Nos primeiros seis meses de 2022, 13 mulheres foram assassinadas em contexto de violência doméstica em Portugal. Nesse sentido, o Notícias ao Minuto falou com João Lázaro, presidente da APAV (Associação Portuguesa de Apoio à Vítima), desde 2012, e presidente do Victim Support Europe.
Em entrevista, o responsável explicou como este fenómeno está a retomar "a triste trajetória que existia na pré-pandemia" e como "o conhecimento é essencial para se definir e corrigir políticas públicas".
Recorde-se que, nos últimos três meses de 2021, a Polícia de Segurança Pública (PSP) e a Guarda Nacional Republicana (GNR) registaram 6.730 ocorrências por violência doméstica, menos 880 do que nos três meses anteriores. Somando os doze meses, as forças policiais receberam menos 1.108 ocorrências do que no ano de 2020, o que representa uma quebra de 4%. A tendência parece, no entanto, estar a aumentar.
Nos primeiros seis meses de 2022, 13 mulheres foram assassinadas em contexto de violência doméstica, o que equivale a quase tantas como em todo o ano de 2021, em que 16 mulheres perderam a vida às mãos dos companheiros. "Um dado chocante" para o presidente da APAV.
13 mortes? É claramente um alerta, a meio do ano, para todos os que lidam e tem responsabilidades nesta área reforcem a ação
Qual é a razão que encontra para existirem já 13 femicídios em menos de seis meses, sendo que a violência doméstica estava inclusivamente a diminuir?
A primeira nota é que, claramente, mesmo que seja uma mulher assassinada, ou seja, vítima de femicídio, é um dado chocante. É algo que nos preocupa e que nos choca, como Associação Portuguesa de Apoio à Vítima que somos. Os valores que são apresentados, que são uma mistura entre valores oficiais e uma atualização através de um órgão de comunicação social, indicam que, nesta altura, estaremos já com um valor muito próximo do valor registado no ano anterior.
A questão é que o valor do ano anterior, e ainda não há dados quantitativos para isso, foi um ano atípico, com baixo número de homicídios no âmbito de femícídio. Regra geral, nos últimos anos, mesmo antes da pandemia, o número de femicídios - o número de desfechos fatais às mãos de agressores - rondava a casa dos 20, representando regra geral 20% a 25% dos homicídios registados por ano no país, que são regra geral também cerca de 100.
Isto significa que estamos a retomar a triste trajetória que existia pré-pandemia.
O que leva os casos de violência doméstica a escalar para femicídios? Acredita que vamos ter números piores?
Não gostaríamos de fazer essa previsão, porque é claramente uma previsão derrotista para quem, todos os dias, como a APAV há 32 anos, batalha e combate e defende as vítimas de crime. Agora é claramente um alerta, a meio do ano, para todos os que lidam e tem responsabilidades nesta área reforcem a ação, para tentar que esta não seja uma realidade até ao final do ano.
Estes números refletem uma realidade muito diferente, refletem que as vítimas que não eram sinalizadas, ou seja, que ninguém em termos de estruturas quer de apoio, quer de justiça ou policiais saberiam que eram vítimas. Poderia saber a comunidade e isso alerta-nos para toda a batalha diária da prevenção da consciencialização.
Ou seja, hoje há uma pessoa que está sensível à mensagem sobre parar e sair de violência doméstica, amanhã não está e vice-versa. E depois também temos de ver o que é que se pode melhorar na análise do que correu mal nalguns casos, nomeadamente nos casos fatídicos. Seja na articulação entre as várias entidades públicas de justiça e autoridades judiciais, seja em outras ligadas ao apoio para poder melhor corrigir políticas públicas.
Porque é que as vítimas não procuram ajuda mais cedo, antes de chegar a este extremo (do femicídio)?
Existe uma variedade imensa de fatores explicativos. Nomeadamente, a desconsideração. A desconsideração própria - pela gravidade ou pelo facto de muitas destas mulheres estarem isoladas - e toda a estratégia da pessoa agressora de isolamento económico, familiar, que pode fazê-las acreditar que muito do que acontece é culpa delas.
Existe toda uma série de fatores, muitas vezes por falta de informação, daí a renovação de informação, da prevenção e da sensibilização permanente. Há aqui inúmeras razões que podem levar alguém a não ter pedido ajuda, até não terem existido sinais para a própria vítima que tal podia acontecer.
A complexidade causal destes casos é bastante diversa e, claramente, se pode retirar fatores, mas cada caso é realmente um caso.
O INE vai lançar um inquérito para conhecer melhor o fenómeno da violência doméstica em Portugal, em que é que este inquérito pode ajudar?
Conhecer a dimensão do fenómeno, conhecer a própria perceção do fenómeno com um inquérito à população é essencial. O conhecimento é essencial para se definir e corrigir políticas públicas.
As políticas públicas existem para que não haja dúvida. Existem respostas, existem muitas organizações da sociedade civil, do estado, das comunidades que estão muito empenhadas e que fazem um trabalho todos os dias, mas os fenómenos são dinâmicos e conhecer em cada momento o fenómeno e as características é essencial para melhor intervir e melhor fazer gestão de políticas publicas, a sua correção, a sua afinação, para que os resultados possam ser mais eficazes. Nomeadamente, [diminuir] as cifras negras da violência doméstica e proporcionar mais apoio e, no caso específico dos femicídos, reduzir os valores que anualmente representam em termos de homicídios registados.
O fenómeno de violência endémico e permanente nas sociedades que não só a portuguesa
O que está a falhar na sociedade e nas autoridades para que estes fenómenos continuem a acontecer?
Sem querer relativizar, a violência doméstica é claramente o fenómeno de violência endémico e permanente nas sociedades que não só a portuguesa. Calcula-se que uma em cada cinco mulheres na Europa seja vítima de violência durante a sua vida, portanto, isso é algo que claramente é um fenómeno muito preocupante nas várias sociedades e nos vários países europeus.
Agora, há vários fatores, como a questão da prevenção, que existe mas tem de ser renovada, melhorada e praticada sempre. E há aqui também a questão de melhorar a própria articulação do sistema social às necessidades e às preocupações de efetivação dos direitos das vítimas, porque muitas vezes o tempo da justiça não é o tempo das vítimas.
Como é que se pode alterar esta tendência de aumento de casos já este ano, tendo em conta que ainda estamos a meio do ano?
Todos nós, inclusivamente, cada um de nós como cidadãos têm um papel a fazer. Ou seja, de alguém que pode ajudar e apoiar a falar ou quebrar o silêncio. Claramente, também é um alerta para todos nós de organizações públicas e privadas que têm responsabilidade, para aumentar os alertas e a sua capacidade de sensibilização de alertar para os perigos e para todos os riscos que as vítimas de violência doméstica podem ter. É, claramente, um alerta para a comunidade portuguesa em geral.
A APAV lembra que para o apoio a vítima de violência doméstica existe a Linha de apoio à Vítima. Disponível, todos os dias das 08h00 às 22h00, através do número 116 006 ou através do endereço www.apav.pt – apav.sede@apav.pt.
Leia Também: Em apenas seis meses, 13 mulheres perderam a vida por violência doméstica