, na pandemia não

Foi durante a pandemia que descobriu que estava doente...

A minha doença aparece mais ou menos no início da segunda vaga. A todos os dilemas que já tinha, acrescentei uma dor que se foi acumulando e que se agravava cada vez que trabalhava e eu queria muito estar à altura do desafio. Tive inclusive de sair algumas semanas, em novembro de 2020, porque estava exausto física e psicologicamente. Eu chamei-lhe burnout, o que não é mentira mas era, essencialmente, consequência da minha doença, da minha dor crónica, que estava na altura a aparecer, a agravar-se e eu a não perceber nada do que estava a passar. Portanto, tudo isto, fez com que a pandemia fosse a missão mais difícil da minha vida. Por estar tão absorvido, por ter sido tanto tempo, pelas múltiplas frentes de ataque, não era só o exercício da medicina. Eu costumo dizer que, em missão, apesar de estar em sítios perigosos, tenho sempre um botão vermelho para carregar se me quiser vir embora e a missão, à partida, também já tem um limite definido de tempo. Trabalho imenso mas também já sei que chega ao dia x e venho-me embora. Com a pandemia não foi bem assim. Foram meses e meses e meses.

Lembro-me, por exemplo, ali em finais de setembro [de 2020] , tirei uma semana de férias, tive um evento em Lisboa fui e a minha ideia era descer mais um bocadinho e apanhar umas prainhas e tal, relaxar dois ou três dias fora de casa e recebi um telefonema do meu Chefe: 'Gustavo não te importas de voltar a trabalhar?'. E eu: 'Claro que não!'. Desliguei o telefone e comecei a chorar. Estava exausto, estava desfeito. Era incapaz de virar a cara à luta mas estava mesmo a precisar de férias porque, até a propósito da comunicação, se calhar pelo facto de ser solteiro, não ter filhos, não ter mulher, fazia com que eu estivesse conectado com a pandemia todos os dias. Sábados, domingos, feriados. Nesse sentido a absorção de emoções, o jogo de emoções foi claramente o mais difícil da minha vida.

A que se deve a sua condição?

Não é preto no branco, algumas coisas na medicina não são fáceis de ter a certeza, são interpretativas. Eu tive uma doença que se chama doença de Lyme, que é causada por uma bactéria que normalmente vem das carraças, tenho contexto para isso porque tenho cães com muito pelo e jardim e tal. Esta doença muitas vezes deixa sequelas, mesmo depois de tratada. É o que se chama Lyme crónico ou pós-Lyme. Naquilo que parece ser o meu caso, atingiu os meus nervos periféricos, portanto, os meus nervos estão mais sensíveis.

E há também uma componente postural. A minha dor agrava quando estou sentado ou de pé, o que faz com que esteja limitado para muita coisa. Porque é que tem uma componente postural? Os exames não são assim evidentes e eu, neste momento, estou a refazer esse percurso, o percurso da ortopedia, da neurocirurgia, a ver se há aqui alguma coisa a fazer. O que é facto é que não há ninguém que olhe para mim e diga, textualmente, que compreende a minha sintomatologia à luz dos sintomas que está a ver aqui ou ali, ou seja, o que é que eu tenho? Dor crónica que agrava com a postura. Porquê? Provavelmente, será uma mistura de doença de Lyme com uma coluna já um bocadinho doente, com alguns problemas, algumas mazelas que têm a ver também com o meu historial desportivo.

A qualidade da medicina salvaria muitas mais pessoas se o SNS estivesse reforçado

Desde essa altura (e já antes) fala muito, nas redes sociais e nas intervenções nos órgãos de comunicação social, de saúde mental. Recentemente, revelou mesmo que não tem sido fácil encontrar razões para viver perante as dores que sente e a impossibilidade de trabalhar como médico...

Eu tenho um desafio psicológico e emocional que é tentar continuar a minha vida com uma restrição enormíssima de movimentos, de alegrias e, portanto, a minha doença, digamos assim, chama-se tristeza, felizmente ou infelizmente, não é mais do que isso. Valorizo muito a saúde mental porque, no limite, a saúde é sempre e só mental. Preferia ter 50 problemas de saúde e estar feliz do que ser super saudável e estar deprimido e triste todos os dias. Daí que, de uma forma completamente metafísica e filosófica, para mim a saúde é sempre mental.

Para terminar, gostávamos de saber, como médico, como olha para o estado da Saúde em Portugal, que tantas manchetes tem feito ultimamente, sobretudo no que ao Serviço Nacional de Saúde (SNS) diz respeito? 

Podemos divagar muito mas há uma questão que é incontornável que é o dinheiro. As pessoas ganham mal, não têm perspetivas de carreira, têm poucos incentivos a ser competentes, a meritocracia quase não existe na função pública em geral e no SNS em particular. As pessoas trabalham de uma forma apaixonada mas, a certa altura, cansam-se. Cansam-se de trabalhar e cansam-se de ser injustiçadas. Não gosto de tomar posições políticas no sentido partidário. Mas é um bocadinho ideológico. Não consigo perceber como é que é possível permitirmos um crescimento exponencial da medicina privada sem deteriorarmos o SNS. Aquilo que nós sabemos é que o SNS é que lá está para nós todos. Dando como exemplo as urgências de obstetrícia, os privados podem abrir, podem fechar, podem fazer o que lhes apetecer quando eles quiserem. O público não! Tem de estar sempre lá e é sempre chamado a responder às coisas que não correm bem e às insuficiências.

Como é que se resolve isso? Tem de se incentivar as pessoas a ficarem no SNS. E como é que se incentiva? Não é nenhum segredo mágico. Condições de trabalho, condições de carreira, remuneração. Um médico especialista, de uma forma geral, ganha 1.700 e tal euros limpos. Acho que isso é muito injusto, mesmo comparando com outras profissões da Função Pública. Comparando com juízes, comparando com pilotos da TAP, que recebem do Estado 3, 4, 5 vezes mais e, com todo o respeito, não têm metade da nossa formação e da nossa responsabilidade. Podemos dizer que, num avião podem morrer mais pessoas do que com um médico mas, no todo, a qualidade da medicina salvaria muitas mais pessoas se o SNS estivesse reforçado.

As doenças mais graves continuam a ser muito melhor tratadas nos serviços públicos. Os privados muitas vezes nem oferecem qualidade. Oferecem é rapidez e um embrulho mais bonito, mais apetecível, mas em quase todas as áreas há mais qualidade no exercício da medicina na função pública do que na função privada. Com isto não quero dizer que odeio os privados e que quero que eles acabem, mas acho que é triste que se permita uma drenagem, uma sangria do SNS, que é obviamente causada pelas más condições de trabalho que o SNS oferece.

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