Proprietário do São José fez fortuna à custa do comércio de escravos

O proprietário do navio São José, naufragado em 1794 ao largo da África do Sul, levando à morte mais de 200 pessoas escravizadas, construiu a sua fortuna à custa do comércio de escravos, segundo uma investigação académica.

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© Museu Iziko

Lusa
16/07/2022 11:37 ‧ 16/07/2022 por Lusa

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O São José foi o primeiro navio de tráfico de escravos a ser descoberto por investigadores e consequentemente estudado, depois de identificado em 2015 pelo projeto internacional Slave Wrecks, que reúne múltiplas instituições mundiais, desde o Museu Nacional de História e Cultura Afro-Americana do Smithsonian, em Washington D.C., nos Estados Unidos da América, aos Museus Iziko da África do Sul, entre outros.

Hoje, é possível saber que o São José, propriedade do português José António Pereira, partiu da Ilha de Moçambique, no dia 03 de dezembro de 1794, com 512 moçambicanos cativos a bordo, em direção ao Maranhão, no Brasil, mas que, no dia 27 do mesmo mês, foi apanhado por uma tempestade perto da Cidade do Cabo, na África do Sul, e afundou-se a 100 metros da costa, como se lê no 'site' do Slave Wrecks Project.

A tripulação foi toda salva, mas da "mercadoria" -- os 512 escravos a bordo --, só cerca de 300 terão sobrevivido ao naufrágio, para voltarem a ser vendidos.

De acordo com Raquel Machaqueiro, investigadora de pós-doutoramento da Universidade de George Washington, nos Estados Unidos da América, José António Pereira "era um mercador muito rico da cidade de Lisboa que, tal como outros mercadores, estava envolvido no comércio de escravos".

Apesar de estar quase ausente dos registos históricos, Pereira -- que ainda hoje mantém o nome dado a uma travessa em Lisboa, entre a Avenida 24 de Julho e a Rua das Janelas Verdes -- "começou por ser capitão de navios, tornando-se rapidamente proprietário", como explicou Machaqueiro, cujo trabalho está também ligado ao Clube História e Acervo Português da Atividade Seguradora (CHAPAS), num simpósio em torno do São José, organizado pelo Slave Wrecks Project e pelo Museu de Lisboa, em maio.

José António Pereira transportou escravos, nos seus navios, durante mais de duas décadas, entre portos como os no Norte da Europa, Moçambique, São Tomé até Montevideu e Buenos Aires, entre outros.

"Os registos mostram que Pereira, entre outros comerciantes ricos de Lisboa, tinha relações muito próximas com a Coroa portuguesa. Beneficiou de isenções fiscais, no transporte de escravos para o Pará, correspondia-se em termos amigáveis com muitos governadores e, em várias ocasiões, pressionou com sucesso as autoridades na defesa dos seus interesses comerciais", disse Raquel Machaqueiro.

De acordo com a investigadora, precisamente no ano em que o São José se afundou, José António Pereira pediu à Coroa para que lhe fosse atribuído um título da Ordem de Cristo, com base no seu trabalho enquanto comerciante de escravos. A Coroa assentiu, um ano depois.

"Em que é que a trajetória individual deste mercador ajuda? Por que são estes elementos biográficos significativos? A rede complexa de mercadores, investidores, credores, igreja e autoridades em torno das atividades de Pereira demonstra que o comércio de escravos era não apenas um empreendimento global que se estendia bem para lá do comércio triangular tradicional, mas que estava interligado e integrado no comércio global", acrescentou Machaqueiro.

Segundo a apresentação da investigadora no simpósio de maio, o "envolvimento direto da Coroa" e a sua "dependência do capital, que mercadores como Pereira podiam providenciar", justificam que uma mais aprofundada investigação seja levada a cabo em relação ao peso do comércio de escravos na riqueza nacional portuguesa.

"Dado que alguns dos mercadores e comerciantes de escravos a quem José António Pereira estava ligado, se especializaram mais tarde em financiar e segurar empreendimentos esclavagistas, em vez de participarem enquanto proprietários, a pergunta sobre se e como o comércio de escravos moldou a economia portuguesa e o sistema financeiro requer respostas que estão indisponíveis neste momento na historiografia portuguesa", salientou.

Raquel Machaqueiro enfatizou que o facto de se apagar esta componente da história de Portugal impede o reconhecimento de "três factos simples: que Portugal foi a nação mais implicada no comércio de escravos no Atlântico como um todo; que Portugal esteve envolvido durante quase cinco séculos; e que Portugal foi instrumental, quer no primeiro quer no último capítulo do comércio de escravos".

Como recorda a página do Slave Wrecks Project, "o tráfico de escravos transatlântico foi a maior migração forçada de pessoas na história do planeta. Desde 1400, mais de 12 milhões de africanos foram capturados e traficados pelo mundo Atlântico. Por altura de 1700, sete milhões de africanos haviam sido traficados para as Américas".

Em 2019, um projeto da revista do jornal The New York Times, intitulado apenas "1619", visou assinalar os 400 anos do começo da escravatura no território que viria a ser o dos Estados Unidos da América.

O projeto começava com o seguinte parágrafo: "Em agosto de 1619, um navio apareceu no horizonte, perto de Point Comfort, um porto costeiro na colónia inglesa da Virgínia. Transportava mais de 20 africanos escravizados, que foram vendidos aos colonos. Nenhum aspeto do país que se viria a formar aqui ficou intocado pelos anos de escravatura que se seguiram".

Esse navio, o São João Batista, era português e vinha de Angola.

Leia Também: Projeto insta Portugal para que lidere investigação sobre escravos

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